Por: ORLANDO MARTINS
"Vergonha não é
parecer louco por ajudar e defender os animais.
Vergonha é ver a sofrer e
não fazer nada!"
Eram quatro horas da tarde. O
vento de noroeste que soprava da serra roxeava a ponta do nariz e os lóbulos e
hélices das orelhas. Como brincadeira de alguma malvadez oferecíamos a nossa
solução: - Queres que te aqueça as
orelhas? – E esfregávamos com as mãos os apêndices em hipotermia até as
lágrimas da vítima se começarem a soltar, bem como alguns palavrões…
Quando estas condições eram
acompanhadas por umas nuvens baixas e negras, Nimbostatus, segundo os eruditos, ou nuvens que trazem neve segundo
os velhos e o seu saber de experiência, podíamos quase anunciar, tal qual no
Boletim Meteorológico dos nossos dias, que amanhã íamos ter neve de certeza.
-
Até amanhã tiu Atilano…
-
Até amanhã rapaze… e vai pró lume que hoje inda neva…
-
Deus o queira, e a tia Cândida já está ao borralho?
-
Tá a fazer o caldo, e depois caminha, que isto está bravo, a candeia da Alzira
já alumia há quase uma hora e a Eduarda já fechou portas.
Estávamos já em Dezembro e, a
estas horas da tarde, já toda a gente se apressava a acomodar os animais,
recolher alguma lenha do sequeiro para o lume que iria aquecer um pouco a casa
e tratava-se de começar a preparar a ceia.
Daquela hora em diante
já poucas almas se atreveriam a sair à rua. Comeu-se o caldo entre paredes,
contaram-se lendas e façanhas de outrora enquanto com as tenazes se aconchegava a
cinza às brasas e se deixava apagar o último tição. Pedia-se a bênção e, como
cordeiros, lá íamos para dentro dos cobertores.
A noite passou-se no mais
santo dos sonhos, e a brisa fresca da manhã que invadiu a casa, pela abertura
da porta da rua pelo meu pai que ia buscar mais lenha para acender a lareira,
fez-nos acordar para um novo dia.
Estava tudo tão calmo… tão
silencioso… tão esquisito, que fui espreitar à pedra da escaleira.
Estava tudo branquinho, um
manto espesso de neve cobria a aldeia deserta, os montes ao longe não se
distinguiam da paisagem, parecia que estávamos num limbo de pureza e paz…
-
Nevou pai,… nevou…, acha que vai durar muito a derreter?
-
Pela maneira como isto está ainda vai piorar, agasalha-te e vai lá p´ra dentro…
-
Agora vou dar de comer às bacas, galinhas e coelhos e a tua mãe faz-vos já qualquer coisa para comer. Raios partam este
fumo, mas isto quando começar a arder já passa.
Passados alguns minutos oiço o
meu pai aos gritos a chamar pela minha mãe.
-
Oh Maria, … Oh Maria…
-
Raios partam o homem, o que é que queres?
-
Tu ontem encerraste bem as galinhas e a pata com os dez parrecos pequenos?
-
Ou penso que sim, num estão no galinheiro?
-
Nem no galinheiro nem em parte alguma, se não foi uma raposa, estão todos
mortos debaixo nevão. Não se aguentavam a noite inteira com tanto frio.
Após inúmeras e infrutíferas
buscas, enquanto subíamos os degraus gelados da escaleira para entrar em casa,
vislumbrámos um movimento debaixo de uma giesta coberta de neve no sequeiro
encostado à escaleira.
-
Tchiu… tenho cá uma fé que eles vieram para aqui. –
Disse o meu pai.
Retirando cuidadosamente a
neve e afastando alguns guiços em volta, apareceu a asa branca da pata que,
durante a noite, tinha coberto e aconchegado, quase por completo, aqueles
peluches amarelos que a tinham seguido como filhos obedientes sentindo que,
debaixo dos braços e do coração dos progenitores, se sentiam salvos e seguros.
Infelizmente, estavam todos
inanimados e as arestas de gelo, que se haviam formado, fechavam-lhe os olhos e
os bicos, e a fofura da sua penugem amarela tinha-se tornado numa espécie de
trapo de desperdícios.
-
Oh Maria, vai lá cima arranja um cobertor, atiça o lume e espalha um pouco de
brasas… depressa, vai lá mulher…
Não sei se verti alguma
lágrima, mas uma coisa vos garanto, o meu coração chorava, e quando vi o meu
pai tirar o casaco, apanhar aqueles corpos inanimados, cabeças descaídas e uma
infância tão inocente desperdiçada, aconchegá-los ao peito e correr escaleira
acima em direcção ao lume, uma réstia de esperança invadiu-me por completo.
Deitou os infelizes patinhos
no cobertor junto à lareira, eu puxei uma tripeça e fitava os pobres animais
inanimados, pensando se haveria na realidade milagres.
-
Temos que esperar… e rezar… temos que esperar… -
Dizia o meu pai.
O tempo andava lentamente, os
segundos tornavam-se minutos e os minutos tornavam-se horas.
Para minha surpresa, um dos
petizes moribundos, ao fim de algum tempo, abriu lentamente os olhos, as suas
pernitas começaram a mexer…
-
Pai… Pai… este ainda está vivo…
-
Vamos esperar mais um bocado… temos que ter fé…
Lentamente um, depois outro e
outro foram renascendo e uma felicidade enorme invadiu aquela casa. Apenas dois
tiveram sorte diferente.
Se não foi um milagre, foi
amor…
E o amor não é um milagre?