sexta-feira, 15 de abril de 2016

O PÃO NOSSO DE CADA DIA

ii - o caldo e as sopas

Nós não temos sopa, temos caldo, palavra de pergaminhos porque filha legítima do latim caldus; palavra fidalga que deveríamos preferir à burguesa sopa que nos entrou portas adentro quando, por cá, se decidiu que era muito chic entremear galicismos nas frases (tal como agora é muito stylish misturar anglicismos de origem americana).
Se não temos sopa, temos sopas, que é palavra bárbara de origem germânica (suppa), provavelmente trazida pelos visigodos ou pelos suevos, à qual preservamos o sentido original: bocados de pão que se deitam em líquidos. A palavra tem singular, mas porque ninguém se sustenta atirando um único pedaço de pão para dentro da malga, usamos o termo sempre no plural. É assim que, com toda a propriedade, comemos as sopas de leite, as sopas de café, as sopas de cacau, ou as sopas de vinho. Às vezes dizemos ao contrário: leite com sopas, café com sopas, etc. Quem se não lembra daquela história, passada com um conterrâneo nosso que, chegando a um café da cidade grande, pediu: “o meu traga-mo com sopas!
As sopas de leite comíamo-las poucas vezes, porque as vacas mirandesas – aquelas que tínhamos e nos serviam – não são leiteiras e o seu úbere era mamado pelos vitelos.
As sopas de café eram servidas de manhã cedo, ao mata-bicho, em malgas de tamanho proporcional ao esforço de ter de arrancar da terra o sustento da família.
As sopas de cacau marcavam presença nos dias importantes da matança, ou da malha, forma de a família agradecer o trabalho de quem a vinha ajudar, proporcionando-lhe mimos de mesa fidalga.
As sopas de vinho, embora houvesse quem as preferisse às de café, eram pouco chamadas à nossa mesa, e comidas só pelos homens. Também elas eram disponibilizadas nas segadas, na malha ou na matança a quem as quisesse.
Mas as sopas, sem outro nome à frente, eram aquelas fatias de pão, quase transparentes, que a dona da casa cortava para a malga e sobre as quais derramava água fervida e temperada com duas areias de sal e um fio de azeite. Como descrever o perfume que se soltava dessas malgas em que pontuava o agre ligeiro do centeio e a macieza do azeite puro diluídos na água cálida? Como descrever os círculos da cor do ouro que dançavam à superfície, ora unindo-se uns aos outros, ora dividindo-se à medida que a colher mergulhava na tigela? Como descrever a beleza cromática dos tons escuros da côdea que se vão misturando com os tons mais claros do miolo? E como descrever a satisfação dos sentidos ao saborear tudo isso?

Havia, ainda, a variante das sopas trigas, porque feitas de pão de trigo, e das sopas com ovo quando, para dentro da água em ebulição, era aberto um ovo que se mexia para se desfazer em fios de gema e de clara. Era prazer em estado puro, ou serão as saudades da infância a sobreporem-se à verdade?   

O caldo (e era esse o tema único do artigo quando pensei escrevê-lo), para nós, é só um: o de couves – e couve galega! É verdade que comemos outros, mas dizemos que é de arroz, de massa, de feijão, etc.
O caldo exige mestria feita de muito amor, paciência e treino. Todos os dias, a mulher colhe as couves, olha-as de um lado e do outro, retira o pedacinho da folha onde esteja um bicharoco, ou marcas dele, sacode uma por uma e, depois, com cuidado para as não ferir, enrola apertadamente umas nas outras, até obter um manhuço perfeito e dimensionado ao tamanho da sua mão aberta, mas que arrocha em garra. Depois, corta os trochos (que servirão para as galinhas) e apara as pontas rebeldes. Só então estica o avental, ou puxa um alguidar, e começa a segar o caldo, com a mão esquerda encostada ao peito, que lhe serve de amparo, enquanto a direita empunha a navalha bem aguçada. Para ser o nosso caldo, as couves têm que ser cortadas em fios quase tão finos como cabelos. Se forem mais grossas já não servem e a mãe, que ensina a filha, repreende-a se fizer de outro modo: “olha que isso não é para os perus!”
A navalha não passa rente à mão; a navalha pressiona a mão, empurrando-a para baixo, de modo a que o corte seja exactamente da espessura requerida. À medida que vai sendo preciso, com a mão direita fazem-se subir as couves e, nesses momentos, aproveita-se para reajustar o manhuço e retocar de novo as pontas rebeldes. Terminado o primeiro corte, elas voltarão a ser talhadas, desta vez para que os fios fiquem menos compridos, facilitando a degustação. Só então se mergulham na água, pelo menos duas vezes. Nessa altura, já as batatas estarão cozidas e prontas a serem esmagadas com o garfo – também elas, uma a uma. Depois disso metem-se a couves, verifica-se o sal e tempera-se com uma bela colherada de unto.
Dá-se tempo para que as couves dêem uma volta na panela, ou no pote, e não mais que isso, para que o caldo não fique velho. Frequentemente é preciso acrescentá-lo, que é o mesmo que dizer, adicionar um copo de água para o tornar menos espesso. No fim da refeição, é lançado directamente da panela (ou do pote) para a malga e comido com colher. A minha mãe, contudo, comia o caldo sempre com garfo. O meu pai gostava de esforgalhar sobre ele algum miolo de pão, para o comer migado.

