por
ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES

Ora um dia,
pelos começos do Verão, aparece lá em casa um homenzinho cabisbaixo, torcendo
nas mãos nervosas o chapéu velho, muito apoquentado: ─ “Se a Sr.ª Lídia lhe
podia fazer um grande favor, que a mulher estava muito malzinho… O Doutor
tinha-lhe receitado meia dúzia de injecções… mas quem lhas havia de dar?!”
A minha mãe,
coitada, que era (quase) uma santa, lá lhe disse que sim, pois o que é que lhe
havia de dizer?. Só que o homem era dos Vales, e de Rebordainhos aos Vales
ainda é um estirão de respeito pelos velhos caminhos traçados para os carros de
bois. No dia seguinte, lá nos metemos a caminho. E digo ‘nos metemos’, porque,
como já não havia aulas, eu fora destacado para acompanhante na empresa sanitária.
Até à Ribeira a coisa ainda ia: era caminho sobejamente conhecido, pois que
para ali ficavam os lameiros para onde arranchava com os meus primos do Outeiro
atrás das vacas, e era um regalo para os olhos aquele manto verde dos lameiros
pelo vale acima por onde coleava o renque de freixos acompanhando a ribeira que
nascia logo ali acima, no Pórto. Depois é que era o dianho: o calor começava a
apertar e aquela subida, rasgada em diagonal nos costados áridos do Ladeirão , nunca
mais acabava. Para quem não sabe ou não se lembra, os Vales eram um cu de Judas
de meia dúzia de casotas encravadas numa prega a caminho dos cumes da serra,
por onde não se ia para lado nenhum. O carreiro e o mundo acabavam ali.
Lá teve a enfermeira que gritar o nome da enferma até
que, de um janelo rasgado na pedra nua, surdiu a cabeça desgrenhada da própria:
─ Estou aqui, Sr.ª Lídia!
Esperei sentado ao fundo da escaleira, esmagado por
tanta quietude e tamanha solidão, olhando os montes ermos e quedos, a fraga
grande da Ladeira ao longe, de sentinela à aldeia e adivinhando os três pares
de olhos assombrados a espreitarem entre os ramos do sequeiro. Rebordainhos não
era propriamente a capital, mas ao pé daquilo, bem fazia de metrópole.
As viagens ainda
se prolongaram por uma semana, mas como a tia Maria dos Santos disponibilizou
a sua burrica como meio de transporte para a enfermeira, fiquei dispensado da
tarefa de acompanhante; por isso essa primeira impressão que tive dos Vales foi
também a última e tão funda me ficou que me definiu a convicção de que não
estava mesmo talhado para cenobita.
Passaram-se umas semanas e, um dia, quando me
entretinha naquela varanda dos tempos da minha avó Adriana, uma mulherzinha
pálida e magra, com o lenço pela cabeça sombreando-lhe ainda mais as olheiras
fundas, subiu as escadas com uma cesta de vime enfiada no braço. Minha mãe
acudiu da cozinha.
─ Ó Senhora Lídia, eu vinha-lhe agradecer a
trabalheira que teve comigo. ─ E, isto dizendo, ia destapando a cesta e de
dentro sacou pelas orelhas um coelho taludo, bem mais gordo que a dona,
coitada.
─ Ó rapariga, guarda lá isso. Olha, leva-o e trata de
ti, a ver se ganhas forças, que tu inda andas bem fraquinha.
A moça baixou os olhos embaraçada, acerejaram-se-lhe
as faces pálidas, tremeu-lhe o beiço e futurei que se ia pôr a chorar:
─ Eu bem sei que é pouco… mas eu não tenho paga para
o que fez por mim. E num arranco suspirado: ─ Ai! Era um favor quer me fazia
se… ─ e desatou num choro manso com as lágrimas borbulhando, grandes e mudas.
E minha mãe, já a pontos de chorar também:
─ Está bem, Maria, está bem. Pronto. Deixa lá ver o
bicho.
Bem, talvez não fossem santas as pessoas da nossa
terra na nossa infância, mas tiravam bem as medidas ao sentido do serviço e da
gratidão.
7 comentários:
Tonho
Tirei e conservei para mim a magnífica chave com que encerras o texto que nos ofereces:
"talvez não fossem santas as pessoas da nossa terra na nossa infância, mas tiravam bem as medidas ao sentido do serviço e da gratidão."
Tirar as medidas ao sentido do serviço e da gratidão: eis o que é preciso ressaltar da boa herança que recebemos dos nossos pais. Bem-hajas por nos lembrares disso através desta história exemplar que contaste da tua mãe.
Um grande beijo
PORQUÊ?
Este relato amargo e doce, trouxe-me à memória episódios de vida passados, longe de Rebordainhos, e o poema musical e comovente de Augusto Gil que todos conhecem: “Batem leve, levemente, como quem chama por mim.... Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor?!…Porque padecem assim?!…”
O contexto poético de Augusto Gil era a província da Beira Alta, mas como vós dizeis: ...de março a abril!...
Quando e onde é que os nossos egrégios avós erraram para que Portugal, depois do relativamente breve período em que correu atrás da pimenta da Índia e “deu novos mundos ao mundo”, tenha caído “nesta apagada e vil tristeza”, em que a maioria da população vive pobre e envergonhada.
É certo que paralelamente à epopeia dos Descobrimentos Portugueses travava-se na Europa uma luta de morte entre os reformadores da Igreja de Roma, que traziam consigo novas formas de pensar, e os contra-reformadores, que estavam contra as novas formas de pensar os mundos físicos e metafísicos. Ora, Portugal escolheu o lado da Contra-Reforma, onde também estava o seu poderoso vizinho, a Grande Espanha, campeã da unidade europeia, sob o manto protetor da Igreja de Roma.
