quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

NO CATRAPEIRO

Por: ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES


Naquele tempo… quando o destino nos depositou em Rebordainhos, aí por volta de 1950, meu pai vinha animado de um fervor de noviço no que a terras dizia respeito. Ele desbravou, ele surribou, ele plantou, ele fez trinta por uma linha. São dessa altura as maçãeras que, ainda hoje, bordejam as duas terras de Vale-da-frunha. Na hortinha da Vale-da-frunha d’além, conchinha de terra com um poçaco voltada a sul, plantou ele, com toda a devoção, uma figueira cujos figos nunca chegaram a amadurecer e uma videira cujos bagos chegavam ao Outono ainda rijos como zagalotes. Ingratas essas terras da serra! Mas sempre me deu a impressão de que, além dessa hortinha, ele nutria um especial afecto pelo Catrapeiro. De vez em quando desafiava-me: ─ vamos até ao Catrapeiro? E lá íamos até ao Catrapeiro, em divagação vadia, mais ou menos porque sim.

Este nome de Catrapeiro quer-me parecer que deve provir de catapereiro que, além de ser nome de vinho ribatejano, significa pereiro bravo. De pereiros não tenho notícia. Mas recordo ainda uma macieira brava que por lá havia, entre a terra de batatal e o lameiro.

Pois o Catrapeiro era mesmo isso: um corregozito que na parte de baixo andava de lameiro e, na de cima, dava batatas quando Deus era servido, umas batatas deliciosas, obedecendo à filosofia de ─ boa batata, terra granita, água granita e caganita. Também eu gostava do Catrapeiro, mas era por causa de uma pocita que lá havia para rega das batatas. Todo o meu regalo, quando a poça estava vazia, era esse milagre da água a borbulhar do chão, levantando areiazinhas, num fervedouro sem fim. Com a mão, rapava um pouco de saibro sobre o olho da nascente de maneira a fazer uma conchinha. Esperava que a água aclarasse e depois mergulhava nela o focinho para sentir nos beiços o beijo da mãe terra. Água fria que a veia trazia da Ladeira, em cujo cimo pontificava a Fraga Grande.

E foi no Catrapeiro que, por duas vezes, eu senti a vida a fazer-me agulhas para outro lado:

Era Agosto e já tínhamos ido a Bragança para o exame da quarta. Eu andava por ali com a Amélia, que era uma espécie de nossa irmã mais velha, a guardar os bois no lameiro. E não andava lá muito contente. O conselho familiar tinha resolvido que eu iria para o seminário. E, de repente, impôs-se-me esta evidência assustadora: eu já não pertencia àquilo. O Catrapeiro já não era meu, ia perdê-lo definitivamente dentro de dias. Sentado na fraga que havia ao fundo do lameiro (e que ainda deve lá estar, que as fragas são eternas) e olhando o negrilho tutelar (que a malina levou, que os negrilhos não são eternos) pasmava para aquilo tudo com uma sensação de estranheza e de angústia que me sufocava. Do lado de lá da Ribeira, no Ladeirão, uma camarada de segadores cantava uma toada lenta e desesperada, ressumando uma angústia como a que apertava a garganta. E de súbito, sem querer, as lágrimas começaram a borbulhar-me dos olhos, sem querer, como da nascentinha borbulhava a água da poça. E a canção dos ceifeiros, dolente na tarde calma, soava-me como a entoação atroz de um adeus definitivo. Ainda bem que a Amélia fazia meia, sentada à sombra da macieira brava e não deu por nada.

