quinta-feira, 10 de abril de 2014

AS NOSSAS PALAVRAS

A SALA



A sala era o lugar da casa reservado à recepção das visitas mais importantes e, também, a menos usada. Visita acabada ou festa celebrada, esfregava-se o soalho e encerrava-se a porta para que tudo permanecesse limpo até à vez seguinte.

Na sala existia o guarda-louça onde se preservava o serviço de faiança dos dias importantes e, na sua parte cimeira, se embarravam as chávenas finas que nunca serviam porque o café da manhã era tomado por uma malga e o chá era bebido por um púcaro de esmalte, à merenda ou a qualquer hora. As chávenas lá estavam, pois, cumprindo a importante função de não servirem para coisa nenhuma. Quando começou a emigração para as terras de França, meia dúzia de copos finos e uma ou outra taça mais bonita, trazidos como lembrança nas férias de Agosto, passaram a merecer honras de figurar na parte envidraçada do guarda-louça.

Havia a mesa grande que, com o passar do tempo e o aumento das posses, foi substituída por outra que se podia encartar, ficando mais pequena e rodeada por meia dúzia de cadeiras onde se sentavam as visitas nas datas de cerimónia. Debaixo da mesa, para que os convivas não atrecessem nos dias frios, uma braseira de cobre (ou de folha) assentava sobre a rodilha de palha que os homens entrançavam. É extraordinário como daquelas mãos grossas e calejadas saía um objecto de tanta arte!

Havendo-as, era nas paredes da sala que se expunham as fotografias da família. É singelo que assim acontecesse, pois, ali colocadas, como que continuavam a participar dos momentos essenciais dos seus, testemunhando o devir das gerações. Tais fotografias serão, talvez, uma manifestação do culto aos deuses Lares, divindades que personificavam os antepassados e a quem os romanos destinavam altares domésticos. Benditos romanos que também isso nos legaram!

Se a ocasião fosse de luto, tudo na sala era coberto antes de a pessoa falecida ser colocada em urna aberta sobre a mesa. À cabeceira punha-se um crucifixo e, aos pés, a caldeirinha de água benta trazida da igreja. Para o mortório, toda a casa era pequena, porque gente todos os arredores vinha prestar a última homenagem. Depois de momentos assim tão tristes, a sala fechava-se por muito tempo, porque a vontade de festejar demoraria muito a voltar.

Não se fariam festas, mas para o Senhor a porta abria-se sempre: nos Reis, em vez de cantarem, os cantores rezavam e, na visita pascal, a toalha mais alva cobriria a mesa. Sobre ela, um ramo de pascoelas, colocado aos pés de Cristo crucificado, lembravam que Ele é a ressurreição.
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Nem todas as casa tinham sala, como muito bem lembrou o Tonho no seu primeiro comentário.

A maior festa de família que se desenrolava na sala era a da matança, como lembrou o Filinto, cujas palavras transcrevo para aqui: «Ali se reunia toda a família e vizinhos mais chegados. As cozinheiras comiam na cozinha, mas na hora de rezar pelos familiares defuntos todos se reuniam naquele lugar que quase era "sagrado". Após as orações era ali que os pais jogavam a sueca, sem faltar a braseira debaixo, embora não fosse muito necessária, pois baco ajudava.»

Pormenor imperdoável: não me lembrei da estrutura de madeira - hexagonal? - que, aberta no centro, suportava a braseira. Apesar disso, recordo-me de ver algumas assentes em rodilhas que eram iguais àquelas em assentavam as caldeiras.

Obrigada pelos comentários que me permitiram afeiçoar o texto à verdade dos factos.

17 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

A todos

Amanhã estarei a caminho de Rebordaínhos, onde passarei a Páscoa. Só depois de regressar voltarei a ter acesso à Internet, motivo pelo qual não poderei responder aos comentários que surgirem.

Deixei agendado um desejo de Páscoa feliz, como convém.

Lurdes disse...

Fátima,
Mais uma linda narrativa como já nos habituaste. Ao ler este teu texto lembrei-me da sala em casa dos meus avós paternos estava lá tudo como descreves até os retratos da família, também havia plantas verdes, as begónias e tinha outra que não sei o nome.

Beijos
E boa viagem para amnhã!

P.S. Já sabes que a minha net na aldeia continua disponível podes vir cá a casa sempre que quiseres, e no café no Bino agora também já tem net.

Lurdes

Américo Pereira disse...

Fátima, em primeiro lugar os meus
cumprimentos e obrigado pelo texto
que é um espelho vivo do que eram
na generalidade as casas na nossa
aldeia e maneiras de conviver.
Que tenha umas boas férias em paz com toda a família. Bjs
Américo

Elvira Carvalho disse...

Vim retribuir os votos de Páscoa Feliz. Agradecer o carinho e amizade que me tem dispensado e dizer que na volta, se me der o seu email, eu lhe envio o conto com muito gosto.
Um abraço e tudo de bom para si.

Augusta disse...

