domingo, 29 de junho de 2014

CARTA A UM TIO QUE NÃO CONHECI [parte I]

Ex.mo Senhor,
Honorato António Pires
Soldado n.º 0461, Regimento de Infantaria 21, 10.ª Un. de Mob.
Porto Amélia – Moçambique


Meu tio

Tenho, nesta altura, a idade aproximada que teria sua mãe  quando o viu pela última vez, fará, não tarda, cem anos. Sua mãe, Perpétua Maria Pereira, e seu pai, José dos Santos Pires, são meus bisavós maternos. Saiba que sou neta de sua irmã Olímpia da Conceição a cujo casamento assistiu, e que lhe há-de lembrar bem, por ter sido celebrado no ano a seguir à implantação desta República que o mandou a si para a guerra.

Escrevo-lhe olvidando as estatísticas que me asseveram ser quase impossível que o senhor soubesse ler. No entanto, porque Rebordaínhos foi, desde muito cedo, lugar com mestre-escola, acredito que tenha aprendido, pelo menos, as primeiras letras. Escrevo, pois, com a confiança de que poderá decifrar a minha prosa.

Escrevo-lhe, ainda, sem saber para onde fazê-lo: registo que é Porto Amélia (sabia que, agora, se chama Pemba?), na esperança de que alguém, no exército português, se encarregue de encaminhar a missiva.

Sei que nasceu em 1894 e que teria 21 anos quando foi recrutado, aí por meados do ano de 1915. Não imagino porque carga de água foi parar a Infantaria 21, que é de Penamacor, e foi por esse motivo que demorei a chegar até si: eu procurava-o entre aqueles que incorporaram o Regimento de Infantaria 30, que é de Bragança, e que integrou a “Terceira Expedição” (1916) com destino a Moçambique. Afinal, o senhor partira antes, na “Segunda Expedição”, que zarpara do Tejo em Outubro de 1915 e chegara a Porto Amélia em Novembro seguinte.

O tempo, que em Rebordaínhos corria ao ritmo lento das estações, sofreu uma alteração profunda para si: saltou da nossa aldeia para os lugares onde fez a recruta e que não sei quais foram, daí para Lisboa, depois desceu o Oceano Atlântico, dobrou as Tormentas e subiu o Índico. Tudo num processo acelerado de poucos meses. Na nossa terra os bichos tinham melhor acomodação do que aquela que lhe foi dada no navio onde o encafuaram, e aos outros soldados, um espaço insalubre onde não entrava luz nem ar. Respirava-se, vomitava-se, urinava-se e defecava-se sem sair do lugar. Os mandantes tratavam assim aqueles a quem pediam galhardia na defesa da pátria. Diabos os levem, fossem lá eles parar com os costados! Houve revoltas a bordo. Diz-se, até, que os oficiais se recusavam a descer para obrigar os soldados à higiene, com receio de serem anavalhados. E era a estes cobardes que competia conduzir homens em campo de guerra! É verdade que também eles estavam pouco preparados porque, na ânsia de suprimir aqueles que fossem afectos à monarquia, quase todo o oficialato fora substituído por sangue novo de fervor republicano. É verdade, sim, mas cá para mim isso não passa de cobardia e de desprezo pelos compatriotas, vindos das berças, como diziam com desdém. Desprezo porque cheiravam a esterco em vez de exalarem aromas de Paris, desprezo porque não disfarçavam o aspecto hirsuto atrás de fatiotas de dandy, desprezo porque, sendo do mundo rural, eram obedientes à Igreja Católica, desprezo, enfim, por não sofrerem da sífilis contraída nos bordéis da moda. Ignoro se o senhor, meu tio, pertenceu ao grupo daqueles que se amotinaram, mas tenho a certeza de que sentia a dor de não poder pisar as nossas fragas e olhar o horizonte imenso que delas se descobre.

Estiveram pouco tempo em Porto Amélia, uma baía linda onde deveriam ser treinados ao mesmo tempo que se adaptavam ao clima. Porém, a urgência dos ingleses e as decisões irreflectidas do governo de Lisboa, que pensa que é só mandar e ser obedecido, obrigaram a que se entrasse cedo em acção. Aqueles senhores nunca devem ter olhado para um mapa de Moçambique, nem nunca lhe devem ter estudado o clima, contudo, sentiam-se competentes para gizar objectivos e estratégias. E para exigir! Era preciso, custasse o que custasse, que houvesse portugueses em solo colonial alemão assim que os ingleses derrotassem os boches em África. O custo obrigou a que até os doentes recebessem ordem de marcha! Estava o senhor entre esses, tio Honorato?
  
A segunda expedição devia contar com as informações recolhidas pela primeira, enviada em Setembro de 1914. Competia-lhe fazer o reconhecimento dos postos alemães nas margens do rio Rovuma, tentar perceber-lhes os efectivos, encontrar os locais estratégicos para montar os postos portugueses, enfim, competia-lhe preparar as coisas para quem viesse a seguir. Nada fizeram, porém! Como dizemos na nossa terra, foram uns merdas que mal saíram de Porto Amélia, com o Rovuma a largas milhas de distância. Mas celebraram bem o 5 de Outubro, como se pode ler na “Ilustração Portugueza” de 10 de Janeiro de 1916. Veja lá a que ritmo chegavam as notícias A Lisboa! 

5 comentários:

Petrus Monte Real disse...

Fátima

A carta é um verdadeiro hino de Amor a um ente querido, que aqui representa a família as raízes de ligação à terra.
Em simultâneo, é uma lição muito bem documentada e de grande valor histórico (imagino quanto tempo não gastou em arquivos e bibliotecas!). Fiquei a saber coisas que não se estudavam, nem se estudam, nas escolas.
Finalmente é acto de coragem, digno de enaltecimento.

Obrigado

Cumprimentos
das terras da Beira Alta.

Fátima Pereira Stocker disse...

Petrus

Muito obrigada pelas suas palavras.

Cumprimentos

Augusta disse...

Vê bem o que tu sabes! Eu desconhecia completamente a existência deste tio!
Fora de brincadeiras. Que excelente lição nos dás. E o que aprendemos contigo!!
Beijinho

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

Andas esquecida! Foste tu comigo ao "Principal" ver o nome do tio Honorato!

À meia-noite sai a segunda parte.

Beijos

Elvira Carvalho disse...

Só hoje vim ler esta carta que é um relato histórico de uma época.
Um abraço vou ler a segunda parte.