Por: ORLANDO MARTINS
Levanto-me
para ir tomar café. O ecrã do telemóvel acende e “Deixei tudo por ela” do
Zé Cabra irrompe num som galopante e estridente. Carrego no botão de atender,
mais para calar aquela cacofonia, e seguro o telemóvel entre o queixo e o
ombro.
- Tou…
- Companheiro,
como é que vai isso?
- Olha o gajo…
tudo bem mano?
- Ouve cá meu
paneleiro, queres ir à festa lá cima?
- Quando é que é?
- Domingo,… último
domingo de agosto, … já te esqueceste também do que é um engaço?
- Eh cum caraças…
como o tempo voa,… deixa-me falar com a patroa para combinarmos o dia da
partida.
- Ok, não digas
nada aos velhos, vai ser uma surpresa.
- Tá bem, amanhã confirmo
se é quinta ou sexta que arrancamos…
- Depois liga, um
abraço.
- Tchau.
E,
sexta-feira, lá nos metemos à estrada com os miúdos e as patroas a reboque.
Durante a viagem o meu filho mais velho dormia e acordava de meia em meia hora.
Quando
abria os olhos perguntava:
- Já chegámos?
- Já faltou mais. – Respondia-lhe
com um tom esforçadamente calmo, quase suplicando para que voltasse a dormir,
que a viagem era longa e, entre o “quero fazer xixi”, “tenho fome”, “doi-me a
barriga”, os quilómetros iam-se tornando cada vez maiores.
- Estão a ver ali
as antenas da Nossa Senhora da Serra? Agora é que estamos mesmo a chegar.
- Oh… andas a
dizer isso desde manhã. – Protestou o puto.
Passadas as bombas
de gasolina do “Feliz”, espreitando para o café “Caracol”, dando uma primeira
espreitadela ao Pelourinho e recordando momentos de comunidade e felizes natais
na omnipresente igreja, que a ansiedade de chegar aumentava, lá parámos em
frente à casa do tio António Piloto.
Silenciosamente galgámos
as escaleiras de dois em dois degraus, a juventude ainda o permitia, abrimos a
porta, e aquele bando de “forasteiros” invadiu a casa dos progenitores que
teimavam em espremer a terra que lhes tinha dado o sustento e a possibilidade
de dar uma vida diferente aos filhos.
Ninguém em casa.
Passados alguns
minutos lá apareceram eles vindos da labuta, com a sua dedicação à terra que
tanto lhes tinha dado, trabalho e alegrias, e com o coração sempre ansioso e
carente da companhia dos seus.
- Dão-nos qualquer coisa para comer? – Perguntou o meu
irmão Zé.
- Atão num damos…
sentai-vos meus filhos que vou já tratar de qualquer coisa. Deveis estar cheios
de fome. – Dizia
a minha mãe.
Os beijos, abraços
e suspiros de alegria pelos netos e filhos marejaram os olhos daqueles dois
pais que durante quase um ano viveram numa solidão silenciosa… esperando…
sempre esperando de coração aberto…
- Ainda há presunto no baixo? – Perguntava o meu
irmão. – “Encerte” aí um salpicão ou uma
chouricita que farto de batatas fritas ando eu.
- Vou-vos já
buscar um pão ao baixo, foi feito anteontem. - Dizia a minha mãe.
Contadas as novas,
as vidas e as promessas de regressar mais vezes, e depois da ceia, eu e o meu
irmão resolvemos ir matar saudades de todos os lugarejos daquele recanto onde para
nós os amigos e as pessoas eram a nossa casa.
Na véspera e ante
véspera do domingo festivo que se avizinhava, as tascas eram o ponto de reunião
dos habitantes normais e demais migrantes.
E assim, entre
abraços e histórias de outrora, e outras vezes de ocasião geralmente
acompanhadas de mais um copo para relembrar, a noite foi avançando… avançando…
até um céu, de um azul safira, se deixar perfurar por milhares de pontos
brilhantes que pareciam lançar sobre nós a cor terciária de um dourado, caindo
docemente sobre os nossos sentimentos e convidando toda aquela gente à recolha
dos seus lares…
A noite estava
amena, e aquele eterno céu estrelado convidou-nos, qual Roque e Amigo, a
efectuarmos um périplo solitário e silencioso pelas ruas da aldeia.
Mas
um homem é efémero, humano, e como qualquer outro animal, atacou-nos uma
necessidade física e inadiável de “arrear o calhau”. E assim, na eira por trás
da nossa casa, de cócoras, com as calças e cuecas nos joelhos, lá íamos nós com
alguma pressão abdominal, e um ou outro suspiro, aliviando o espírito e o
físico.
Com os olhos fixos
nas estrelas íamos comentando:
- Isto é lindo, parece que todas estas luzes vivem
numa eterna paz de pureza.
-
Quanto tempo se passou sem termos visto
esta maravilha. – Respondia-lhe eu sem pressas, que o vislumbre daquela
vastidão celeste embebedava qualquer um e o momento também proporcionava a
reflexão.
- Na cidade, com a merda das luzes dos
candeeiros, nem nos apercebemos disto.
- Sabes,… e a
maior parte do tempo nem para o céu olhamos. – Respondi-lhe.
E ali estávamos nós
estupefactos com o espectáculo, até eu lhe perguntar:
- Por acaso não tens
aí um lenço?
Ele,
distraído e embebido com a paisagem, e ainda a fazer um último esforço, tira a
mão de entre os joelhos, mete-a ao bolso do casaco, bem desviado para trás, e
entrega-me um lenço branco, bem dobradinho por acaso, onde se destacava o
monograma “J”, deduzi que devia ser a inicial do nome dele – José.
Desembrulhei a
relíquia e com ela limpei a gosto, e o melhor que pude, o meu rico “sim
senhor”, que o tempo de usar umas pedras ou a folha de alguma erva já lá ía, e
quando se apanhava uma urtiga pelo meio até as lágrimas mudavam de sítio.
- Ah seu cabrão dum caralho,… esse lenço foi a minha
mulher que mo ofereceu no dia dos meus anos,… amanhã estou fodido, paneleiro da
merda,.. eu bem sei o que tu merecias
agora… Cabrão… a limpar o cu com ele, seu maricas.
Eu, numa risota em
surdina, na qual ele também teve que alinhar, e já a apertar o cinto das calças,
respondi-lhe:
- Olha, para o ano que vem, pedes à tua mulher mais
uns lencinhos, caso contrário dás-lhe uma enxaguadela na poça do Espinheiro e
mete-lo à “sucapa” para lavar.
O lenço, coitado, lá
ficou na eira a arejar, penso que, pelos anos seguintes.
Nessa noite, dado
o adiantado da hora, dormimos juntos no último quarto com acesso à cortinha, o
pessoal tinha-nos rejeitado no leito já quente, e posso dizer-vos que passámos
mais de uma hora às gargalhadas com a aventura do lenço branco, até que a nossa
mãe, farta da algazarra, nos advertiu.
- Vede lá se dormis e deixai dormir os outros, seus
gandulos.
E lá entrámos num
sono tardio, ainda com algumas fungadelas, debaixo dos cobertores.
Sempre considerei este ato altruísta do meu irmão…