Fátima:
Mais uma fantástica narrativa que descreve com rigor a sala e a sua serventia. Acrescento apenas, que às vezes em vez da rodilha de palha havia uma base de braseira feita em madeira e, tal como a Lurdes, acrescento as begónias e a erva de sombra que, noutros lugares, lhe chamam erva fortuna.
Beijos e até amanhã

antonio disse...

Olá Fátima! Bem-vinda e que tenhas óptima viagem. Quanto ao teu texto, não resta muito para acrescentar, porque dizes tudo e muito bem... era assim noutros tempos! Apenas uma pequena observação: não havia salas em todas as casas...
Beijos

Filinto disse...

Os meus votos de uma Páscoa feliz. Excelente texto das salas da nossa aldeia.
Permite-me acrescentar um pormenor das festas em que esta era utilizada: na matança. Ali se reunia toda a família e vizinhos mais chegados. As cozinheiras comiam na cozinha , mas na hora de rezar pelos familiares defuntos todos se reuniam naquele lugar que quase era "sagrado". Após as orações era ali que os pais jogavam a sueca, sem faltar a braseira debaixo, embora não fosse muito necessária, pois baco ajudava.
Filinto

Anónimo disse...

Gostei muito da descrição da sala da casa de Rebordainhos de antes do 25 de Abril de 1974. Nessa altura, apesar do meu espaço, no sentido geográfico do termo, ser um pouco afastado de Trás-os-Montes, o meu tempo era praticamente igual ao dos povos serranos.
A minha sala era diferente da de Rebordainhos apenas nos pormenores. Onde a autora refere que “encerrava-se a porta”, eu recordo que, pela época da Páscoa, encerava-se o soalho de tacos de madeira. Também tínhamos a mesa de abrir ao centro da sala, e, se não eram as pascoelas, ou primaveras, que a enfeitavam para ajudar a receber com alegria o Compasso, o certo é que uma jarra com florzinhas da época pascal faz parte das minhas memórias.
Ao centro do teto estucado havia um candeeiro dourado de latão com cinco braços artisticamente trabalhados em rendilhados de metal, que serviam de suporte às lâmpadas elétricas de incandescência, e de onde pendiam muitos vidrinhos multiformes que se tornavam brilhantes quando de noite se ligava a luz. Também me lembro de uma cristaleira, que provavelmente não tinha cristais, mas era onde se guardava a louça e os copos mais elegantes e as garrafas de vinho fino ou de outras bebidas espirituosas.
Os velórios eram semelhantes aos de Rebordainhos, mas normalmente, para além dos familiares e amigos, a participação dos habitantes da freguesia restringia-se aos vizinhos solidários da rua, porque a terra já era muito grande.
Em meados dos anos sessenta, entrou na sala a televisão, a preto e branco, que passou a ser o centro das atenções, já pelos programas que transmitia, especialmente pelos desenhos animados, já porque se avariava muitas vezes obrigando as pessoas a baterem-lhe, no sentido próprio do verbo, com força.
Até que os capitães de Abril fizeram um golpe de estado, assumindo de uma vez por todas a sua derrota perante os terroristas e as potências estrangeiras que os apoiavam, e apearam do trono o autêntico déspota que era o Professor Doutor António de Salazar, que foi imediatamente levado para uma masmorra, fria, húmida e fétida, na fortaleza de Almeida, onde o agrilhoaram de pés e mãos, para que, a pão e água, pudesse expiar as culpas, que já na época eram muitas, mas às quais a nossa geração pode acrescentar a culpa de o seu governo ser a causa primeira da inenarrável ignomínia de Portugal ser hoje governado por uma troika estrangeira e cruel que nos roubou a liberdade, chegando ao ponto de não nos permitir decidir sobre coisas tão comezinhas como os nomes das nossas freguesias, as rendas das nossas casas, os nossos salários, os nossos feriados nacionais!...
Mas, para não perder o fio à meada, voltemos a 74, quando os heróis de Abril entregaram o poder ao povo, que, nesse ano e no ano seguinte, era constituído pelo Doutor Álvaro Cunhal e pelos seus camaradas mais fiéis do Comité Central do Partido Comunista Português. Imediatamente, as salas e restantes divisões das casas, sofreram uma transformação completa: toda a gente pôde comprar micro-ondas, o computador, que até aí apenas se podia encontrar nas Universidades, passou a ser um eletrodoméstico corriqueiro ligado à fibra ótica que, por imposição de decreto-lei do Conselho da Revolução, passou a fazer parte do equipamento básico da casa revolucionária portuguesa; onde ainda não havia esgotos e água canalizada, passou a haver; para adoçar a boca do povo, foi permitida e incentivada a cultura do quivi, que também passou ir à mesa do pobre, que passou a ser rico, etc, etc, etc.
Uma Boa Páscoa e um bom 25 de Abril!

Anónimo disse...

Pronto,
O aloulado voltou à carga!

Anónimo disse...

