sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

BOM PROVEITO


O verbo comer é um verbo engraçado e  vem a propósito do muito que manducamos(1) nesta época festiva.
O Latim clássico tinha o verbo edere e só no Latim tardio surgiu comedere, ou seja, “edere” com alguém: as refeições só satisfazem quando se está acompanhado, digo eu.
Em Latim também existia um tempo verbal que nós não temos: o Particípio Presente. No caso que nos interessa, aquele que come será o commens e daí virá o nosso “comensal”, embora com alguma alteração do significado.

O que me traz aqui é a nossa comenência, vocábulo que não vejo registado em lugar nenhum. Mas eu acho-lhe tanta graça que gastei um ror de tempo à procura da sua origem e, confesso, andaria perdida se não fosse uma proveitosa conversa com o meu irmão Evaristo que me alertou para a sua relação com “comer”.

Voltemos ao Latim, onde o sufixo “entia” (entre outros) se originou a partir do Particípio Presente acrescido de “ia”: confidens / confidentia; credens /credentia, etc. No nosso caso: commens / commenentia. Em suma, do verbo nasceu o substantivo.

Tendo o sufixo “ência” valor de “estado”, “qualidade” ou “resultado de acção”, então a nossa “comenência” significará “estado ou qualidade daquele que comeu”. Ora, se comer é uma coisa boa, de grande valor, tal significado parece esbarrar com a acepção que costumamos dar à palavra: coisa pouca, sem importância nenhuma. A alguém que recebeu um presente sem valor nenhum dizemos “deram-te cá ũa comenência!

Tenho, para mim, que a ironia é um dos traços mais marcantes do nosso modo de ser. Lembremos, por exemplo, que lamentamos quem sofreu um grande prejuízo, exclamando: “tebe cá ũa esmola, o pobre!” Creio que se passa o mesmo com a comenência: profere-se, querendo afirmar o seu contrário. Eu metia-me com o Gilberto, chamando comenência a um cão minúsculo que ele tinha… “Onde está a comenência? – perguntava-lhe.

Em abono do significado de comenência como coisa boa ou importante lembrei-me que, às vezes, usamos a expressão sem ironia. Nos dias que correm, posso afirmar sem sombra de dúvida que o meu ordenado não é comenência nenhuma!
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(1) Manducar, apesar de alguns dicionários referirem que é verbo de utilização popular, entrou no Português por via erudita, tão próximo que está do original: mandūcāre.

A ilustração é uma iluminura do livro de horas do duque do Berry (séc. XV).

6 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Porque me deu muito trabalho, eu espero que ninguém venha para aqui dizer "este artigo é cá uma comenência!"

Rebordas disse...

Mais uma palabra que já tinha sumido da minha memória.
Obrigado Fátima por mais esta lição de rebordainhez.

Beijos
César

Augusta disse...

Mas por caso até é uma comenência - mas sem ironia. É de ler e esperar por mais.
Ora bota p'ra cá mais tantinhos dos teus fartos conhecimentos.
Beijos

Serrana disse...

D. Fátima,

Quem num trabuca num manduca! Costuma-se dizer assim.

"Cumnência" Uso muito esta palavra.
Quem pode dar alguma coisa de jeito dá uma bodega que não aquece nem arrefece. Quando se emprestava o furmento para cuzer o pão e quando nos era devolvido, a minha mãe, costumava dizer. Emprestei um furmento e não emprestei esta cumnência!

Um beijinho grande

Unknown disse...

Fatima meu nome é silvia, moro no Brasil e sou neta de Ana piedade branco que nasceu e morou em rebordainhos. E 1911 veio ao Brasil deixando familiares. Você poderia conseguir algum contato de meus familiares agradeço.

Rui disse...

Cara Sílvia,

Penso que posso ajudá-la. Pode entrar em contacto comigo por email para: freixedelo [arroba] hotmail.com .

Cumprimentos