ÇOCOS & ÇAPATOS
E O SR. CARLOS ÇAPATEIRO
(em defesa do nosso acordo ortográfico)
Por
ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES
Aqui há uns dias, na bela crónica da
Fátima, tropecei nos nossos çocos com que antigamente nos
artilhávamos para os nevões. E logo tilintou a minha sineta inquisitorial de
prof. de Português. Mas, que diabo! De facto, os dicionários registam socos,
o étimo latino é soccu, portanto em Rebordainhês deveríamos dizer /shocos/
Mas o povo tem (quase) sempre razão (e a Fátima também). O que acontece é que,
muito provavelmente, os nossos çocos
de Rebordainhos vieram através do castelhano zocos, donde a sibilante /s/. E o mesmo acontece com çapatos,
que no sec. XVIII ainda aparece grafado assim mesmo. E no Auto das Barcas de Gil Vicente lá vem o Çapateiro. Fiquemo-nos
portanto com os nossos çocos
rebordainhenses e os dicionaristas que se danem (para não o dizer em
Rebordainhês!).
E vamos ao que importa.
Naquele tempo, quando as neves derretiam, o
carambelo desaparecia das poças e o sincelo deixava de se dependurar das
árvores e estas começavam a abrolhar, ia sendo altura de largar aqueles çocos made by tio Grilo Çoqueiro e voltar às
botas. Botas, pois, que de çapatos ainda não se falava. Mas como as botas do
ano anterior iam ficando apertadas ou com a biqueira roída com as futeboladas
na eira do Outeiro, ia-se pensando no fabrico de botas novas, a inaugurar pela
Páscoa ou, era o mais certo, em Julho, na festa do orago, S. Maria Madalena.
Para mim era sempre um
acontecimento esta peregrinação à loja do Sr. Carlos Çapateiro (eu acho que não
era tio Carlos Çapateiro; ele tinha
direito ao tratamento por senhor
devido à excelsitude da profissão, àquele ar despachado com que cirandava pela
aldeia com o avental de cabedal, arvorado em distintivo da corporação de S.
Crispim, patrono dos sapateiros) e à sua capacidade mirífica de transfigurar
uns chanatos velhos em obra de primor. E era um acontecimento: primeiro porque
tinha pela frente o empreendimento de vadiar pela aldeia de uma ponta a outra,
com o que isso implicava de contactos sociais, de socialização, como agora se
diz: começava por uma paragem em frente da loja do Ferreiro, o tio Ramos,
fascinado pelo fogo-de-artifício que soltava ao malhar o ferro em brasa sobre a
bigorna. A seguir ia mergulhar os beiços na água fria da Fonte Grande. Na poça
do Espinheiro ficava-me a contemplar o rabear tonto dos cabeçudos na água
minguada, que as poças ainda não se tinham fechado para as regas. De passagem,
uma mirada gulosa para a amoreira do Sr. Lopes, suspirando pelas amoras do
Verão. Na poça do Covelo tinha que provocar o aranzel dos parrecos da tia Ana Costa, que atroavam o bairro
com o seu grasnar.
Já n’À Chave, na lojeca
do Sr. Carlos, era todo aquele ritual de tirar as medidas: descalçar a bota
velha do pé direito, pisar o bocado de cartão ou papel de cartucho para
registo, a volta de circum-navegação do lápis em torno do pé (o que me fazia sempre
cócegas ‒ ó miúdo vê lá se estás c’o pé quedo!). Depois, o Sr. Carlos
molhava o bico do lápis na ponta da língua, punha o nome do dono do pé no papel,
dobrava-o em quatro e arrumava-o na prateleira das obras encomendadas. ‒ Diz lá ao teu pai que daqui a um mês estão prontas.