Sr. Anónimo,

A sua sala já era uma sala de rico e da cidade, porque na aldeia, e até mesmo na cidade, nesse tempo, não havia tacos mas sim, tabuas corridas. Tambem não eram enceradas mas sim esfregadas com uma escova de piaçaba rija, agua e sabão. Encerrar, encerravam-se os porcos e os burros por debaixo desse soalho de tábuas largas que geralmente eram de castanho.
D. Fátima,
Fez um texto muito bunito! Escreva mais que eu gosto muito de ler.Permita-me que faça um piqueno reparo.
A rodilha servia para por a braseira?! Não era para por as caldeiras de cobre quando se serbiam delas, e quando não eram precisas, eram muito bem esfregadas para ficarem muito lusidias, eram postas em cima das rodilhas a enfeitarem as cusinhas .
O suporte da braseira não era feito em madeira?!
Desculpe o reparo
Um beijinho
Tentei não dar erros,
Anonimo nº 3

antonio disse...

São fabulosas e surpreendentes as descobertas, que nós subscritores, tentamos analisar, com óbvia relatividade, em relação suposta aos anonimatos! E o malabarismo ou diversão que estes últimos( no sentido da expressão) tentam inculcar para não serem desmascarados... voltei aos meus tempos das transmissões, e à criptagem em morse, daquelas mensagens reservadas que só o supremo superior tinha acesso.Havia também as secretas, muito secretas e de rotina...
Será que os detalhes, de um texto escrito segundo recordações, imperam em detrimento da mensagem que a autora tentou fazer passar? Dá pica né?
Entre o estrado de madeira, suporte da braseira, e o "rondela" entrelaçada, suporte das caldeiras de cobre, - e não só- o soalho, os tacos (coisa chic) a avaliação ortográfica e a tendencia politica existem factos reais aos quais ninguém quis dar importancia... eu nasci numa sala porque nessa casa não havia quartos... e, sobrevivi aos terramotos do japão, aos tornados dos USA, e aos nevões de Rebordainhos!
Conheço perfeitamente a sala descrita pela autora do texto... mas, também conheci outras... meus caros conterãneos: para que servem as querelas e os présupostos sabendo que todos teremos um dia de "bater a bota"? "piqueno ou graúdo" rico ou pobre; Doutorado ou analfabeto, a humildade não tem defeitos.
Abraço

Augusta disse...

Como eu gosto destas picardias!! Como me fazem rir... e, como tal, são terapeuticas.
Um abraço a todos

Anónimo disse...

Finalmente, alguém deita água na fogueira para acabar com estas picardias quase inúteis! Tanta lucidez tinha de vir de uma Augusta pessoa!
Pela minha parte, com o pseudónimo de Bonifácio de Vila Nova das Patas, ou, simplesmente, Bonifácio, tenho a dizer que o texto de Fátima Stocker está muito bem escrito; os regionalismos usados também são muito interessantes e, humildemente, reconheço que um ou outro termo mais picaresco vieram aumentar a minha bagagem cultural. Quanto à mensagem implícita, que tanto perturba o senhor António, consegui respigar o seguinte:
A aldeia de Rebordainhos, com a sua população de há 40 anos, era rústica, muito católica e pobre.
Limitei-me a explorar um bocadinho esta simples mensagem, pelo que não terei cometido um crime de lesa-blog, mas mantenho-me tranquilo porque tal crime não está previsto no quadro legislativo que rege a República Portuguesa.
Felicitações,
Bonifácio de Vila Nova das Patas

Anónimo disse...

Mas, quem é que picardou?!Apenas se tentou dizer para que é que as rodilhas serviam! Estes bidrinhos ficam embeiçados com pouca coisa!

Anónimo disse...

Os cães ladram, mas a caravana passa!
Não desistam!
Bonifácio de Vila Nova das Patas

Fátima Pereira Stocker disse...

A todos

Grata pelas vossas palavras e partilha, porque também é bom conhecer outros modos de viver. Quero, no entanto, esclarecer o primeiro anónimo que "encerrar", ou "cerrar" significa "fechar".

Tonho
Estava convencida que tinha referido isso no texto, mas não o fiz, como se comprova: tens razão, nem todas as casas tinham sala. Obrigada pelo reparo.

Filinto
E não é que me esqueci dessa cerimónia tão importante? Bem-haja por mo lembrar.

Cumprimentos a todos

Anónimo disse...

Olá Fátima Pereira Stocker: informa-me por favor, se agora em 2016 já há aceso à Internet em Rebordaínhos? Do que escreveu em 10/04/2014, depreendi que não teria acesso à net.
Estou a pensar ir até Rebordaínhos - cujo nome e localização apenas conheço por PÉSSIMOS MOTIVOS - e se fico numa pensão ou hotel, ou se vou a um café ou restaurante sem WI FI... sabe a falta que hoje em dia faz, não é?... Obrigado.
PS - "anónimo" pelo receio de represálias relacionadas com "PÉSSIMOS MOTIVOS".