Por: ORLANDO MARTINS
Eu soprava…, soprava… e nada,
enrugava os beiços, metia os dedos na boca, pressionava a língua, fazia
caretas,… mas o raio do assobio não saía. Por muitas lições que me dessem e por
longos e repetidos ensaios que fizesse o meu assobio não era mais que um
guinchozito incapaz de assustar o mais assanhado dos gatos.
Já quase todos os garotos da
minha idade o faziam sem grandes dificuldades. O Amâncio, que era mais ou menos
da minha idade, já assobiava há muito tempo, aprendera com o irmão mais velho,
o Valente, que era pastor.
Esse sim, até vibratos fazia o
que me deixava estupefacto e me motivava na minha aprendizagem que, diga-se em
abono da verdade, poucos resultados obteve.
A vida do Valente não lhe
permitia passar muito tempo com os amigos, guardava um rebanho de ovelhas e
durante o dia raramente se via na aldeia, vivia uma vida de eremita tal como o
seu colega Alfredo o “Aidinhas”, percorria o termo da aldeia rasteando os
melhores pastos e quando alguma ovelha se tresmalhava logo a chamava pelo nome,
ou recorria ao assobio próprio para que os seus cães a chamassem à razão de se
manter na união do grupo.
Mas, já noite, quando as ovelhas estavam
recolhidas na curriça ou entre cancelas, com os seus dois fiéis cães pastores
de guarda, e após uma bucha pelo caminho, lá ia ele até à taberna para
desfrutar de um curto, e quase único, convívio com o resto da rapaziada.
Era um rapaz de poucas palavras,
de estatura baixa e olhar arguto, muito enérgico e determinado e o seu gabarito
de afouto seguia-o como uma sombra.
Foi numa dessas noites, na
taberna do Álvaro, que enquanto “Patinge” e o tio Aniceto jogavam o chino, mostrando
todas as suas perícias em atirar a moeda, e na única mesa de canto os parceiros
de costume, o Adriano “Torto”, o “Frade”, o Juíz e o tio Arnaldo se debatiam
numa jogatana de sueca interrompida no final de cada jogo por táticas e
discussões de jogadas, onde alguns insultos e reprimendas ao parceiro se
destacavam por este não ter destrunfado ou metido a bisca.
A noite lá fora estava escura
como breu e o vento de norte assobiava com uivos sobrenaturais e fugidios como
se fossem gritos longínquos de desespero. A ténue luz do gasómetro mal dava
para iluminar as figuras das cartas espanholas da sueca e o vinho, servido a
copo, só se distinguia se era tinto ou branco pelo sabor.
O assunto da conversa da
rapaziada mais jovem centrou-se no cemitério,… nas campas,… nas cruzes e
lápides,… nos defuntos que lá repousavam. O ambiente tornou-se sinistro e todos
confessaram recear passar durante a noite em frente à “mansão celeste” onde
baixavam os olhos para o caminho ou trauteavam uma moda que os ajudasse a
estugar o passo.
O portão desta morada final estava
ladeado por dois pequenos ciprestes que, com o vento e a luz difusa da lua,
projectava sombras em movimento nos muros que se iam transformando, na imaginação
de cada um, em imagens e recalcamentos de contos e lendas aprendidas nas longas
noites de inverno.
Arrepios,… pele de galinha,…
cabelos da nuca em pé,… olhos esbugalhados,… boca aberta,… um zumbido
claustrofóbico,… respiração arquejante e uma aproximação física da ganapada,
quase se abraçando, para sentirem um pouco mais de protecção contra qualquer
alma que naquele dia andasse a vaguear procurando descendentes ou assuntos por
resolver que deixara na sua vida.
A vontade que se agigantava de
meter pés ao prado, fugir para casa e sentar-me ao lume junto à luz da candeia
a petróleo para que esta lavasse os meus medos
era enorme, mas o tremer de pernas e alguma curiosidade mantinham-me no
grupo.
