terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

OS CANCELOS


Os cancelos são portas fechadas à frente de portas abertas. São portas que não encerram nem impedem – quase parecem acto falhado, intenção interrompida ou autoridade envergonhada. Eles lá estão, contudo, à entrada de nossas casas…

Não travam a vadiagem do gato que tem na gateira honras de entrada própria;
Não tolhem a invasão das pitas que armam o salto e, ala para dentro, ciscar onde querem;
Não impedem a entrada de pessoas que alçam a mão, puxam o garabito e transpõem a soleira da porta antes de acabarem de dizer “eila!”

Os cancelos parecem afirmação não conseguida, um faça à conta que são portas fechadas, apesar de estarem abertas…

O cancelo parece ironia tosca: meia porta cerrada diante de uma porta inteira escancarada todo o dia.

O cancelo parece isso tudo, não sendo nada disso.

Todos nós sabemos bem que só entramos numa casa quando somos muito próximos de quem lá vive. Nas outras chamamos cá de fora e esperamos por ouvir o “entre, quem é”, em manifestação clara de respeito pela intimidade de quem lá vive. O cancelo é, pois, forma subtil de estabelecer a fronteira entre o espaço exterior que é público e o espaço familiar que se estima em recato.

O cancelo é o limiar da privacidade.

E aqui estou eu a falar no presente enquanto reflicto sobre uma realidade que é quase só arqueológica.

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Nota
Creio que a nossa tão bela tradição de mantermos aberta a porta da rua tem origem bastante prosaica: a porta aberta deve ter nascido da necessidade de iluminar e arejar o interior das habitações, por ser ela a única abertura que existia para o exterior.

18 comentários:

António Pires disse...

Para quem os vê desta maneira, os cancelos de Rebordainhos são uma fonte inexaurível de cultura e recreio.
Aprendi mais com a leitura deste pequeno texto sobre cancelos do que em oito anos de frequência, com aproveitamento, de uma Escola C + S de uma grande cidade.
Voltarei!

Lurdes disse...

Fátima,
Obrigada pela tua linda descrição dos cancelos, afinal não passavam de uma porta a fingir...
O da fotografia deve ser dos únicos na nossa aldeia, a casa dos meus avós paternos... ainda morei nessa casa com a minha mãe, que saudades... vê-la assim a cair em ruínas parte-me o coração... Essa casa só tem boas recordações para mim.
Beijos!!!
Lurdes

Augusta disse...

Lembro-me tão bem do cancelo de casa dos avós e do quanto nós gostávamos de nos empoleirar nele e balançá-lo abrindo-o e fechando-o. E lá íamos nós de boleia e a tia Helena a barafustar.
Só nunca entendi muito bem porque não havia cancelo em nossa casa. Que eu me lembre, mas penso que nunca existiu.
Beijinho e parabéns pela iniciativa e, claro está, pela tua constante criatividade.

Fátima Pereira Stocker disse...

António Pires

Parafraseando-o: os cancelos são, para mim, fonte inexaurível de recreio e de meditação. Pesa-me muito a sua perda, embora compreenda que o ser humano só mantém aquilo de que precisa.

Muito obrigada

Fátima Pereira Stocker disse...

Lurdes

Aquilo que escrevi é aquilo que faz sentido para mim. A razão de ser dos cancelos pode bem ser outra que me tenha escapado.

Andava há já muito tempo com a ideia de fotografar os nossos cancelos para poder ficar com o registo. Mas esquecia-me sempre. Este Natal, como passei por ali com a máquina, pude aproveitar. Esse é um dos cancelos mais ternos de que me lembro, por ser tão maneirinho...

Desculpa-me o desafio: será que me acompanhas numa visita ao interior dessa casa que era de teus avós? Gostaria muito de a ver por dentro.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

Também fotografei o cancelo da casa do avô. Aliás, uma primeira versão do texto começava por isso que tu contaste, de nos dependurarmos nele como se fosse balancé. Depois pareceu-me melhor escrever um texto genérico e saiu aquilo que publiquei.

Mas o cancelo que existe agora não é o primeiro de que me lembro, que era feito de tábuas mais largas e tinha gateira. Talvez por isso tenha abandonado a primeira versão do que escrevi.

Também me não lembro de cancelo em nossa casa. A razão, a ser verdade aquilo que digo, estará na existência de janela?

Beijos e obrigada

Augusta disse...

Não me parece que seja por causa da janela, até porque janela na nossa cozinha só houve depois das obras. No sítio onde estava a antiga janela, encostava o lançadouro na sua parte lateral.
beijinho

A. Fernandes disse...

Fátima

Que lindo poema sobre a porta da casa e a alma da gente transmontanas.
Obrigado
A. Fernandes

antonio disse...

