domingo, 18 de janeiro de 2015

ECOS DO MEU SENTIR - XI

I - QUEM TE VIU E QUEM TE VÊ
por: filinto martins

“Ora esguardae, como se fosseis presente, d’uma tal cidade assim desconfortada…”  (1)
18 de Novembro de 2014.


Acho que me enganei na estrada… à entrada da povoação cruzo-me com um carro da recolha do lixo… só faltava a placa identificativa “Rebordainhos City”, mas não, era mesmo verdade.
Parei no Prado, lugar amplo e de grandes desafios de fito e lançamento da relha nos meus tempos de miúdo. Que diferença! Não pude esquecer o senhor Ernesto, repito, senhor Ernesto, pois só o professor Ribom e o Carlos sapateiro eram assim chamados… acho que ele merecia tal distinção, porque na minha memória ficou o uso de suspensórios e não o cinto, como os demais homens de bem de Rebordainhos.

Para o senhor Ernesto, e outras casas de lavradores mais abastados, trabalhavam os moços da aldeia, que o dinheiro não abundava, porém ele era mesmo muito sovina, não apertava o cinto… que o diga o “Santa Combinha”. Após um dia de trabalho, diz-lhe:
- Um pingacho e dez tostões fica o menino bem pago…
Logo D. Denérida (santa mulher) acrescentou: “leve umas batatas”.
- Não, D. Denérida, batatinha não, D. Denérida. Um pingacho e dez tostões fica o menino bem pago.
Poucas vezes falei com D. Denérida, mas o seu falar e olhar eram uma doçura e penso que só não lhe deu as batatinhas às escondidas se não pôde.

Um azar nunca vem só. Quando o Santa Combinha andava a fazer um “apanhadouro” dum castanheiro do senhor Ernesto, teve necessidade de evacuar, como sucede com os caçadores que andam pelo mato. Nada melhor que junto ao tronco do castanheiro, embora o vento da serra não fosse nada agradável.
O senhor Ernesto, que gostava de ir ver os trabalhos feitos e contemplar o seu pombal, logo que deparou com tal situação exclamou:
- Ai menino, preferia que mo tivesse feito no prato!

Era assim naqueles tempos em que o adubo “nitremoncal” dos campos era substituído pelas “estrumeiras” que cada um fazia na rua em frente à sua casa, recolhendo folhas dos carvalhos e deitando palha dos medeiros a fim de com as neves e a chuva poder ser depositado nos campos… cultura biológica. Era aí que nós, miúdos, dávamos pulos, corríamos, jogávamos, dando “pincha-carneiras”. Hoje não. Ainda bem, pois até o carro da recolha do lixo vai a Rebordainhos e a civilização está aí.
Tempos idos e difíceis. Quando D. Denérida ia para Espadanedo onde era mestra na escola pública, o senhor Ernesto despedia-se num lamurio:
- Lá vai o meu “ganha-pãozinho”.

 “… a geração que depois veiu, o povo bemaventurado, que não soube parte de tantos males, nem foi quinhoeiro de taes padecimentos…” (2)
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½ (Crónica d’El –Rei D. João I – F. Lopes)

9 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Filinto

Quem está longe muito tempo vai dando por esses progressos... mas as tuas lembranças são de rir até às lágrimas: pelo que contam e pela maneira como contas. Um mimo, como diria minha mãe!

Muito obrigada

Lurdes disse...

Filinto
Como eu gosto de ouvir essas estórias da nossa aldeia, o meu pai também sabe algumas do senhor Ernesto que me vai contando.
Gostei muito de ler obrigada!!!

António Pires disse...

Estas histórias devem ser lidas à lareira com um copo de Favaios à mão. Ajudam a aquecer!

Anónimo disse...

Realmente da para rir muito nao vejo a onde esta a piada

Augusta disse...

Filinto:
Estou em crer que, pelo que ainda conheci da D. Denérida, o pagamento deve ter incluído mesmo as batatinhas.
Estórias bem engraçadas das quais muitos ainda se lembram e nos ajudam a enriquecer o conhecimento que detemos da nossa gente.
Abraço e obrigada pela partilha

A. Fernandes disse...

Olá Primacho:
Boa malha esta! Belas recordações do único onzeneiro que, nesses tempos, existia em Rebordainhos e da sua santa esposa. Conta mais, que o tio Adriano sabia muitas dessas estórias (e a tua irmã Lúcia sabe também).
Abraços
A. Fernandes

Serrana disse...

Dr. Filinto,

Gostei ler a sua estória. O meu pai dizia que, o Sr. Ernesto, não queria que as criadas esfregassem os potes porque lhos rompiam.
Conte-nos mais porque têm muita piada.

Um abraço

António Pires disse...

As histórias são muito engraçadas, bem escritas e pouco ou nada ficcionadas. Então, por que carga de água se têm de chamar "estórias" ?! Será mirandês, ou um sinal de novo-riquismo linguístico ?!

Duarte Pires disse...

O sr Ernesto tinha coisas muito boas como jogar as cartas a luz da lareira para não gastar o petrolio.Mas tinha uma muito melhor com o meu pai que um dia eu vou contar.