Depois tivemos a tragédia de Alcácer-Quibir, perdemos a independência e, em 28 de maio de 1588, foi do magnífico estuário do Tejo que zarpou a Armada Invencível, rumo à conquista das Ilhas Britânicas – a derrota marítima de Espanha, foi simultaneamente a derrota de Portugal.
Porém o mundo não para e, no século XVIII, o Marquês de Pombal suspeita que o desenvolvimento agrícola, comercial e industrial do reino seria mais rápido se expulsasse a Companhia de Jesus, a “tropa intelectual” de elite da Contra- Reforma.
Os jesuítas foram expulsos, mas o salto em frente prometido por Pombal foi praticamente um salto de pardal, como são os dias a seguir ao Natal!
Já no século XX, o grande estadista Oliveira Salazar volta a apostar na Santa Madre Igreja Romana, consegue segurar durante pouco mais de uma década as ricas províncias ultramarinas de Angola e Moçambique, mas a pobreza envergonhada continua nas aldeias e cidades, e o seu Estado Novo acaba por colapsar entre o gáudio dos inimigos de Portugal e o retorno de milhares de refugiados involuntários que, no entanto, serão muito bem recebidos pelos bons pobres da metrópole. Nessa época, dizia-se que Portugal estava na cauda da Europa. Era no tempo da Revolução dos Cravos, quando os soldados revolucionários ensinavam ao povo que Portugal não era um país pobre e o povo acreditava que Portugal era um país rico!
Já no século XXI, assumiu o leme da barca lusitana o exímio doutor de direito José Manuel Durão Barroso que, dotado de uma mente brilhante, ao ver-se de tanga no meio de uma tempestade, abandonou o barco antes dos ratos e das ratazanas, para a seguir ser levado em ombros pelos seus colegas ingleses, franceses e alemães até ao pedestal de Presidente da Comissão Europeia, do alto do qual governou sabiamente a Europa Unida durante alguns anos, ao fim dos quais se verificou que o pobre Portugal estava mais pobre.
Já lancei algumas pistas, mas a pergunta inicial persiste:
PORQUÊ!
OLá Tonho
Pelos vistos a tia Lídia era mais humana que a Dra Aurora em Bragança.
Esta senhora tinha um "consultório" num RC da Rua Abílio Beça, local onde o meu Pai, sem dar tempo ao tempo nem utilizar a técnica do baraço, me levou para a extração de um dente. A dita doutora depois de me sentar sem meiguices numa cadeira, agarra num alicate, aplica-o à dentola e... aqui vai disto, torce a arranca-o sem dó nem piedade.
Era para garantir que um dia me lembraria dela. E conseguiu.
Um grande abraço
Orlando Martins
Primacho António:
A tua mãe era uma santa, não só a dar as "picas", mas na forma como tratava as pessoas. Às vezes penso para comigo: "A tia Lídia teve uma morte santa e bem mereceu por tudo o que fez."
Lembro-me da caixa onde fervia a seringa e agulha como o tio Manuel frade também fazia.
Ficaste cansado do passeio aos Vales? O que dirá a nossa colega de escola, a filha do Raul que percorreu aquele calvário durante quatro anos para fazer o dito exame da quarta classe? Outros tempos.
O teu texto é um retrato perfeito da tua querida mãe.
Obrigado
Filinto
Relatos de vida de outros tempos, onde as pessoas se interessavam pelos outros e estavam sempre prontas a ajudar quem precisava. Sentimentos que se perderam no tempo.
Texto muito bem escrito. Me recordou João de Araújo Correia. Os meus parabéns.
Um abraço e bom Domingo
Eu também fui um dos enfermos a levar umas cinco picadas, devidamente aplicadas pela tia Lídia. Lembro bem que a primeira foi uma tortura tanto para mim como pra ela. Na hora de meter a agulha, retesei o músculo e haja paciência da parte dela para me explicar que teria que relaxar, caso contrário a agulha poderia partir-se o que complicaria tudo. Demorou bastante, mas conseguimos chegar a bom termo. Ela era realmente uma santa.
abraço
César
FÁTIMA
Obrigado pela edição do textinho sobre uma das nossas mães, neste caso, a minha mãe, e ainda pela magnífica vista sobre os Vales, que, salvo aquela manchinha de cal, ainda hoje fala de isolamento e solidão.
Tonho
ORLANDO E FILINTO:
Seus escritores de férias! Para mim vós sois a “jam nova progenies” de que falava o Camilo a propósito do aparecimento de Júlio Dinis. Cá vos espero para reconstruirmos a crónica da velha Rebordainhos. Abraços
Tonho
ELVIRA e REBORDAS
Mais uma vez obrigado pelas vossas palavras carinhosas. César, não sabia que tinhas sido uma das vítimas das artes clínicas da minha mãe. hum abraço
António
Senhor ANÓNIMO:
Você até sabe umas coisas e não escreve nada mal e eu até tenho andado com pachorra para ler as suas prelecções. Mas há na sua escrita três coisas aborrecidotas:
1. Acabe de vez com essa história do anonimato e olhe para nós de frente, olhos nos olhos, à boa maneira transmontana.
2. Os seus “comentários” nada têm de comentário porque nada têm a ver nem com a matéria em questão nem com Rebordainhos. São antes excursos mais ou menos aleatórios sobre o que bem entende, com algumas obsessões de que nós não temos culpa.
3. E depois… esse seu tom doutoral, vagamente errático entre Estado Novo e Comité Central, com que se apresenta a catequizar os gentios… francamente não cabe aqui.
A. Fernandes
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