terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

AS NOSSAS PALAVRAS

a cozinha


Se, por um desígnio qualquer, um antepassado nosso do séc. XVII ressuscitasse na década de 60 do séc. XX e entrasse no espaço daquela que fora a sua casa ficaria muito espantado? Duvido.

Prossigo, já se vê, com as casas.

Subindo a escaleira, que continua exterior, abriria o cancelo, aquela meia-porta que separa o espaço privado da casa do espaço público. Se a casa não fosse sua, teria batido as palmas no fundo da escaleira e gritado: “Ó da casa!” e esperado pela eterna resposta: “Entre quem é!”

Como no seu tempo, a velha porta de tábuas mal unidas conservava-se aberta durante o dia, tendo a meio o carabelho de pau que serve para fechar do lado de fora, anunciando que o dono está ausente. Entrando, e espreitando para trás da porta, veria a tranca encostada à parede e a tranca, porque fechava por dentro, continuava a ser o único instrumento de protecção contra ladrões ou mandicantes de outro gabarito. Se, no devir das gerações, algum descendente se quis mostrar mais rico do que os vizinhos, no sítio do carabelho encontrou uma aldraba ou um garabito de ferro e, talvez, também uma fechadura para chave grossa. Em todo o caso, uma abertura semi-circular no cancelo e na porta permitiam a livre entrada e saída do gato doméstico. Era a gateira.

Tal como outrora, mal transpôs a porta, o nosso visitante viu-se na cozinha que o alto escano dividia em duas partes: uma mais acolhedora, que era o lar e outra de serviço. No lar pontuava o lume aceso, fosse Verão ou Inverno. Sobre as brasas, embarrado num cadeado ou num simples ferro suspenso da parede, o caldeiro fumegava com a bianda dos porcos. Estranharia o conteúdo, porque batatas eram coisa que nunca tinha visto nos dias da sua vida, mas fora isso quase tudo continuava familiar. Do escano largo, onde já ele se sentara e onde fizera adormecer filhos e netos, pendia a mesa, embora se lembrasse que era luxo que nem todas as casas possuíam. Em roda do lume, três ou quatro trupeças. Um rodilho de estopa sobre uma trupeça fazia dela a mesa das casas menos abonadas. Em todas, no entanto, comia-se do mesmo prato redondo que era de barro no seu tempo, mas agora era de esmalte, embora este que agora via se mostrasse tão esbeiçado como aquele em que tomara as suas refeições. As malgas, embora de barro vidrado, continuavam com a mesma forma e a mesma função de dar a comer o caldo por último. Embarrado na parede, e bem enfuliçado pelo muito uso, via o assador das castanhas e, ao lado, no caniço, pilava-se uma saca de castanhas.

Encostada ao escano, na parte mais próxima do lume, uma gabela de lenha, ou uma mancheia de guiços, se fosse tempo quente, asseguravam que o lume permaneceria aceso. O lume, atiçado pelo fole, fornecia parte importante da luz que alumiava a noite, enquanto a outra parte era fornecida pela candeia que, então, cheirava a petróleo mas que, trezentos anos antes, cheirava a azeite. Em todo o caso, continuava suspensa da parede ou pendurada num prego pregado no escano. Nas noites longas de invernia, à luz das chamas e da candeia, feita a matança, os homens colocariam sobre os joelhos uma grossa gamela de madeira  e, com um maço também de madeira, pisariam o unto, o único tempero para além do sal, que enrolariam numa bola branca perfeita. Enquanto isso, as mulheres fiavam o linho ou a lã, manobrando agilmente a roca e o fuso, numa cadência ritmada e extenuante para os braços. Porque a boca se secava de tanto molharem os dedos que puxam o fio, as mulheres iam dando dentadas numa sumarenta maçã de inverno. Noutros dias, as mesmas mulheres encheriam os potes com as partes certas do porco para delas fazerem os rijões (folhelhos ou de carne) que conservariam para todo o ano mergulhados no próprio pingo, tudo isso colocado em altos barrinhões.  Noutros dias ainda, debulhariam o milho que seria moído em milhos no moinho mais próximo, ou se conservaria em semente para semear no ano seguinte. Isto, o nosso visitante achou mudado, porque no seu tempo, e em Rebordaínhos, de milho só havia o painço. O que ele não estranhou nada, foi perceber que, durante as beladas, se contavam aos mais novos uma série de histórias extraordinárias, nem que se continuavam a reunir os vizinhos das casas mais próximas e a família mais chegada, mesmo que morasse noutro bairro. Tal como no seu tempo, era assim que se transmitiam os ensinamentos necessários à vida em comum e era da mesma forma, com uma singela oração, que se dava por terminado o serão.