Hoje já não temos unto, mas o caldo de couves só me sabe bem em Rebordaínhos.
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Veio-me isto à lembrança por causa da seguinte passagem de Camilo:
Uma grande parte do clero que pastoreia as almas, pode bem ser que me não aceite a verosimilhança deste caldo de couves. Espero que desçam da sua incredulidade, se eu lhes disser que a côngrua e pé-de-altar de S. Julião da Serra não davam para chá, naqueles tempos em que os direitos da xaropada chinesa eram enormes, e os paladares genuinamente portugueses, lá daquelas serranias, se saboreavam de preferência no salutar cozimento de couves adubadas de saboroso unto. Ora eu, que nesta fidalga e francesa Lisboa tenho sido espectáculo de riso, pedindo nos hotéis e recomendando aos meus amigos, o caldo verde, dando à estampa neste lugar e para meu duradouro opróbrio, o panegírico do caldo verde, caldo de meus avós, e do padre João, e de sua irmã.
In Camilo Castelo Branco, O Bem e o Mal

13 comentários:

Elvira Carvalho disse...

Um texto muito interessante.
Por aqui se chama sopas de cavalo cansado às sopas de vinho. Uma coisa que nunca entendi muito bem, nunca vi cavalo comendo sopas.
Um abraço e bom fim de semana

Anónimo disse...

Apesar de humildemente me assumir como um simples plebeu, a sucessão contínua dos meus ascendentes remonta a tempos anteriores ao período glorioso de Péricles na Antiga Grécia.
Veio-me à ideia esta questão das origens porque li com muita atenção e deleite este artigo primorosamente escrito por quem sabe, como mais ninguém, associar ao rigor histórico e filológico a arte do conto.
Efetivamente, parece-me que os meus antepassados e os da autora, no tempo do Império Romano, terão vivido em regiões contíguas, mas separadas por uma fronteira, considerando que a Beira Alta atual se integraria na Lusitânia e Trás-os-Montes faria parte da Galécia, pois só assim consigo compreender a pouca importância que o queijo e o leite têm nos hábitos alimentares tradicionais de Rebordainhos quando comparada com a primazia que o leite e o queijo têm, senão na alimentação quotidiana, pelos menos nos gostos gastronómicos das gentes da serra da Estrela.
Os pormenores com que a autora descreve a confeção do caldo verde, em que era necessário seguir uma sequência de procedimentos quase rituais que fazem lembrar a preparação e a cerimónia de servir o chá verde no Japão, são um exemplo vivo de que muitas vezes é mais fácil encontrar um “evento cultural”, como agora se diz, na cozinha despojada de uma casa serrana do que nas galerias sumptuosas dos museus ou nas salas de aula de muitas ditas universidades, com alvarás atribuídos pelo Ministério da Educação, onde apenas se aprende que os canudos servem para disfarçar que se tem graus académicos necessários para ficar com o tacho que o amigo político corrupto arranjou!
Por agora não me estendo mais nas elucubrações em torno de uma malga de caldo porque, sem querer, poderei estar a escrever para o boneco.

Cumprimentos

Fátima Pereira Stocker disse...

