Os cancelos são portas fechadas à
frente de portas abertas. São portas que não encerram nem impedem – quase parecem
acto falhado, intenção interrompida ou autoridade envergonhada. Eles lá estão, contudo,
à entrada de nossas casas…
Não travam a vadiagem do gato que
tem na gateira honras de entrada própria;
Não tolhem a invasão das pitas que
armam o salto e, ala para dentro, ciscar onde querem;
Não impedem a entrada de pessoas que
alçam a mão, puxam o garabito e transpõem a soleira da porta antes de acabarem
de dizer “eila!”
Os cancelos parecem afirmação não
conseguida, um faça à conta que são portas fechadas, apesar de estarem abertas…
O cancelo parece ironia tosca: meia
porta cerrada diante de uma porta inteira escancarada todo o dia.
O cancelo parece isso tudo, não
sendo nada disso.
Todos nós sabemos bem que só entramos
numa casa quando somos muito próximos de quem lá vive. Nas outras chamamos cá
de fora e esperamos por ouvir o “entre, quem é”, em manifestação clara de respeito
pela intimidade de quem lá vive. O cancelo é, pois, forma subtil de estabelecer
a fronteira entre o espaço exterior que é público e o espaço familiar que se
estima em recato.
O cancelo é o limiar da privacidade.
E aqui estou eu a falar no
presente enquanto reflicto sobre uma realidade que é quase só arqueológica.
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Nota
Creio que a nossa tão bela tradição de mantermos aberta a porta da rua
tem origem bastante prosaica: a porta aberta deve ter nascido da necessidade de
iluminar e arejar o interior das habitações, por ser ela a única abertura que
existia para o exterior.