Mas, tomadas as medidas,
eu arranjava sempre maneira de me quedar por ali, na contemplação do labor
sapateiral: martelar o couro demolhado, mas ainda rijo, sobre um rebolo de
seixo polido; segurar os liços entre os dentes enquanto a sovela furava as
viras de umas botas em construção, meter, num ai, as cerdas nos orifícios e dar
o esticão tenso para que os pontos ficassem bem firmes, lubrificar a ponta da
sovela na cera vermelha! Que grande artista era o Sr. Carlos! Mas o que eu mais
admirava era o manuseio daquela faca da profissão terminada em triângulo
rectângulo, quando com uma precisão de cirurgião alisava os bordos duma bota,
ou, maravilha das maravilhas, cortava uma rodela de cabedal, espetava-lhe a
faca sobre a tábua, puxava uma pontinha e zás! num passe de mágica estava um
atacador pronto!
Depois, aconteciam
sempre coisas por aqueles lados. Um dia era o Hermenegildo (o Gitlém, para quem
não se lembra) que urinava para dentro de uma garrafa de laranjada e lhe
aparecia à frente da porta a saltaricar:
‒ Ó tio Carlos, olhe liranjada, quer liranjada?
‒ Anda cá, meu safardana
que já te dou a liranjada!
Doutra feita, era o
filho mais novo, o Duarte, que não se cansava de remexer nas ferramentas do
ofício e se punha a pregar cerzetas à toa por tudo quanto era sítio: ‒ Ó fedelho,
desaparece-me! Vai mexer na maçaneta do escaravelho!
Esta de mexer na maçaneta do escaravelho era de
antologia e merecia figurar em qualquer cartilha de estilística!
Certo é que, ao fim de
uns tempos, lá vinha o Sr. Carlos, Prado fora, com um embrulhinho aconchegado
debaixo do avental de S. Crispim. E eram o meu enlevo aquelas botinhas ainda
com o cheiro forte do couro cru, com as solas cravejadas de cravinho miúdo cor
de prata. Havia lá no mundo çapatos que valessem umas botas daquelas! O tio
Grilo era uma artista com os seus çocos de pau de amieiro, mas não chegava aos
calcanhares do Sr. Carlos Çapateiro. Não haja dúvida.
11 comentários:
"Renegaria eu da festa
e da barca e da barcagem"
se tivesse que ir de viagem
sem ser na barca da Glória.
"Digo-te que renam quero"
fazer çapatos diferentes
pois até o Anjo austero
os calça todo contente
na celeste trajectória.
___ /___
Tonho
Bem-hajas por te lembrares dos nossos e de lhes contares os feitos e os jeitos desse modo tão tocante como só tu és capaz.
Um grande beijo
Tonho:
A nitidez que imprimes às tuas narrativas faz com que vejamos a película com uma clareza tal que mais parece um filme em 3D. Obrigada por isso, mas deixa-me corrigir-te numa coisa. O sr Carlos depois do Duarte teve mais um filho - o Fernando - que, à altura em que tu te baseaste para esta descrição ainda não teria nascido.
E ,não te lembraste tu das afirmações que ele tecia ao sabor da canja de...COBRA!
Beijo
Um texto muito interessante que me deu a conhecer mais um pouco desses tempos antigos de Rebordainhos.
Um abraço e uma boa semana
Penso lembrar-me que chamávamos çapatos ao que os sr. Carlos nos fabricava; e ao que se costuma chamar sapatos chamávamos çapatos baixos. Lembrança falsa?!
Anónimo
Se bem me lembro, tínhamos os çapatos do sr. Carlos e os "çapatos finos" de ir à cidade. Creio que era assim.
Cumprimentos
Augusta
Agora deixaste-me com a pulga atrás da orelha: como é que é essa da canja de cobra?
Beijos
Li, com muito gosto e prazer, o texto de António Fernandes. Para compartilhar as suas boas memórias, o autor pintou-nos um magnífico fresco com algumas cenas pitorescas da vida quotidiana da Rebordainhos de há cinquenta anos.