Saindo do lar dirigiu-se para o lançadouro. Era coisa mais elaborada do que o simples toco de pau do seu tempo: sobre uma plataforma que servia de tapume à parte de baixo, as mulheres, usando uma colher comprida e funda lançavam o caldo cozido ao lume num pote. Não se surpreendeu de ver colheres, que eram usuais, mas soltou um assobio de espanto ao reparar que, numa espécie de gaveta, além das navalhas havia garfos! É verdade que eram garfos de ferro, mas no tempo em que vivera, garfo era luxo só ao alcance  das casas nobres ou dos burgueses endinheirados! Quando terminasse a refeição, sobre o lançadouro, seria colocado um barrinhão de boca larga que serviria para lavar a louça, em água aquecida num caldeiro sobre o lume. Essa água seria aproveitada para a bianda dos porcos, já porque a fonte fosse longe de casa e os cântaros e as romeias fossem difíceis de alombar, já porque a água, que ficava engordurada, condimentava um pouquinho mais o alimento das criaturas que moravam no andar de baixo. O lançadouro tinha por cima uma prateleira com divisórias para os pratos e, acima dela, divisórias com portas. Àquelas divisórias protegidas com porta de rede de malha fina chamávamos mosqueiras, está-se mesmo a ver porquê. Se sobrasse espaço por cima, duas ou três caldeiras de cobre bem luzentes faziam as vezes de atavios porque só esporadicamente eram usadas. Na parte de baixo do lançadouro, escondidos por detrás de uma cortina garrida, guardavam-se todos os cacarelhos da cozinha: os potes, os barrinhões dos rijões, o barrinhão de lavar a louça… Os potes maiores, como os das alheiras, e os barrinhões de as fazer - ou a larga caldeira de cobre que também servia para o mesmo efeito -, por não caberem naquele espaço, jaziam encostados a um canto. Talvez tenha sido isso que mais surpreendeu o nosso antepassado do séc. XVII: então aquela novidade do seu tempo, as alheiras, continuavam a fazer-se? E que bem cheiravam, assadinhas sobre a grelha de ferro, com pequenos pés para fazerem altura, colocada directamente sobre as brasas que a dona da casa, servindo-se da tenaz, puxara para fora do lume! E nem se esqueceram dos reizinhos para a a garotada!

Nas cozinhas maiores, do lado oposto ao do escano, havia ainda um banco baixo comprido que, embora servisse de assento quotidiano, era usado como base para a masseira onde se amassava o pão (e por pão sempre entendemos o centeio). Nessas cozinhas, uma embocadura tapada e saída da parede denunciava a presença do forno onde os enormes pães eram cozidos para sustentarem a família durante toda a semana. Um carolo de pão acabado de cozer (de preferência, a carocha), temperado com um fiozinho de azeite, era o manjar mais delicado que se podia comer.
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Notas
1) Foi com enorme alegria que escrevi este texto para o qual tive sempre presente a casa dos meus avós, a casa de meus pais e a da tia Maria - enfim, as casas que povoam as minhas memórias mais ternas. Enquanto escrevia, foi como se o tempo se tivesse suspendido e eu estivesse, de novo, a conviver com todos eles.

2) Não falei do chupão porque já o fiz no artigo anterior.


17 comentários:

Américo Pereira disse...

Fátima, o seu texto da cozinha é
fantástico assim como o primeiro.
Ao lê-lo passei a pente fino tudo
quanto havia lá em casa dando-me
a sensação de estar a viver todas as situações que descreveu. Tive
pena que não tenha estendido umas
brasas da lareira para aquecer as alheiras numa grelha de canos
ondulados que pareciam cabos das
colheres de lançar o caldo.
Permita-me só uma achega, lá em
casa, para pisar o unto, havia
uma gamela com um maço de madeira
que corria várias casas.
Américo

Fátima Pereira Stocker disse...

Sr. Américo

Obrigada por me ter lembrado o nome: gamela, pois claro! Eu bem puxei pela memória, mas não consegui. Agora já vou corrigir para que fique tudo certinho.

Faltou-me referir as caldeiras de cobre que, nas casas mais abonadas, substituíam os barrinhões.

Pensei nas grelhas, e visualizei aquelas que havia em casa de minha mãe. Mas como foram feitas pelo meu avô - e ainda nos servem a nós -, não as incluí, com receio de que pudessem não existir nas outras casas. Pelos vistos havia, embora de formato diferente. Terei de as incluir também.

