segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

CANTEIRA


O caminho terá pouco mais que 1m de largo, mas agora, com o uso escasso, limita-se à dimensão das pegadas humanas. É a canada da canteira, talvez a mais pequena das canadas que atravessam o povo, ou das que dele saem. Se fosse rua de uma cidade, diríamos que desemboca numa praça ampla (a eira dos Pereiras/Fernandes, a poente) e num largo (para onde se voltam as casas do sr. Bernardino, da sra. Delfina, o palheiro do sr. Adriano e as traseiras do sr. Carlos “Chiote”, a nascente). É sítio sempre húmido e absedo, porque encravado entre muros.
É da nascente que dá o nome à canada que me apetece falar: a fonte da canteira. Que é fonte nós sabemos – afinal, da ferida aberta naquela fraga brota uma água fresquíssima onde enchíamos os cântaros para dessedentar os animais. Mas, porquê «canteira»?
Efabulando:
Se canteira é “pedreira donde se corta pedra para construções” (Dicionário de Moraes, fins do séc. XVIII), seria toda aquela zona uma enorme pedreira onde os fundadores da nossa terra se abasteceram para construir as suas moradas? As enormes pedras, erguidas como menires à entrada da eira, poderão ter saído dali e fazem jus ao nome…
E se canteira for “pedra que se põe nos cantos ou esquinas das paredes. Lapis angularis”, conforme ensina Bluteau (início do séc. XVIII)? Atendendo à primeira parte da entrada: terão saído daquele lugar as magníficas cantarias que formam os cunhais das nossas casas?
Prefiro ater-me à segunda parte do verbete de Bluteau: Lapis angularis –  pedra angular, a pedra que encerra a construção do arco e o sustenta . A pedra extraída do lugar da nascente é grande, destinada, por certo, a um edifício que o povo visse, comummente, como merecedor de desvelo maior: a igreja, único edifício que, na nossa terra, ostenta um arco, um belíssimo e amplo arco romano todo ele feito de cantaria.
Será que, quando olhamos para a pedra angular, sobre a qual se ergue o selo heráldico do bispo de Miranda a assegurar que a nossa paróquia lhe pertence, conseguimos identificar a proveniência de tão delicada cantaria?
O arco delimita a entrada no altar-mor, o espaço mais sagrado das igrejas, aquele onde se encontra Cristo consagrado; Cristo, a pedra que os construtores rejeitaram e se tornou pedra angular. Será da canteira a pedra que, na nossa igreja, simboliza Jesus?
Da fenda aberta na rocha brotou água.
No deserto, durante o êxodo do Egipto, foi ordenado a Moisés: Ferirás a rocha e dela sairá água, e o povo beberá. (Livro do Êxodo, 17, 6)
Que Moisés terá fendido as nossas fragas para que delas brotassem as águas? Que construtor terá decidido não rejeitar a rocha e a levou para o templo daquele que é fonte de vida?

Tudo quanto deixo escrito não passará de devaneio. Mas quis partilhá-lo convosco.

4 comentários:

Augusta disse...

Só mesmo tu para te pores a magicar nestas coisas! Quem sabe se não tens razão?
Beijinho

Elvira Carvalho disse...

Um texto muito bonito. E quem sabe não há um fundo de verdade nos seus devaneios?
A natureza é prodiga em nos surpreender.
Um abraço e uma boa semana

Anónimo disse...

Já tenho saudades da canada da Canteira.
Por cima as hortas tinham umas apetitosas árvores de fruto.

Agora nunca lá parti pedra mas que havia ainda uma de grandes dimensões, já algo gasta pelas rodas dos carros de bois, por baixo da eira havia.

Obrigado pelas tuas dissertações...

Orlando Martins

Anónimo disse...

Este artigo tem dois efeitos imediatos naqueles que o leem com atenção:
- Enche-nos de júbilo, porque ainda nem tudo está perdido: pelo menos a autora sabe escrever bem em Português, não se rendeu às modernices do mirandês e evita galicismos e anglicismos:
- Edifica-nos por dentro, tendo assim um efeito contrário a autores americanos como o Dan Brown, cujos livros são mais corrosivos do que o ácido sulfúrico.
Fátima Stocker apresenta-nos a hipótese, altamente credível, de que as pedras usadas na construção das casas e da igreja de Rebordainhos foram extraídas da Fonte da Canteira e depois faz uma associação subtil entre a sua descrição de um bonito trecho de paisagem e alguns relatos bíblicos que também se referem a pedras e a água.
Em contraposição, podemos imaginar o Dan Brown que, como americano que é, representa a cultura dominante no mundo, a escrever sobre Rebordainhos. Ele provavelmente diria que Jesus Cristo nasceu num lugar de Rebordainhos chamado Belém, onde também casou com uma senhora chamada Maria Madalena e os seus descendentes diretos que ainda vivem na aldeia não fazem mais do que andar à procura do Santo Graal que, diz a lenda, deve estar por baixo das Ruínas do Cercado.
Os padres da Inquisição não gostavam de quem pensava como o Dan Brown. A diferença é que atualmente Roma é uma cidade do passado, agora quem manda é Washington, DC, portanto só podemos pensar de duas maneiras: ou pensamos como o pato Donald, ou pensamos como o Trump.