quarta-feira, 5 de outubro de 2016

NEM SEMPRE O QUE PARECE É

(Van Gogh)

Nem mesmo a teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico veio alterar, naquela terra, o ciclo das colheitas. Depois da acarreja, e decidindo-se a ordem de entrada das malhadeiras pelas eiras cravejadas de medas, dava-se início às Malhas.

Para animar apregoava-se “à eira que o bacalhau está na caldeira”. De todos os caminhos convergiam, uns mais lestos que outros, aqueles que queriam a torna-jeira ou os que por afinidades ou favores lá tinham que dar uma ajudinha.

Por vezes ouvia-se em surdina, “nesta só fico até ao jantar (leia-se a parte da manhã) que a minha só dura meio-dia”. Mas no final tudo acabava por se realizar.

Numa dessas Malhas, cuja meda invariavelmente de forma rectangular, e que durava… durava… até o sol se deitar e por vezes acabava-se no dia seguinte, era o caso da malha do “Santo”, à qual muita gente torcia o nariz…, questionou-se seriamente Copérnico e a sua teoria do séc. XV.

Ainda ao raiar do sol, e depois do mata-bicho, o Amador vira-se para o Fernando do tio Zé “Çuca” e diz-lhe – “Aguenta aqui no carro e nos molhos, que eu vou descansar um pouco ali atrás do palheiro”.

As horas passaram e o Amador lá ficou, sonhando…, quem sabe com o bacalhau, com azeitonas e com o pão molhado em azeite… ou, por outras razões desconhecidas, o sono tinha-se tornado mais pesado que o devido.

Já à tardinha, quando o sol se preparava para se ir embora lá para os lados de Soutelo, e enquanto ainda espreitava através do cume da serra, o Fernando lembrou-se de ir ver do Amador. Ainda ressonava. “Amador… Amador… Acorde que em breve se faz noite”, e o Amador nada… “Amador, acorde”, e elevava cada vez mais a voz.

O Amador esfrega os olhos em sobressalto, abre as pálpebras pesadas da longa soneca, olha em redor e murmura para o Fernando:
– “Fernando…, parece-me que o sol hoje nasceu ao contrário, não te parece…?”
– “Oh Homem dum caraças, está-se a pôr! Vamos embora antes que dêem por si!”
E assim, todas as tardes, tal como Copérnico previra, o sol deitava-se para os lados da serra, … ainda hoje assim é.

5 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Orlando

Bela gargalhada me fizeste dar, com essa do sr. Amador: o Sol nasceu ao contrário! E porque não?

O Manuel da Fonseca tem um poema lindíssimo, que vem a propósito:

(...)
"Quando a noite vem
pendura o sol à beira de um valado
e dorme toda a noite à soalheira…
(...)
E só à noite se cala o pobre,
Atira-se para o lado,
dorme, dorme…

E toda a noite o sol o cobre…"

Obrigada!

Augusta disse...

Pois é. Afinal a terra não gira ao contrário. O sr Amador é que tinha, naquele dia, o sono trocado.
Valente Orlando. Conta mais que a gente gosta.
Beijos

Olímpia disse...

Olá Orlando

Que bom voltar a ler os teus belos textos.
Ri a bom rir pois há dias, aconteceu-me praticamente o mesmo: adormeci ao fim da tarde e, quando acordei, pensei que não tinha ouvido o despertador.

Beijinhos

Olímpia

Anónimo disse...

Peço desculpa por não bater à porta, mas desta vez foi o senhor Orlando que, fazendo-se acompanhar do bom velho Copérnico, veio, com toda a naturalidade, dar à minha praia.
Os assuntos do Sol e da Terra não interessam apenas aos filósofos profissionais ou aos astrofísicos mais eminentes. Por este hilariante relato, muito bem ilustrado com um magnífico quadro de Van Gogh, vemos que os agricultores, enquanto homens de pensamento e de ação, também refletem sobre a natureza e os movimentos dos astros celestes. Já os antigos egípcios sabiam prever com precisão quando ocorriam as estações das cheias do sagrado rio Nilo, que iriam fertilizar as terras, e as estações do cultivo, porque também tinham uma astronomia desenvolvida que já lhes permitia dizer, por exemplo, que um ano tinha 365 dias. Ora o estabelecimento de um ano com esta duração tem tudo a ver com um estudo aprofundado da observação e registo do movimento do Sol, ao longo do ano, no céu azul forte do Egito.
Copérnico defendia que para compreender melhor os movimentos dos planetas, incluindo o da Terra, era conveniente que o Sol ocupasse o centro do Universo. E lá nisso ele tinha razão. Mesmo a Igreja Católica da época foi condescendente e a teoria heliocêntrica foi aceite enquanto mero artifício matemático de explicação do movimento dos astros. De resto, no século XV, tal como na atualidade, é evidente que o Sol move-se no céu e a Terra está parada cá em baixo. A diferença é que, atualmente, o movimento, o espaço e o tempo não são conceitos absolutos. O movimento de um corpo só tem significado se referirmos um outro corpo em relação ao qual o primeiro muda de posição ao longo do tempo.
No entanto, considerando as tarefas comuns do dia a dia da maioria esmagadora dos habitantes da Terra, incluindo os agricultores, o melhor referencial ainda é o chão térreo, firme e parado que vamos pisando. Mas, por exemplo, a conceção e a fabricação dos modernos aparelhos GPS, exige que os efeitos dos movimentos complexos de translação e rotação da Terra sejam introduzidos como variáveis em cálculos computacionais ou, a não ser assim, as coordenadas geográficas fornecidas pelos aparelhos estariam sempre erradas.
Resumindo, naqueles tempos das malhas, todos sabiam que o Sol, quando nascia, a oriente, era para todos: tanto para os que se esfalfavam a trabalhar, cobertos de suor e pó, como para os que, cansados de uma vida dura, eram vencidos por um sono pesado que os fazia ver o mundo ao contrário.

Anónimo disse...

Fátima:

Obrigado por postares mais este conto que me foi transmitido pela minha tia Lúcia.
Como diria o pai dela, meu avô, "Carai Manel então não é que o furão me entrou pela saída da toca".

Pois é que uma porta serve para abrir e fechar e para entrar e sair.

Bjs

Augusta,

Tu que estás nesses páramos de Portugal é que te podes dedicar a recolher estas historietas dos nossos conterrâneos.

Bjs

Olímpia,

Então rapariga, tu não sabes que quem muito dorme pouco aprende. Vê lá se voltas ao Sec. XIV.

Bjs

Sr. Anónimo

Por mim estas serem foram umas portas abertas. É sempre bem-vindo e ainda melhor quando nos vem presentear com uma reflexão sobre temas tão enigmáticos (movimento, espaço e tempo) que nos obrigam a amarrá-los em referencias que, só por si, podem também ser questionados.

Se o "Astrário" de Cleópatra saísse do fundo da baía de Alexandria, talvez ele nos indicasse de forma mais exata como é que os antigos, mesmo os seus ascendentes, já mediam (previam) os acontecimentos do seu tempo, mas... como reza a lenda tudo se afundou com os barcos e com o desconsolado Marco António para gáudio de Octávio.

Gostei da sua reflexão sobre este tema ao qual sou apenas um curioso leigo.

Obrigado.

Orlando Martins