Bem-haja pelas suas palavras.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Sr. Américo

Já incluí os acrescentos. Mas a conversa é como as cerejas, o senhor lembrou-me umas e eu, à medida que escrevia, fui-me lembrando de outras: as tenazes, o fole, o forno e a masseira, os reizinhos das alheiras, os carolos de pão e a carocha dele que ainda me consola!

Enfim, espero que venham mais comentários com outras lembranças.

Beijos

Filinto disse...

Fátima:
Como é bom relembrar a nossa infância.
Lembras-te de assar os chouriços doces embrulhados em papel e colocados debaixo da cinza? Não havia TV, logo era preciso passar o tempo. Alguns estarão a salivar...
Lembrei-me dum pormenor: a "mosqueira". Em minha casa havia, acho que era assim que se chamava. Servia para guardar a carne que sobrava quando era cozida e outros restos de comida. Tinha uma rede que era para as moscas não irem lá, penso eu.
Obrigado pela lembrança.
Filinto

Anónimo disse...

Boa tarde

Texto muito bem escrito e a trazer algumas memórias da casa de meus avós. A propósito das fechaduras em ferro enviarei em breve umas fotos das mais significativas que já encontrei em Trás os montes.

Antonio Carloto

Fátima Pereira Stocker disse...

Boa tarde, Filinto

Lembro, lembro, e muito bem: ainda há pouco tempo estive a falar disso com as minhas irmãs. Muitas vezes, até escusávamos o papel e púnhamos os chouriços directamente sobre a laje quente, cobertos com a cinza. Ficavam com um sabor sublime. Aos chouriços doces também lhes chamávamos "verdes", não é assim?

Quando terminar de escrever sobre as casas tenho de começar a escrever sobre a alimentação.

Sobre a "mosqueira": no texto escrevi "mosqueiro", referindo-me à mesma coisa que o Filinto. Vou corrigir, pois se o Filinto escreve no feminino é porque deve ser mesmo assim.

Beijos e muito obrigada.

Fátima Pereira Stocker disse...

Boa tarde, António, e seja muito bem-vindo

Bem-haja pelas suas palavras e, desde já, pelas fotografias que vou gostar muito de ver.

Cumprimentos

A. Fernanders disse...

Fátima:
Que coisa linda esta tua recriação das cozinhas de antanho. E como se chamava aquela cana de foguete com furos a várias alturas para dependurar as candeias? E não te esqueças, na futura recriação, das castanhas mamotas, maneira suprema de comer castanhas.
Bjs.

A. Fernandes

Fátima Pereira Stocker disse...

Viva, Tonho!

Boa pergunta, a tua. Agora que falaste na cana lembrei-me dela, mas tenho que inquirir primeiro, para a poder acrescentar.
E agora, acabei de me lembrar do tiçoeiro, aquele cavaco com nome próprio... há-de sempre faltar alguma coisa.

Beijos e muito obrigada

Américo Pereira disse...

Continuando com as palavras que bem se podem apelidar de só nossas
lembrei-me de um termo muito em uso lá em casa que vou explicar.
Para acender a lareira havia uma
peça em ferro ou em pedra com a forma de U onde era colocada toda a lenha. Quando não existia essa
peça aplicava-se um tronco de madeira que se chamava nem mais nem menos que ESTRAFOGUEIRO. Se o termo for válido é mais uma.

Augusta disse...

Parece-me que já chego um pouco tarde, mas a tempo de te dar os parabéns por este belo texto.
Lembrei-me de outra. Havia o tiçoeiro que era de madeira. Mas havia também a tiçoeira que era de pedra.
Beijinho

Fátima Pereira Stocker disse...

Sr Américo

O termo é mais do que válido. Muito obrigada pela lembrança. Do estrafogueiro não me hei-de esquecer quando falar da alimentação.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

Mas ainda vieste a tempo de acrescentar nova palavra. Tal como disse ao sr. Américo, quando falar da alimentação lá falarei do lume e daquilo que lhe diz respeito.

Beijos e obrigada.

Anónimo disse...

Me faz lenbrar meus tenpos de miúda em casa de vó macena na cerra. Lucy araújo.

Fátima Pereira Stocker disse...

Lucy

Que coisa tão bonita de se dizer. Obrigada!

Cumprimentos

Elvira Carvalho disse...

Muito interessante este texto onde encontrei palavras que em menina ouvi a meus pais e avós e que deixei de ouvir à muito.
Um abraço e obrigada pelas palavras de conforto deixadas no Sexta.

Anónimo disse...

Parabéns!

O texto que escreveu brilha mais do que um diamante ao Sol!

Dom Bonifácio de Toledo