Quando, lá fora, caíam valentes zurbadas de água, as mães não nos deixavam pôr o pé na rua. Entreter o tempo era um desafio que preenchíamos o melhor que éramos capazes, que é como quem diz, com barulheira. Assim era, pelo menos, no nosso canto preenchido de três casas (ao tempo destas recordações, ainda a tia Cândida e o tio António não moravam ali).
Alguém se lembrava e gritava:
Está a chober e a nebar
a raposa atrás do lar
a fazer os casaquinhos
P'ra amanhã s'casar!
Logo a garotada das outras casas assomava ao espaço que lhe desse acesso à rua e a cantilena era gritada até fartar. A certa altura, mantendo a cadência, variava o rifão, alardeando-se:
Chobe, chobe
no cu do pobre
Chobisca, chobisca
no cu do Francisca!
Com aquele "chobizca" (assim se pronunciava) esperávamos espantar o mau tempo - não sei se por piedade do pobre e do "Francisca", se por desejos menos altruístas.
Cansados das lengalengas virávamo-nos para as nomeadas de nossos pais, mas em grupos de duas casas, pois nenhum filho trataria seu pai com menos respeito do que o devido:
- "Fouce! Fouce!Fouce!Fouce!" - Gritavam o Orlando e a Lena, da janela da sala, secundados pelo Tito no alpendre das escadas, enquanto nós, também no alpendre da nossas, nos calávamos.
- "Piloto!Piloto!Piloto!Piloto!" - Gritávamos a Olímpia, eu e o Tito, connosco as duas encostadas à ombreira da porta.
- "Piqueno!Piqueno!Piqueno!Piqueno!" - Berrávamos, depois, os restantes.
Estávamos nisto tempos infindos e não sei como não enrouquecíamos nem como as nossas mães nos aturavam tanta vozearia. Deus lhes pague pela paciência que tiveram connosco.
Sol na eira
chuva no quintal
__________//_________
O comentador de pseudónimo Rebordainhense ofereceu-nos outra versão da primeira lengalenga e uma outra que eu nunca tinha ouvido. Aqui ficam:
Está a chover e a fazer sol,
As bruxas juantam-se p'ra fazer
As bruxas juantam-se p'ra fazer
pão mole.
Sol na eira
chuva no quintal
pão douradinho
Nabiças a verdejar
________
Sem nada ter a ver com o artigo, mas tendo tudo a ver com o próximo domingo, dia 25, encerro com uma tira cáustica da Mafaldinha da minha adolescência.
13 comentários:
Está a Chover e a fazer sol,
As bruxas juantam-se p'ra fazer
pão mol.
Sol na eira
chuva no quintal
pão douradinho
Nabiças a verdejar
Um abraço
Pois é, tudo se herda. Até as brincadeiras dos mais velhos. Para além dessas, lembro-me bem de brincarmos no sobrado da nossa cozinha, em noites de inverno. E as brincadeiras incluíam o jogar da pedrisca desenhada nas tábuas, a porca perrincha com o montinho de cinza... Tudo isto acontecia quando não havia estórias de bruxas e bruxedos contadas pelos mais velhos, e que nos faziam ir borradinhos de medo para a cama. Como não havia luz elétrica, e o percurso era escuro, lá íamos nós com os braços esticados para a frente. Assim, se alguma bruxa ali estivesse, podíamos tocá-la... e fugir.
A Mafaldinha mostra-nos com as suas gargalhadas incontidas um sentido de humor muito inteligente.
As lengalengas das crianças, para além da sua beleza e ternura, eram também gritos de ânsia de liberdade de quem se sentia preso em casa e numa pobreza asfixiantes.
Convém recordar que eram os pais e os avós que lhes ensinavam as cantilenas.
Peço, desde já, desculpa aqueles que acharem que com este comentário estou a hipervalorizar o cu da Francisca.
Muita saúde,
Dom Bonifácio de Alarcão
Rebordainhense
Muito obrigada: não conhecia essa variante do "está a chover...". A segunda desconhecia-a completamente. Em ambas está-me a ser difícil encontrar o ritmo certo de as dizer. Ensina-me no Verão em Rebordaínhos? Vou acrescentá-las ao artigo.
Cumprimentos
Augusta
As memórias puxam memórias. A grande pena é que os jogos ensinam-se e aprendem-se, jogando-os. Escrevê-los não lhes dá a vida com que os animávamos.
Beijos
Dom Bonifácio de Alarcão
A supervalorizar o dito de alguém, será o do Francisca. Não me pergunte porquê, mas era mesmo assim que dizíamos, esse trocadilhos entre o artigo masculino e o nome feminino.