Nota

Hoje, dia 17 de Abril, acrescentei dois parágrafos ao texto original: tinha cometido o lapso imperdoável de me esquecer das sopas mais usuais. O acrescento diz, pois, respeito às "sopas", às "sopas trigas" e às "sopas com ovo".

Fátima

Fátima Pereira Stocker disse...

Elvira

Também as conhecemos assim e o nome só o consigo entender como metáfora.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Anónimo

Nós todos remontamos simbolicamente a Adão e Eva.

Tem razão naquilo que diz sobre as divisões administrativas dos romanos, embora a minha região, antes da Galécia, tivesse integrado a Tarraconense. A diferença que refere na alimentação existe, de facto: apesar de termos alguns rebanhos de cabras e de ovelhas, nem o seu leite, nem o queijo dele feito, marcavam presença constante à nossa mesa. Mais do que a romanização, creio que a ocupação do solo de acordo com aquilo que as condições naturais permitem justificará melhor os matizes da alimentação.

Agradeço-lhe a participação e as palavras gentis.

Cumprimentos

Anónimo disse...

Lá diz a canção:

Sopas de vinho não embebedam
Se não há vento nem chuva
E as botas não me escorregam
Que diabo é que me empurra...

Anónimo disse...

Começo por esclarecer que sou o anónimo n.º 1. Não digo que o humor do anónimo n.º2 seja melhor ou pior do que o meu, mas que é completamente diferente, lá isso é!
Enfim...adiante!
O meu caldo revelação teve vagens (feijão verde, à lisboeta), foi cozinhado em pote de ferro, ao lume de lenha de carvalho, com legumes acabados de colher na horta e cujo sabor intenso deviam ao sol inclemente do interior português e à terra pobre onde cresceram bem regados por água fresca.
Resumindo, era um caldo que recendia tão bem como o arroz de favas do Eça! E que sabia melhor, como se diz em Rebordainhos!

Fátima Pereira Stocker disse...

Anónimo 2

Isso é do conjunto António Mafra, não é? Sendo, ou não, não me parece que vá muito de encontro ao teor do artigo.

Cumprimentos

Fátima Pereira Stocker disse...

Anónimo 1

Justificou muito bem um dos motivos mais importantes para que a alimentação saiba melhor nas aldeias: os produtos saem directamente da terra para o pote e são cozinhados - nas nossas regiões - em macia água que nasce em terra de xisto ou de granito. O sabor (saibo, entre nós) é incomparável.

Cumprimentos e obrigada pelo acrescento.

Chanesco disse...

Fátima

Também nós aqui pela Raia Beirã pomos o caldo ao lume. Mas temos um caldo que aqui se afidalgada: o simples "caldo de grãs", substancial fonte de proteínas para cavadores, quando presente na ementa das bodas à antiga, (quase invariável) toma na ocasião o fino nome de "sopa de grão" (a dita sopa de casamento - grão com massa de cotovelo).
As vossas "sopas trigas" já por aqui sofrem a influência alentejana virando migas: são as "migas de café", as "migas de batata"(batatas às rodelas cozidas com cebola e deitada sobre uma camada de pequenas fatias de pão cortado fino, as "migas de ovo", também designadas por "migas de alho" muito apreciadas pela gaiatada e quantas vezes a fazer a função de canja para doentes...
Cada terra com seu uso ..., mas afinal as panelas são as mesmas. Apenas mudam os testos.

Abraço

Anónimo disse...

Os grãos de bico (gravanços) do Chanesco, depois de colhido na horta, eram espalhados sobre uma manta estendida sobre uma laje de granito, onde secavam lentamente ao Sol.
À mesa da boda só iam os melhores manjares e, por experiência própria própria, posso dizer à malta do blogue que a sopa de grão do Chanesco é de comer e chorar por mais! (Não vale usar grão enlatado)

Anónimo n.º1

Fátima Pereira Stocker disse...

Chanesco

O vosso "caldo de grãs" deve corresponder ao nosso "caldo de erbanços", já que erbanço é o nome que damos ao grão-de-bico. É de encantar os sentidos, porque recende, porque luz em ouro pálido e porque sabe pela alma! Não o fazíamos muitas vezes, mas integrava a nossa alimentação.

Obrigada pela achega.
Um braço

Fátima Pereira Stocker disse...

Anónimo

Acredito piamente!

Obrigada pelo contributo.

Cumprimentos