terça-feira, 4 de março de 2014

AS NOSSAS PALAVRAS

quartos de dormir

O lugar mais íntimo e, provavelmente, o mais desguarnecido, era o dos quartos de dormir. Em regra, o seu número não ultrapassava os três, mas o normal era que fossem dois: um reservado aos pais e outro aos filhos. Neste caso, o espaço era dividido em dois, ou por uma porta, ou por uma cortina que separava os sexos. Frequentemente, os quartos eram divisões interiores, somente arejados pelo ar que entrava pela porta sempre aberta da cozinha, e iluminados, se o fossem, por uma clarabóia. Tudo ali é despojamento: uma cama de ferro e, às vezes, uma arca de madeira era tudo quanto lá existia. Pregos espetados na parede ou na porta faziam as vezes de cruzetas e era neles que pendurávamos a roupa de vestir, ou os benairos que houvesse. Sob a cama, para receber os alívios corporais nocturnos, escondia-se o penico, de esmalte ou de louça. Pouco havia para excogitar.

Dentro da arca guardavam-se os lençóis de linho mandados tecer noutras terras com o linho que as mulheres tinham fiado durante o Inverno, as colchas melhores e mais vistosas que eram postas à janela em dias de procissão e a toalha grande e branca que, no dia da festa grande ou por ocasião da visita pascal, embelezava a mesa da sala. Não menos importante, lá também se guardava a extensíssima toalha de linho ou de estopa que seria desdobrada na eira para a refeição dos malhadores. Noutra arca, se a houvesse, seriam armazenados os pães cozidos para a semana, ou os saquitelos do feijão seco, das casulas, das sementes dos frutos do ano seguinte, ou da linhaça.

A cama era simples: duas ou três barras à cabeceira e uma ou duas aos pés eram sustentadas por travessas de ferro. Sobre elas, e amparado por uma rede ou por duas tábuas atravessadas, estendia-se o enxergão, ou xaragão, de riscado. Duas aberturas deixadas estrategicamente na costura do meio permitiam que fosse cheio com a palha das últimas malhas, ou que ela fosse mexida após cada noite dormida. O seu perfume era doce e bom.

Os lençóis de linho, ásperos como língua de gato, eram luxo raro e dispensável. Outros lençóis não havia, por isso, a norma era dormir entre os cobertores de lã, também eles mandados tecer fora, com a lã fiada pelas mulheres. Nas noites mais frias de Inverno, a cama fazia-se com seis ou sete desses cobertores e, mesmo assim, havia quem aquebulhasse (1) a cabeça debaixo deles. Um rolo comprido era o travesseiro e quase nunca havia almofadas individuais.

No quarto dos pais punha-se o berço da criança enquanto fosse xagouro. O berço, assente em pernas largas que permitiam oscilar, era uma espécie de caixa de madeira, em que os lados, em vez de tábuas lisas, tinham grades. “Vai lá embanar a menina, que está a chorar!”

Ali pontuava mais uma peça: o lavatório de esmalte ou de louça para a higiene diária de toda a família. Mais raramente, um bidé. Sobre a arca era colocado o candeeiro de petróleo cuja manga de vidro permitia que a torcida ardesse sem a chama oscilar, dando uma luz menos pálida do que a candeia. Um sopro do pai apagava o candeeiro, mergulhando a casa na escuridão e no silêncio das boas-noites. Até amanhã.
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(1)   Eu nem sei como hei-de escrever esta palavra. Assim parece-me mal, mas não vejo alternativa melhor…

A imagem foi retirada daqui.

13 comentários:

Augusta disse...

Ainda bem que continuas. A seguir teremos seguramente a sala.
Mas olha: falas em enxergão, mas nós dizíamos xaragão. E as aberturas não eram de lado, eram na costura do meio do lado que ficava virado para cima. Assim, o colmo não saía e, a cada vez que se fazia a cama, este colmo era bem mexido para ficar mais uniforme, sem os altos e baixos provocados pelo descanso dos corpos.
Faltou-te ainda outra coisa. Então o penico? Eu já só me lembro dos que eram feitos de esmalte, mas antes, também os havia de louça. E bem bonitos por sinal.
Beijos e parabéns por mais esta narrativa

Anónimo disse...

