segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

DEDICATÓRIA


AO "ANÓNIMO N.º 3"
(que vai desculpar-me a longura do texto, que ainda por cima não é meu...)

«Esta poderia ser uma breve história com três linhas narrativas. A primeira fala de um artista plástico, um escultor que, na fértil solidão do seu estúdio, contempla satisfeito a maqueta da sua última obra, uma estátua equestre de Alexandre Magno.

A segunda refere-se a um homem de Pietrasanta, uma belíssima cidade toscana. Mal o sol clareia, e sem outra ajuda além das suas mãos fortes e dos seus pés seguros, começa a trepar como um gato pela superfície lisa e vertical de uma montanha. Ele é um cavatori, um trabalhador das pedreiras de mármore.

A terceira fala de uma rapariga da mesma cidade. É jovem, bela, frágil, e só o vigor das suas mãos denuncia o ofício de mais de dez gerações que nela se prolonga; é marmorista, embora devesse chamar-lhe escultora, já que são precisamente as suas mãos destras que dão forma e harmonia ao que mais tarde serão obras de arte assinadas por prestigiosos mestres. A sua destreza é recompensada pelo apreço de alguns escultores, mas a grande recompensa chamar-se-á calcicose, ou tísica dos marmoristas.

O artista visita agora um arquitecto, estudam juntos o magnífico lugar escolhido para eternizar a memória de Alexandre Magno e do seu cavalo. Falam da iluminação que todas as noites fará ressaltar a nobreza do mármore, dos ciprestes que irão alinhar-se de ambos os lados da escultura, devolvendo ao herói a juventude dos seus combates.


Com o sol a arder-lhe sobre a cabeça e os olhos apenas refrescados pela longínqua presença do mar Tirreno, o Cavatori apalpa a superfície do mármore, dá-lhe toques (...) até que dá com o lugar onde espetar uma estaca de ferro. A ela atará a ponta de uma longa corda; a outra ponta cinge-lhe a cintura, e assim descerá pela encosta mais lisa e perfeita da pedra para marcar com maço e cinzel os cortes que delimitarão a estátua de Alexandre Magno e do seu cavalo. Cem metros mais abaixo, os companheiros observam-no, talvez mastigando pedaços de "toucinho marmorista", curado sem outro condimento além do alecrim e do vento das pedreiras (...).

A rapariga chega à oficina. Os seus passos erguem nuvens do fino pó de mármore que a História da Arte deixou por todos os recantos de Pietrasanta, e saúda todos os seus companheiros, que mal começaram a jornada já estão inteiramente cobertos de pó branco. Passada meia hora de trabalho, está como eles, e só a sua mão manipulando os velhos ou modernos instrumentos de trabalho a diferenciam das centenas de estátuas que (...) esperam a chegada dos grandes mestres para receberem o toque final e as assinaturas de rigor.

O artista passou talvez noites de insónia a realizar esboços, um após outro, até dar por fim com a sua representação exacta de Alexandre Magno. (...)

Decididamente, a mim não me interessam os heróis das vitórias. Decididamente, a mim não me interessam os heróis de mármore. Mas interessam-me, sim, os cavatori pendurados de alturas de pesadelo ou esmagados pelo peso às vezes infame da arte.

No passado mês de Maio estive em Pietrasanta e participei da comoção causada pela morte de dois cavatori. Pereceram debaixo de um bloco de mármore que se desprendeu da pedreira sem lhes dar tempo para nada. (...) Durante o funeral, o único artista presente disse que aqueles dois cavatori eram mártires que tinham morrido pela arte. Mas outro daqueles trabalhadores cuspiu o charuto barato que lhe pendia dos lábios e precisou: não, morreram porque falta segurança, morreram por um salário de merda.

E mais uma vez comprovei que a verdade das pessoas simples vale mais do que todas as verdades da arte.

Decididamente, a mim interessam-me as raparigas e rapazes marmoristas de Pietrasanta, esses que, mesmo sabendo que as suas vidas serão breves, porque o pó do mármore é uma maldição branca que lhes petrifica os pulmões, continuam a prolongar o formidável costume humano da beleza e da harmonia.

Se eu fosse escultor e me encomendassem uma estátua de Alexandre Magno, no sopé dela a minha assinatura seria a última. Primeiro, estariam os nomes dos cavatori que escolheram, cortaram e fizeram descer o mármore da montanha. Depois os nomes dos marmoristas que lhe deram forma, e de seguida os nomes dos que curaram o toucinho, dos que lhe chegaram o alecrim ao pé, dos padeiros e dos vindimadores do vinho fresco da Toscânia.

Leitor, leitor: quando estiveres diante de uma estátua esculpida em mármore de Carrara, pensa nos cavatori e nos marmoristas de Pietrasanta. Pensa neles e saúda o seu digno anonimato.»

Cavatori, in Luís Sepúlvedaas rosas de atacama

Imagem retirada daqui (entrando aqui também pode ver imagens interessantes).

2 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Anónimo n.º 3

Foram precisas muitas mãos a cavar para que poucas pudessem aprender a fazer outras coisas. Luís Sepúlveda diz isso de forma muito mais eloquente do que eu seria capaz, por isso transcrevi o texto dele.

Um abraço

Augusta disse...

As sociedades fazem-se de pessoas. E é com o trabalho de todos que elas se desenvolvem. Que comeríamos nós se não houvesse os agricultores e os pescadores? Onde viveríamos se não houvesse os trabalhadores da construção? Em que condições viveríamos se não existissem esses trabalhadores que, durante a noite, recolhem os resíduos que produzimos?
Enfim, permito-me dizer que ninguém tem mais valor que os outros. Têm, isso sim, atividades e funções diferentes, mas todas absolutamente necessárias ao nosso viver em sociedade.
Parabéns Fátima pelo belo texto que nos dás a conhecer.