Plim… Plash…. Zum… zummm… tlaque… e a moeda de dois vinténs
parava.
- Três pontos, pinchei o chino. – Dizia o “Patinge”, deitando a
língua fora e olhando para uma suposta assistência.
- Tá bem, mas se a minha ficar mais perto do chino tiro-te um ponto, num
comeces já a festa. – Retorquia o Aniceto que também era um bom jogador, e
cada partida era a um copo de vinho que o Álvaro ia controlando com uma espécie
de numeração egípcia num resto amarelado de uma folha de papel almaço.
Aproveitando esta abertura na
conversa densa da rapaziada, o Tonho e o Pintassilgo, atiçados pelo Tarcísio,
desafiaram a ousadia do Valente.
- Oh Valente se fores ao cemitério sozinho, deixares uma marca em cima de
uma campa e ficares lá pelo menos uma hora, damos-te duas coroas.
O Valente, afoito e habituado à
noite respondeu logo: - Caracho, dais-me
já uma e outra quando eu voltar, mas “esperaides” aqui por mim.
Tal como o prometera assim o
cumpriu e, no dia seguinte, todo o pessoal, mais livre e descontraído com a
claridade da luz do sol, desabafava:
- Fosca-se, não é que o gajo foi mesmo lá, vi lá um ramo de giesta
deixado por ele numa campa, e deve ter saltado o muro pela parte da cabecinha
que é mais baixo.
O Valente, que não o era só de
nome, tinha provado toda a sua bravura.
Muitos anos depois, já eu em
terras de mouros, um título dum jornal nortenho captou toda a minha curiosidade
e senti uns calafrios percorrerem-me o corpo todo.
“PASTOR TRANSMONTANO MATA LOBO
COM AS PRÓPRIAS MÃOS”
Comprei o
pasquim, li a notícia até ao fim e, para meu espanto, tinha sido o Valente a
perpetuar a sua fama.
Alguns anos
mais tarde, no meu último encontro com ele, perguntei-lhe como tudo tinha
acontecido, ao qual ele me respondeu:
- Sabes, … os cães é que o apanharam
e me ajudaram, eu apenas o sufoquei com um braço na garganta e a outra mão
metida pela garganta dele o mais que pude…
Mais uma lição
de valentia e humildade que aquele amigo me deixou e agora recordo com alguma
nostalgia.
Obrigado
Valente e felicidades na tua vida.
16 comentários:
Orlando
Aos poucos, vamos destapando o véu do esquecimento sobre as pessoas da nossa terra. Obrigada pelo serviço que tu e o Tonho da tia Lídia me ajudais a prestar.
O Valente, de figura franzina, há-de gostar de te ler e ver que as suas façanhas fazem parte do nosso imaginário. Noutros tempos, tudo isto seria contado durante as veladas de Inverno. Hoje, espero que esta página da Internet ajude a suprir a falta dos nossos serões.
Já agora: o Valente, emigrante na Alemanha, faz questão que filhos e netos falem um Português sem mácula. Dá gosto.
Bem-hajas tu e bem haja o Valente.
Beijos para os dois
Já lá vão uns anos valentes, porém ainda recordo bem o dia em que tive o privilégio de conhecer de vista essa personalidade ímpar de pastor e de Homem, tão bem retratado neste artigo. Efetivamente, vê-se que o senhor Valente é um homem de rasgo que terá chegado à conclusão de que uma vida passada a matar lobos, em Rebordainhos, nunca o levaria muito longe e, então, partiu, seguindo as pisadas de muitos outros, para uma terra distante onde as feras não são tão bravas e o salário do trabalho de um homem garante, todos os dias, muito pão-trigo e vinho sobre a mesa posta.
Eurico Martins disse...