Já agora: é o mesmo Bonifácio dos comentários ao artigo sobre os enxambladores?
Cumprimentos
Meus caros,
Desculpem-me se invado desta forma abrupta o vosso espaço de cultura e recreio, mas preciso de desabafar com alguém um segredo que guardo dentro de mim há exatamente quatro décadas.
Corria o mês de Maio de 1974, na linda cidade de Florença, em Itália, quando, numa tarde soalheira de domingo um sujeito de barbas muito brancas, tão brancas e encaracoladas que pareciam de algodão, bateu com força à porta do pequeno apartamento que eu alugara há dez anos atrás, após tomar a resolução firme de me doutorar em Matemática Pura na Universidade de Pisa. Abri a porta e, antes que pudesse articular qualquer palavra, o homenzinho atirou-me à cara:
- Vossa excelência é Português?
- Sim, foi em Portugal que eu nasci, numa linda terra nas margens do Côa e, digo-lhe mais, durante muitos anos pude alongar as vistas, através das vidraças da janela do meu quarto, para as lindas gravuras rupestres que enchem de beleza as rochas xistosas dos montes da minha terra – respondi, ainda meio atordoado com a inesperada visita.
- Então peço-lhe licença para entrar nos seus aposentos, pois a mensagem de que sou portador é certificada com equivalência a segredo de Estado, pelo que, V. Ex.a compreende, o recato de que precisamos não é garantido pelos umbrais de uma simples porta aberta.
Conduzi-o imediatamente para o meu pequeno escritório. O homem misterioso sentou-se numa cadeira que lhe ofereci, pediu-me que fechasse a porta à chave e corresse as cortinas. Depois, muito nervoso, tirou apressadamente de uma pasta mais de 500 folhas de papel, manuscritas com uma letra muito miudinha, com tal falta de jeito que a papelada voou pelo ar e acabou por cair, formando um tapete contínuo no chão. Eu não tinha falta de tapetes, mas o incidente serviu para aumentar o isolamento térmico e acústico da divisão, que assim ficou à prova da barulhenta vizinhança italiana que me vinha atormentando as noites.
O visitante permaneceu imperturbável e disse num tom de voz tão baixo que era praticamente impercetível:
- A mensagem que lhe quero transmitir foi-me confiada por um grande explorador científico da pequena aldeia de Rebordainhos, situada nas faldas da serra da Nogueira, que, na viragem prodigiosa do século XIX para o século XX, quando não existiam limites de criatividade na Literatura, nas Belas Artes ou nas Ciências, teve a ousadia de organizar e realizar- realmente!-, uma viagem ao interior da Terra, tendo-me garantido a pés juntos que alcançou a profundidade de 250 km, contados a partir da estação-base do Cabeço Cercado, por onde, à força de picaretas e marretadas se iniciou a penetração da crusta. Esse grande homem esquecido, a quem, até hoje, nem a província transmontana, nem a nação velha de nove séculos que é Portugal, prestaram a mais pequena homenagem, era o Professor Doutor Joaquim Amado Lobão. (continua)
Cumprimentos,
Simplesmente Bonifácio
Passei só pra dar um oi e dizer que continuo lendo tudo que é postado na página. Só não tenho comentado por absoluta falta de inspiração, mas o dr. Simplesmente Bonifácio com suas hilárias lendas e narrativas fez desentorpecer parte de minha massa encefálica e quase mijar de tanto rir!..................
bjs
Muito obrigado senhor doutor Rebordas.
O seu sentido de humor é grande, mas a perspicácia que revela com o seu comentário é genial!
Bem haja!!
Simplesmente Bonifácio
Dêem-lhe trela que é o que ele/ela quer. O curso dele/dela de matemática é equivalente ao meu, agrónomo da bata podre. Foi tirado na mesma faculdade.
Ainda cá volto. Esqueci-me de assinar.
Simplesmente Maria
Calma aí, minha Senhora,
Cada um fala por si. No meu tempo, quem não soubesse o que era o esternocleidomastoideo não chegava a doutor. Se da sua parte houver honestidade intelectual, é impossível que me confunda com o cherne do verão quente, que foi aprovado no curso por votação de braço no ar dos colegas maoístas, ou com os praxados alienados da atualidade, que são aprovados após se introduzirem numa barrica de vinho do porto que o dux faz rebolar desde o alto das Escadas do Codeçal até lá baixo ao rio Douro.
Simplesmente Bonifácio
No seu tempo, quem não soubesse o que era o ingaço, levava com ele no lombo!
Simplesmente Maria
Enviar um comentário