sexta-feira, 30 de outubro de 2015

ECOS DO MEU SENTIR - XII

René Magritte, Le Modèle Rouge

DEFUNTO-VIVO 

por: FILINTO MARTINS        

            Aceite o desafio do Tonho, que na porta do seu quarto de “Lisboeta de passagem” afixou as suas boas-vindas: “Se bateres, bate devagar, senão bate com os cornos”. Português genuíno dum transmontano de cepa, mas como ele era culto dos escritos bíblicos, logo aparecia nova mensagem: “Senhor, livra-me dos cornos dos unicórnios”.
Convém lembrar que quem brinca com a memória arrisca-se a passar por saudosista, senão algo pior. Assim, para não ser insultado por algum incauto que como eu, apenas li umas cem páginas da tese de doutoramento “ A memória” do Prof. Custódio Rodrigues, quando a mesma tinha mais de 700 páginas, que eu deveria ter assimilado na Universidade, vou a uma gaveta da mesma citar Patrick Modiano (Prémio Nobel): “Na vida, o que conta não é o futuro, é o passado”.
            Não quero disfarçar as tristezas do presente com as ilusões do futuro – como fazem todos os nossos políticos sem excepção – vou tentar apimentar alguma lembrança que nos deixaram os nossos Rebordainhenses.
Se os Americanos falam da noite da abóbora, cuja tradição nasceu nas terras dos Celtas, meu pai, ao serão de Inverno, à lareira pois, ora descascando castanhas para os cevados (hoje os cevados são outros), rezando o terço, ora as “mulheres ganhando cabras” (depois queixam-se dos ossos) lá ia mais uma história para rir, que meu pai dizia ser verdadeira, porém a primeira vez que a ouvi fiquei sem respiração e não me lembro de ter rido.
 Assim começava meu pai: “… naqueles tempos não havia transportes, era à pata”, de vez em quando lá passava uma camioneta de carga, que até parava para dar uma boleia a algum desgraçado, que ia à chuva e ao vento. Um homem vinha para a aldeia, cansado, molhado, pois o sombreiro não era suficiente, quando ao longe surgiu o roncar duma camioneta de carga (se fosse o Nelzeira diria logo que era uma Scania Vabis), porém não adivinhou a boleia. Os transmontanos eram bons, ainda são e por isso o motorista parou ao lado do homem e disse-lhe:
- Suba, homem, vai todo molhado.
- Santo Deus, foi milagre, pois já vinha mesmo cansado. Agarrado à cabine para não cair, nem um quilómetro tinham andado, eis que olhou para a carga e reparou que na mesma iam duas urnas, que iriam servir para defuntos da aldeia, dado que na terra não havia stocks para tais luxos. De quando em vez o homem ia olhando para a estrada, porém sempre com um olho na carga.
A chuva continuava, mas não importava, não metia medo. Eis senão quando a tampa duma urna é levantada e uma mão aparece para ter a certeza que ainda chovia. A velocidade da camioneta podia agora ser elevada, porém mais rápido foi o salto da camioneta em andamento.
Chegados à aldeia o motorista admirou-se e perguntou ao “defunto-vivo”:
- Eu dei boleia a outro e só está aí você?
Talvez parte da carga já tivesse defunto certo. Qual abóbora, nem meia-abóbora. Os transmontanos têm “Halloween” que não foi importado dos “States”, pois os Celtas também andaram por estas terras.

5 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Filinto

Eis um texto na hora H... Quais bruxas e quais abóboras!

Deliciei-me com esta parábola de múltiplos sentidos: de como, vigilantes, podemos enganar a morte; de como a morte só nos apanha no dia que nos estiver destinado... ou, simplesmente, de que até a morte (a sua parafernália) nos pode servir de capa contra as inclemências da vida.
Que dia tão apropriado para publicar. Muito e muito obrigada!

Beijos

Elvira Carvalho disse...

Coitado. Deve ter tido um susto enorme.
Um abraço e bom fim de semana

Anónimo disse...

Olá Tio,

Seja já estava em atraso nos seus belos Ecos. Foi pena o passageiro não ter aproveitado a outra urna. Falta de diálogo entre vivos e defuntos não é? Acho que devíamos pelo menos pensar neles.

Um abraço

Orlando Martins

A. Fernandes disse...


Olá, Primacho:

Essa de andares a pôr ao soalheiro os meus devaneios de "lisboeta de passagem" é muito feia! Mas, enfim, perdoo-te; e eu nem sei se é verdade ou se é imaginação tua.
Mas o que importa é que voltaste `escrita e desta vez com as histórias do tio Adriano, que as sabia de todas as cores e feitios; contos que povoavam a nossa imaginação de crianças e, muitas vezes, serviam de ponto de partida para os jogos que inventávamos.
Trata, por isso, de continuar, para ocupares os teus ócios de reformado.

Um abraço

Tonho

Chanesco disse...

Olá Fátima

Que coincidência. Acabo de publicar um post com teor semelhante.
Esta sim foi uma genuina partida de halloween, mesmo que involuntária, mas a morte só assusta os vivos e não são todos; veja-se a leveza com que o Sr. Filinto Martins talhou a abóbora.

Um abraço para rebordainhos