Gostei como te lembras ainda dessas estorias que eram os nossos divertimentos e as nossas conversas da noite que por vezes estavamos a bater o dente com o frio pois a braseira so aquecia os que estavam a jogar a sueca e nos estávamos ali como se estivesse assistir a um grande jogo de futebol
15/11/2016, 22:01:00
Que história! Penso que o pessoal antigamente era mais afoito, tinha menos medo. Apesar disso homens como o Valente devem ter havido poucos.
Um abraço
Longe vá o agoiro, Senhora Dona Elvira Carvalho!
A senhora não pode dizer "homens como o Valente deve ter havido poucos" quando o herói real desta história real está tão vivo como qualquer um de nós!!
Anónimo
A Elvira é uma pessoa de grande gentileza que merece reciprocidade no trato.
Cumprimentos
Amigo Orlando:
Carai! Até me arrepiei todo!
Não sabia destas façanhas do Valente, mas acredito que sim. Nesses tempos havia homens (e até garotos capazes de afrontar os medos dos montes e dos mortos. Lembro-me de igual espanto me provocar o Zequinha Lelé do tio Domingos, capaz de idênticas valentias e de muitas larotas.
Eu bem sabia que ainda tinhas muitas histórias no bojo. Vai-as contando, meu velho. É um prazer ouvir-te.
Um abração
Tonho da tia Lídia
Então, aqui há um grande equívoco!
Para mim, aquela forma de escrever no passado "homens como o Valente deve ter havido poucos" quer dizer que agora já não há. Que eu saiba ainda há, pelo menos um, se não peço as maiores desculpas pelo meu comentário.
Anónimo
Não há equívoco nenhum, simplesmente, a comentadora não conhece Rebordaínhos e, menos ainda, as suas gentes, por isso não tem como saber se as pessoas estão vivas, ou não, sobretudo porque, sendo leitora habitual, percebe que costumamos falar de pessoas que já não estão entre nós. Felizmente, o Valente não só está vivo como, nos tempos que correm, pode ainda ser considerado um jovem.
Obrigada pela resposta.
Cumprimentos
Bom dia a todos e bom fim de semana.
Obrigado a todos por se darem ao trabalho de lerem estas tretas que de vez em quando vou escrevendo, quase como a matar saudades da minha infância.
A ti Tonho, um grande abraço e vê lá se rebuscas mais qualquer coisa.Porque é um prazer saber que em terras de Viriato também existem Rebordainhenses.
Um abraço a todos.
Orlando Martins
O Valente agradece os comentários sobre as suas histórias que faz questão de contar a filhos e netos nos almoços de domingo de forma a matar saudades da sua aldeia
Um grande abraço para ele do Orlando do tio Piloto.
Felicidades
E um orgulho ser filho do Valente! Eu tambem la estava cheiro de medo mas firme.obrigado por os comentarios
Orlando:
Um pedido de desculpa pelo atraso no comentário. Afazeres vários têm-me mantido afastada deste canto. Mas sabes que é sempre com enorme prazer que te lemos e, verdade seja dita, regalamo-nos com os teus escritos.
Também eu li a aventura do Valente no jornal mas, tu dizes ter sido num jornal nortenho e eu tinha a ideia de ter sido no "Diário Popular", jornal que o tio Adriano comprava diariamente. tenha sido num ou noutro, não importa. O que importa é que o Valente fez jus ao apelido que tem.
É sempre com gosto que o vemos sempre que vem de férias a Portugal e, como diz a Fátima, dá gosto falar com os seus netos pois falam o Português sem réstias de qualquer sotaque.
Beijos para ti e, desculpa, principalmente para o Valente e família.
Ps: Já agora, o Valente é da minha idade e da tua irmã. Somos apenas 3, dos muitos que no nosso ano entrámos para a escola .
Olá Orlando,
é bom recordar estas histórias verdadeiras e que tu descreves tão bem.
Bem-hajas
Beijos
Olímpia
Obrigado muito de falar do meu tio assim e contar a essa história. É uma pessoa que tem uma verdadeira nobreza de coração. Numca esqueceré o fez para o meu pai, o seu irmão, no dia do enterro. Bons baisers de France
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