Quanto às dúvidas levantadas pelos çocos, divirjo um pouco da opinião, ainda que muito douta, do professor Fernandes. Não é preciso ir tão longe, no espaço (Lisboa) e no tempo (século XV), para compreender esta curiosa maneira de escrever socos. Basta que lhes diga que a solução pode ser encontrada em Trás-os-Montes, para que todos se lembrem, imediatamente, de Miranda do Douro! Çocos é a tradução, em mirandês, de socos, em português.
Pelo atrás exposto, as gentes da Serra da Nogueira têm toda a legitimidade para continuar a usar çocos. O mirandês é uma língua oficial de Portugal que, na minha humilde opinião de filólogo amador, não pode ser confinada à população de um pequeno território fronteiriço nas margens do Douro. É verdade que séculos e séculos de opressão cultural de Lisboa sobre os povos do nordeste e das raias secas e fluviais desvirtuaram, em muitos lados, a pureza original do mirandês, mas, hoje, Portugal é um país livre onde cada um fala e escreve como quer!
A lei que fez do mirandês uma língua oficial tem lacunas muito graves. Para começar, devia prever uma linha imaginária flutuante que dividisse, longitudinalmente, o país em duas grandes regiões – para quem olha de frente para o mapa de Portugal, a faixa direita corresponderia à região dos falantes mirandeses e a faixa esquerda seria a dos que se exprimem, preferencialmente, em português. A linha de demarcação seria flutuante para facilitar o intercâmbio comercial e cultural entre os dois territórios, com a ressalva de que a reserva da Serra da Malcata, onde se protegem os vistosos linces ibéricos, jamais poderia cair na faixa esquerda. O enclave barranquenho, na fronteira alentejana, onde é legal matar touros nas touradas, continuaria a ser uma exceção nesta divisão administrativo-linguística do país, podendo, e devendo, a sua população continuar a exprimir-se em barranqueño, o seu modo de falar inculto, com a promessa de que, um dia, quando a troica for embora, será feita uma lei que consagrará a terceira língua oficial de Portugal, especialmente dedicada às gentes de Barrancos.
Para já, a lei devia forçar os meios de comunicação social a darem igual tratamento às duas línguas oficiais atuais.
Estas pequenas alterações legislativas teriam efeitos culturais e económicos da maior relevância, nomeadamente no campo das relações externas, em que Portugal disporia, de um dia para o outro, de duas línguas muito lhanas, logo muito percetíveis e suficientemente fortes para reduzirem a nada os pérfidos argumentos, em inglês, da troica.
Cumprimentos,
Constantino de Alarcão
E lembra-se muito bem Sr. Anónimo!chamávamos çapatos ao que os sr. Carlos nos fazia e os que eram comprados na feira dos Chãos ou na das cantarinhas, eram os chamados sapatos baixos, ou finos, como lhe quiserem chamar.
Parece que o Humberto Pires mudou de pseudónimo para Constantino Alarcão.
Deve julgar que é o Fernando Pessoa!
Grande Primacho!
Andavas tão desaparecido, mas quando apareces dá gosto ler a tua escrita. És o Aquilino de Rebordainhos, sem acento... ou com o acordo ortográfico tem acento?
Lá onde estiver, o senhor Carlos deve estar muito triste ao contemplar nesta altura a aldeia: "Já nem há matanças do porco para poder retirar umas "sedas"", como ele tão bem farejava, mas sempre acompanhado do seu avental de marca. Deve-se rir dos meus sapatos, que eu queria que "xiassem", mas só com duas tiras de presunto... Porém dada a tua escrita tenho que confessar:"Ne sutor supra crepidam".
Obrigado por este momento.
Filinto
Obrigado, leitores amigos.
Há, de facto um ror de lembranças que nos ocorrem a propósito dos nossos çocos e çapatos, já lá vão sessenta anos.
A propósito das considerações do Sr. Constantino de Alarcão (que não tenho o prazer de conhecer) ainda há de facto muito a investigar sobre a evolução da nossa língua. E nunca aprofundámos devidamente a relação dos nossos falares fronteiriços no Norte com o velho Galaico-Português. Mas isso é assunto para outra faenas.
Abraços grandes deste Rebordainhense
A. Fernandes
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