Muito lindo,é o nosso passado aqui escrito por uma pessoa que tanto tem dado pela nossa terra.Muito obrigado,continua a fazê-lo pois nós gostamos ler o que escreves.Um abraço deste vosso amigo Duarte P
ires

Olímpia disse...

Como recebi o texto no email, vim logo escogitar. De facto estou atrasada nas notícias!
Concordo com a Augusta, no que diz respeito ao xaragão e ao penico. Sim, a abertura dele era ao centro e virada para cima.
Os quartos, nem todos eram interiores. O do avô Ramos, por exemplo, tinha uma janela.
Parabéns por manteres vivas as memórias da nossa meninice e as nossas tradições.
Vi que já escreveste outros. Vou ler.

Bjos

Olímpia

Anónimo disse...

Olhai os lírios do campo!...
Apesar da austeridade, e até alguma pobreza, nas casas de há cinquenta anos também se criaram lindas flores!

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

A memória prega-nos cada partida... eu juraria a pés juntos que as aberturas eram de lado. Vou já corrigir, até porque, ao responder-te, veio-me, nítida, a imagem de algumas espigas esmagadas que era preciso sacudir de cima da cama, ao fazê-la.

Sobre o nome, creio que dizíamos das duas maneiras, embora me retina mais no ouvido o "Inxergão". Vou acrescentar.

Quanto ao penico: lembrei-me dele ao começar a escrever, mas varreu-se-me da ideia enquanto escrevia. Também vou acrescentar. Obrigada pela lembrança.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Duarte

Muito obrigada tu, pela ternura das tuas palavras.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Olímpia

Quer o quarto do avô, quer o do tio Fernando tinham janelas, mas eram excepções. O mais habitual era que não tivessem.

Então só agora é que voltas a receber as mensagens no e-mail? Eu não mexi em nada, por isso, deve tratar-se de mais uma daquelas mexidelas do blogger que não entendemos.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Anónimo 2

"Olhai os lírios do campo", tema do evangelho do passado domingo. Que lindo é aquele "Sermão da Montanha"!

Muito terno, o seu trocadilho. E certeiro também porque, entre cravos e rosas, os nossos pais criaram um jardim de flores mimosas.

Cumprimentos

Elvira Carvalho disse...

Muito interessante.
Um abraço e bom fim de semana

Elvira Carvalho disse...

Comemora-se hoje mais um dia de... desta vez é o dia da Mulher. Toda a gente sabe o que eu penso destes dias. O que eu gostaria é que todos os dias fossem da mulher, do homem, da criança, do idoso, do doente etc. Ou seja que todos os seres humanos fossem tratados com igualdade e respeito em todos os dias do ano. Porém como sabem isto não passa de uma utopia, recente estudo da APAV, revela que em Portugal 1 em cada 4 mulheres é ou foi vitima de violência. Assim sendo resta-nos aproveitar o dia o melhor possível. E ter esperança que um dia as coisas mudem.
Feliz dia amiga.

Fátima Pereira Stocker disse...

Obrigada, Elvira!

Apesar de estes dias me não dizerem muito, reconheço-lhes a pertinência. Neste caso, é fundamental lembrar que, entre nós, as profissões maioritariamente femininas são mais mal pagas do que aquelas que são maioritariamente masculinas. Isto para não falar na violência exercida sobre as mulheres, etc.

Beijos

Idanhense sonhadora disse...


Olá Fátima , apenas digo BELO TEXTO !!!E como eu me lembro desses objectos de que fala ...Faz bem trazê-los à memória.
Bem haja
Beijinhos

Elvira Carvalho disse...

Está tudo bem p+or aí Fátima. O silêncio dos amigos sempre me preocupa pois nunca sei o que lhe dá origem. Um abraço e que Deus esteja consigo.