sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

ECOS DO MEU SENTIR - XI

 II – NOVA GERAÇÃO? GERAÇÃO NOVA?

por filinto martins


“Na cidade não havia trigo para vender… No logar onde costumavam a vender o trigo, andavam homens e moços esgaravatando a terra, e se achavam algum grão de trigo metiam-n’o na boca sem tendo outro mantimento…” (1)


Quando em tempos íamos para a escola (ainda está no mesmo sítio) passávamos por um “monumento” que, ao contrário do outro fronteiriço à igreja, não se destinava ao castigo, mas antes era alívio das dores ou “calçado seguro”, sucedia que algum, com melhor pontaria, tentava acertar com uma pedra no monumento ou galinha que por aí andasse, logo o Patinge (boa pessoa…) dizia: “vou dizer ao senhor professor”. Por vezes era mais assertivo e enquanto com uma peliqueira cortava um carolo de centeio acrescentava: “prendo-vos no tronco e as pedras servem par vos dar com elas nos cornos”. Acho que a maioria optaria pela segunda opção.
Ora se muitos optaram por transformar Rebordainhos na vila que já foi, melhorando suas casas, o dito monumento mudou de poiso. Foi para o Outeiro… ainda pensei: “se o posto médico era ali, também ali deveria ser o “posto veterinário”. Mas hoje quase não há gente e muito menos “juntas” e se a forja também foi para o Cobelo, também o dito lá foi parar, à sombra de umas árvores. Não vá o dito parar à entrada da aldeia, pois aí é o local onde todos vão parar nesta passagem terrena… Quantas aldeias se podem orgulhar de monumento igual?

Como Rebordainhos está transformada…
Nessas eiras havia fartas medas de centeio que iam alimentar as gentes… onde ecoava o pregão do
Santa Combinha: “À eira que o bacalhau está na caldeira”. Bacalhau assado na brasa, cebola, azeitonas, nas travessas colocadas nas compridas toalhas de linho, onde cada um ia espetando o seu garfo e mastigando, enquanto algumas gotas de azeite iam escorrendo queixo abaixo à espera dum naco de trigo cozido no dia anterior, que servisse de guardanapo. O pipo ia passando de mão em mão para que o fiel amigo não secasse. Depois o “verde”… quem não se recorda do “verde”? (não era tinto, nem branco) A essas horas já a “canhona” estava no pote ao lume, para o almoço, acompanhada das saborosas e sorridentes batatas. O Santa Combinha era o homem da malhadeira que ia “aparelhando” com todo o gosto, acariciando as correias… era sempre o último a sentar-se num molho de palha ou de pé, olhando para a sua “amiga”. Não foi por ele, que malhadeira e motor foram também morar perto dele, mas antes porque seus donos ali moravam.

No fim da malha havia uma surpresa: nas malhas que duravam um ou mais dias, era hábito dar a cada mulher um ou dois rebuçados (não mais) e aos homens um cigarro, repito, um cigarro e não um maço de cigarros. E ainda tenho presente o prazer que os mais novos ostentavam, levando o cigarro na orelha para que todos vissem que tinha sido da malha, sendo um certo sinal de maioridade.
Ainda soam aos meus ouvidos as palavras de minha mãe: “vou ali à eira, onde estava a malhadeira, ou no assento da meda, apanhar “penim”… as galinhas gostavam muito. Momentos depois chegava ela com o avental cheio e toda radiante com a maquia.

Andavam os moços de três e quatro annos pedindo pão pela cidade, por amor de Deus, como lhe ensinavam suas madres… e se lhe davam tamanho pão como uma noz, haviam-n’o por grande bem…” (2)


O que há hoje na eira do Outeiro para não ir às outras? Não vi medas, antes um moderno ringue de Futsal. Infelizmente também não vi jovens. Se a tia Emília fosse viva poderia aí ter os seus perus, que alegravam quem passava com o seu andar vaidoso e “monca vermelha”. Ali parei uns momentos e pensei para com os meus botões: “Não há gente para jogar futebol, não há perus… seria um óptimo lugar para secar as “casulas”, porque mesmo em dias de vento da serra não iriam para longe e no inverno, cozidas e acompanhadas dum “pisperno” faziam esquecer o frio com o calor do verão passado.

“… a geração que depois veiu, o povo bemaventurado, que não soube parte de tantos males, nem foi quinhoeiro de taes padecimentos…” (3)    


__________
 (1),(2),(3) - Crónica d’El Rei D. João I – F. Lopes       

A fotografia do campo de jogos foi tirada daqui. A fotografia da eira do Outeiro foi-me enviada há já bastante tempo (e já usada) pelo Baptista do tio César.                                              

13 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Filinto

A ironia terna desta segunda parte é encantadora.
Aproveitei o "penim" para juntar à lista do Rebordainhês, da qual não constava.

Dentro daquilo que desejaríamos eterno há mudanças que nos chapam na cara que o nosso tempo está a passar e que a finitude é, provavelmente, a maior constante que existe.

Beijos e bem-hajas por esta ajuda tão valorosa.

Elvira Carvalho disse...

Muito interessante este texto.
Um abraço e bom fim de semana

António Pires disse...