Olá pessoal! Tenho andado um tanto quanto distanciado deste cantinho que apesar de adorar e vir dar uma espreitadela merece a expressão do meu ponto de vista, consideração que mantenho fervorosamente, mas, nas nossas vidas, surgem por vezes imprevistos que obrigam o coração a ceder a desejos e vontades... peço desculpa. Não estando isto directamente relacionado com o texto.
Que maravilhosa descrição dos cancelos, que para além das portas de entrada da casa existiam tambem noutros lugares com diversas utilizações... havia igualmente as portas com postigos, creio que era assim que lhe chamavam, a uma porta cortada a meio, com dobradiças na parte superior para poder abrir, ou fechar com o carabelho. Congratulo quem tem tanta e tão agradável inspiração cuja imaginação nos convida a revolver no nosso passado para melhor reviver... Abraço saudoso António Brás

Serrana disse...

D. Fátima,

Os cancelos são meias portas fechadas á frente de portas abertas que, para além de entrar mais claridade na cozinha, também impediam a entrada de menos frio ao aconchego da lareira. Assim, nos dias em que não havia sol as D. de casa remendavam, fiavam, faziam meia e etc. ao lume sem ter que acender a candeia. Também impediam a entrada das pitas, estas, mal apanhavam a porta aberta aí entravam elas porta a dentro.
O Sr. António tem razão. Também havia os postigos e descreve-os muito bem.
Até sempre e para si D. Fátima um beijinho grande.

Rui disse...

Há coisas mundanas sobre as quais nunca nos debruçamos quanto o seu significado, origem ou serventia. Vale-nos quem, como a D. Fátima, quer saber e vê (sem olhar somente). Por esta partilha o meu obrigado.

Se a memória visual não me engana, ainda há um em utilização em casa da tia Eduarda, não é assim?

Aproveito a deixa do Sr. António, para também regressar ao espaço de comentários, do qual, com muita pena minha, tenho andado arredado.

Cumprimentos para todos

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

Não me referia a essa janela, referia-me à outra que dava para o horto, a partir da salinha.

Lembras-te de o pai e a mãe contarem que a entrada para nossa casa era feita pela porta que passou a ser a dos porcos e que a casa era toda ampla? Deve ter sido na altura da mudança da entrada que fizeram a divisão do interior, separando a cozinha do resto da casa com o tabuado. Nessa altura, a cozinha ficou sem a iluminação da janela, mas não entendo porque é que não puseram o cancelo.

Basta, no entanto, pensar na casa do avô: janelas não lhe faltavam, mas tinha cancelo. Creio que a explicação estará na antiguidade das casas: as mais recentes seriam construídas com janelas. Umas, por tradição, mantinham o cancelo, enquanto outras o dispensavam.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho da tia Lídia

Obrigada, eu, por teres percebido.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho (Brás)

Não tens que pedir desculpa por nada: cada um tem a sua vida e os seus ritmos e há que saber respeitar.

Escrevi aquelas palavras no início da caixa de comentários por causa de alguns comentadores que vinham para aqui à espera de um público próprio, o que me irritava. Não foi isso, de certeza, aquilo que fizeste ao justificares a tua ausência.

Obrigada por me teres lembrado dos postigos. Quando falaste neles, veio-me à memória uma imagem diferente daquela que tu deste - era uma das almofadas da porta (ou da janela)que se abria, mas por dentro, ou seja, abria para o lado, não para cima. Daquele que tu falas não recordo nenhum (só o do grande guarda-vento do fundo da igreja) e daqueles que eu falo, por mais voltas que dê à memória, não consigo lembrar-me a que casa associo a imagem de que me lembrei.

Tenta lembrar-te tu, se fazes favor, está bem?

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Serrana

Tem muita razão naquilo que diz: os cancelos permitiam a entrada de luz e garantiam algum aconchego dentro de casa. Já quanto às pitas, havia sempre algumas mais temerárias que pouco se importavam com o cancelo. Lembro-me tão bem de ouvir a minha tia Helena ralhar com elas porque lhe entrarem em casa...

Peço-lhe, a si, aquilo que pedi ao Tonho: que se lembre de casa onde houvesse postigos desses. Será que também chamávamos postigo às portas das janelas?

Um grande beijo também para si e muito obrigada.

Fátima Pereira Stocker disse...

Rui

Há o da Sr.ª Eduarda, sim. A esse até lhe sei a idade, que é a minha e a do Norberto. Foi mandado pôr quando a Sr.ª Eduarda e o Sr. João se mudaram para lá. Ainda o não fotografei, mas hei-de fazê-lo, mas a esse queria que fosse com a porta aberta.

Obrigada pelo teu regresso.

Beijos

Anónimo disse...

Fátima
gostei muito do texto, nunca me lembraria desta tua análise, apesar de me recordar dos cancelos. E por portas e cancelos, vai daí recordei isto:

"Eu abro do amor as portas,
da vida as portas encerro,
Permaneço em coisas tortas,
mas não em monte ou desterro."

Quem adivinha?
Bjs
Eduarda

Fátima Pereira Stocker disse...

Eduarda

E eu que gosto tanto de adivinhas...

Acho que posso responder assim:

Também ando pelas ruas
mas em casa e na sala
ponho-me em ambas em duas
p'ra ver se ninguém me cala!

Acertei?

Beijos e obrigada pelas tuas palavras.