Uns dez anos mais tarde, mais ou menos pela mesma altura do ano:

Meu pai, que continuava embeiçado pelo Catrapeiro, guardou as batatas regadas pela pocinha dos meus enlevos, para encerrar a colheita. Comprou uma caixa de sardinhas e levou um caldeiro como tralha de campanha. À hora do meio dia, com um braçado de tanganhos, que nisso as terras sáfaras da Ladeira eram pródigas, acendeu-se fogueira cabonde a assar um chibo. No caldeiro cozeu-se uma abada das batatas acabadas de arrancar e sobre as brasas sobrantes puseram-se as sardinhas a rechinar, gordas como lontras. Eu convalescia de uma febre tifóide que, com a mania de mergulhar os beiços em tudo quanto era fonte, apanhara com umas águas inquinadas para os lados de Arouca. Depois de seis dias de cama, andava escanzelado como cavalo tropiqueiro de cigano, muito enjoadiço, sem apetite, debiqueiro como donzela fidalga. Pois, meus senhores, ali, junto da pocinha da minha eleição, sentado como um príncipe sobre um monte de rama da batateira, com aquelas batatinhas farinhotas a esfarelarem-se como flocos de algodão, ali imolei dez sardinhas como se fossem a mais delicada dieta de convalescente para um entanguido das maleitas.

Um mês depois iniciava, em terras alentejanas de Vendas Novas, a minha longa jornada no ofício da ensinança de que há dez anos me reformei.

Fotografia retirada daqui

10 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Não há dúvida que os lugares ajudam a compor a forma das nossas memórias.
Agora sou eu que tenho que visitar o Catrapeiro, para me recordar dele e o registar.

Bem-hajas pela partilha.

Um grande beijo

Elvira Carvalho disse...

Um excelente texto, que me levou encantada da primeira à última frase.
Abraço

Céu disse...

Tonho,

Bela história e bonita homenagem que tu pretas ao teu Pai neste mês de Dezembro.
O catrapeiro, é um lugar de magia e boas recordações. Certa vez numa arranca das batatas, o tio disse à minha mãe: Conceição, vai ali apanhar batatas que ficaram para trás. Lá foi ela de cesta na mão, mas foi tamanho o susto, pois em vez de batatas, era um amontoado de salamandras! Foi uma risota geral. Eram os divertimentos saudáveis daquela época.

Beijos para vós e um Santo Natal
Céu

Rebordas disse...

Muito boa essa narrativa que me trouxe à lembrança que também eu, com pouco mais de dez anos de idade, andei por esses lugares pastoreando umas juntas de vacas nas férias escolares e um dia dei de cara com uma cobra de razoável tamanho atravessando o caminho. Não sei quem ficou com mais medo, se eu dela ou ela de mim. Ela se apressou a esconder-se numa moita e eu fiquei bastante aliviado.
Bons tempos em que tínhamos que trabalhar desde a infância para ajudar no sustento da família.
Obrigado pela partilha.
César

Olímpia disse...

António,
tu és um artista!
Estas tuas belíssimas palavras, pintam as cores duma tela duma forma tão harmoniosa!...
Bem hajas!
Beijos

Olímpia

Elvira Carvalho disse...

Passei para desejar um Santo e Feliz Natal.
Um abraço

A. Fernandes disse...

Fátima, Elvira, Céu, Rebordas, Olímpia, obrigado pela vossa amizade.

NOTA ERUDITA:

A Fátima informou-me que Catrapeiro, no Caldas Aulete, significa “demorado em fazer a desobriga. Como lá ao fundo do Catrapeiro ficava o moinho, ocorreu-me que tinha a sua piada que o nome do sítio tivesse a ver com o moleiro que, de consciência pesada por ter mão pesada ao pesar a maquia, fosse tardego em cumprir a desobriga. E esta, hein!? Obrigado, Fátima.
Um abracço e um Santo Natal para todos.
Tonho

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Por acaso, teria mesmo muita graça!

Beijos

Chanesco disse...

Mais um textos dos que todos gostamos, a mostrar que a memória dos lugares que nalgum momento marcaram o nosso quotidiano fica para sempre guardada na gaveta dos valores da vida.

Abraço

VOTOS DE BOAS FESTAS PARA REBORDAINHOS!

Filinto disse...

Primacho:
Belo texto que me faz lembrar as Bouças, onde o Pilatos, meu mestre, me ensinou muitas "artes". Afinal um segue ao outro.
O teu pai teve sempre muito gosto por essas bandas, nomeadamente era seu intento "reconstruir" o dito moinho.
Santo Natal e um 2016 com saúde.
Filinto