De entre os ecos puros que o senhor Filinto soube fazer ressoar tão bem na memória de cada um de nós, permitam-me que destaque este pequeno trecho de antologia, de fazer criar água na boca:
“Nessas eiras havia fartas medas de centeio que iam alimentar as gentes… onde ecoava o pregão do
Santa Combinha: “À eira que o bacalhau está na caldeira”. Bacalhau assado na brasa, cebola, azeitonas, nas travessas colocadas nas compridas toalhas de linho, onde cada um ia espetando o seu garfo e mastigando, enquanto algumas gotas de azeite iam escorrendo queixo abaixo à espera dum naco de trigo cozido no dia anterior, que servisse de guardanapo. O pipo ia passando de mão em mão para que o fiel amigo não secasse”.
Naquele tempo, nem os burgueses com os seus piqueniques no campo tinham melhores manjares do que o bacaulhauzinho assado na eira de que nos fala Filinto Martins.
Com as suas memórias, o autor fez-me lembrar outros petiscos desses tempos que quero repartir fraternalmente convosco:
- fígado de cebolada;
- cozido à portuguesa;
- filetes de polvo frito;
- galo, de capoeira própria, assado no forno com batatas, servido, poucas vezes, ao almoço de Domingo;
- fanecas fritas;
- coelho estufado, de coelheira própria, servia de merenda em longas viagens de comboio;
- sardinha assada, com pimentos e broa, comida ao ar livre.
- cabrito assado, comido na aldeia, no dia da festa;
- salada russa com bacalhau;
- sopa de nabiças;
- caldo verde com uma rodela de chouriça.

Gostaram?

Américo Pereira disse...

Totalmente de acordo com o texto e
comentários mas não mencionaram os
os rojões que eram conservados em
banha de porco (pingo), uma delícia
de lamber a beiça.
Um abraço

Filinto disse...

Este texto não pretendeu ser uma crítica, antes um eco daqueles tempos... Na malhadeira distingue-se bem o tio João Fouce, o senhor Herculano, o Armindo da eira... Nenhuma outra foto podia ser melhor: é aqui que agora está o ringue de Futsal... outros tempos, mas o eco permanece. Só não aparece o cheirinho do bacalhau nem as outras iguarias que o amigo António e o Américo referem.
Tempos difíceis, mas que são o orgulho daqueles que nos precederam. Aquelsa pessoas não viveram, só trabalharam. Paz às suas almas.

Fátima Pereira Stocker disse...

António

Tudo delícias - umas para uns paladares e outras para outros.

Em Rebordaínhos nunca comi broa e Desconheço por lá o cozido e a salada russa. Refere-se às casulas e à salada de bacalhau?

Cumprimentos

António Pires disse...

Fátima,

Não me fale de casulas. Dentro dos manjares da cozinha popular da ditadura salazarista, apreciei com muito gosto as vagens verdes tenrinhas ou os feijões propriamente ditos, casulas não, obrigado!
No entanto, sou o primeiro a reconhecer que fugi um pouco do conteúdo do artigo. Eram de facto tempos muito difíceis, mas bacalhau como o pescado nos mares frios da Terra Nova, seco ao sol e ao vento das praias de Portugal, para depois ser assado, regado com azeite e servido em toalhas de linho nas eiras onde se malhava o centeio, já não há!
O mundo mudou!
Há quem diga que o mal é nosso - estamos a envelhecer!
Eu acho que não é só isso.
O mundo também não está mais novo!
Cumprimentos!

Anónimo disse...

O fígado de cebolada e o verde são manjares das matanças e não das malhas.
Filetes de polvo ou polvo frito passado por farinha e ovo?! Então! E os erbanços guisados com bacalhau meios envinagrados! Também era um prato servido nas malhas.

Filinto disse...

Amigo anónimo:
No meu tempo, pelos anos de 50/60 a "verde" era um prato típico das malhas, pois era confecionado com os "miúdos" da canhona e com o sangue. Na matança o fígado era de cebolada com batatas cozidas. O sangue do porco era para os chouriços... era assim em Rebordainhos.

Serrana disse...

Dr. Filinto,
Os ecos do seu sentir são também os meus! Belos tempos esses! Trabalhava-se muito é certo mas, também se brincava muito.
Além do Santa Combinha, o Chefe (marido da Sr. Amélia) também era um dos maquinistas da malhadeira.
Um muito obrigada Dr. Filinto por me trazer á memória a minha juventude! O seu pai, o Sr. Sebastião, o Sr. Aniceto e o Juiz eram danados prá brincadeira.

Cumprimentos e escreva mais.

Obrigada mais uma vez

Américo Pereira disse...

Para salientar o trabalho daquele tempo temos que recuar um pouco e
lembrar a malhas antes da chegada
das malhadeiras. Ainda recordo com
saudade ver estender os molhos de
palha ao longo do terreiro,a seguir
os homens munidos de malhos é que
faziam a malha.A cada malha a palha
era retirada e as mulheres barriam
o grão. No fim para limpar o grão
utilizavam uma limpadeira.

Filinto disse...

Só já me lembro da "limpadeira" que esteve bastante tempo na eira da Cabecinha, perto da casa do tio Laurindo. Ainda vi um "malho" que o meu pai tinha no baixo da casa do Cobelo. Nunca presenciei essas malhas, só recordo a malhadeira.

Chanesco disse...

Fátima

Com alguma probabilidade ter-se-ão ja servido algumas almoçaradas nesse recinto desportivo que por certo, dadas a dificuldade em arranjar um terreno "tchãero" não sulcado, só de uma eira poderia sair.
Mas não é só neste poste que me fixo.
De "pincha-carneira" passo dois posts atrás para apreciar as imagens que comprovam a beleza do inverno Transmontano.

abraço