sábado, 27 de setembro de 2008

António Rodrigo

Recordo-o como uma figura serena, ora sentado à mesa com os fregueses, ora atrás do balcão medindo metros de pano ou litros de arroz. Às vezes, quando o sol apetecia, punha-se à porta, naquelas grandes pedras graníticas que ainda hoje convidam ao lazer e à conversa.

Casado com a senhora Angélica Costa, o senhor António Rodrigo era o dono da “Taberna de Cima”, herdada de seu sogro, o senhor Belizário. O povo, que lhe chamava Trocho de nomeada, também lhe deu o epíteto de “Pai dos Pobres”. Nessas coisas o povo não se engana.

Naquele tempo, comprar fiado era condição de sobrevivência. As leiras de cada um davam as batatas e o feijão, alimento de todo o ano, cozinhados com uma lambedura de toucinho criteriosamente racionado desde a matança do cevado até à matança do ano seguinte. Os filhos eram muitos e dinheiro vivo só quando se vendiam as castanhas – quem as tinha – ou quando se recebia a paga de uma jeira em casa mais abastada. Nessas alturas, quem tinha o nome a encimar uma folha do “Deve” no livro do tio Trocho, apressava-se a ir saldar a conta ou a pedir para abater. Mas havia quem nunca o fizesse. Mesmo assim, continuava a aviar a todos com a mesma gentileza. Nem que fosse tabaco! – “Coitado, deixai lá, que tem o vício!” O hábito de tudo assentar para ter contas certas vinha-lhe do sogro. Nos livros de ambos tanto se regista a venda dos artigos como, por exemplo, a compra de uma porca a meias com alguém ou de uma mobília ao Adriano Oliveira, natural do Porto e tio e padrinho de quem assina este escrito, pela quantia de 3 550 000 Réis. Estava-se no ano de 1945 e, apesar de haver o Escudo desde 1911, os valores ainda se registavam em Réis. Não há revolução que vença o costume! Quem não souber as equivalências, divida por mil e obtém o resultado em escudos.

Tal como as outras – e chegou a haver três – a taberna de cima era um lugar onde havia de tudo para bastar às necessidades aldeãs. Pregos, relhas para a charrua, meias, bacalhau miúdo e graúdo, açúcar, pano a metro de cotim, chita e riscado que as costureiras, a tia Maria da Avó e a sr.ª Laura primeiro ou, mais modernamente, a Cândida e a senhora Julieta transformariam em calças, vestidos e camisas com que todos cobriam o corpo. O vinho não poderia faltar, servido a copo na própria taberna ou vendido ao garrafão para consumo caseiro quando secava a pipa comprada no Inverno. O tio Trocho abastecia-se de tudo em Bragança onde tinha fornecedores habituais, também eles na posse de livros de dívida, pois quem vende sem receber não pode comprar e pagar logo. Ia de comboio e, à volta, o filho Eurico esperava-o em Rossas com o carro de bois para carregar os fardos das mercadorias.

A certa altura, a Taberna de Cima acrescentou aos afazeres normais os deveres de posto público dos CTT. Era lá que, todos os dias, o tio Benjamim e a tia Elvira depositavam o saco do correio que iam levantar ao comboio a Rossas. Quem esperava notícias punha-se à coca de os ver passar e, em passo ligeiro, dirigia-se ao prado. Quem, normalmente, abria o saco era a senhora Angélica ou, nas férias escolares, a filha Maria Teresa que estudava para professora. Uma e outra iam chamando, à vez, os destinatários, em recriação serôdia de uma das mais belas cenas de Júlio Dinis na sua Morgadinha dos Canaviais. Eram quase todas cartas de longe, Brasil e França, algumas com o debrum colorido da “Via Aérea” e outras, emolduradas a preto carregado, anunciavam a tragédia. Nos anos assustados da guerra, muitos ansiavam pelos aerogramas de Angola, Guiné e Moçambique. Muitas pessoas ficavam para o fim, de carta na mão, à espera que mãe ou filha lhe decifrassem as letras que elas não sabiam ler. Outras procuravam familiares e vizinhos a quem a vida não obrigara a arredar da escola.

O serviço dos telefones era cumprido em quaisquer circunstâncias. Chovesse ou nevasse, fosse de dia ou de noite, a senhora Angélica lá ia dar o recado, a dizer que fulano telefonara e que voltava a telefonar dali a meia hora. Quando as forças lhe começaram a faltar era aos netos que incumbia de desempenhar a função. O telefone, inventado em boa hora, transformava-se muitas vezes em arrelia. Estou? Estou sim? Está lá? Ó diacho de telefone! E dava à manivela, zumba, zumba, às vezes até se cansar. Verificava a cavilha, mudava-a de posição. Zumba, zumba, zumba e nada. Quantas vezes nada, a não ser um barulho indecifrável sinal de avaria na linha. Deixe estar, tia Ingelca! Rendidas à evidência da ineficácia dos esforços, as pessoas guardavam os anseios de falar com a família até que o telefone voltasse a dar.

A par do soto, a família do Sr. António Rodrigo ainda tinha a fazenda e o gado para tratar. – Carai, que burros éramos! – desabafa o filho Eurico. Olha que íamos a lavrar com a cria e à vinda, para não cansar as vacas, trazíamos nós o jugo às costas! E no Inverno? À entrada do povo, que era tudo lodo, descalçávamos os sapatos para os não sujar, nem à casa. Que brutinhos, carai! Eu não sei se eram brutinhos, mas tenho a certeza que tamanho respeito pelos animais deveria envergonhar muitos ecologistas encartados.

Era o gado que mais lhes dava que fazer. Pai e filho não tinham mãos a medir: encerravam o gado às duas da manhã e às cinco já estavam a pé, prontos para o levarem para o pasto. Mesmo assim não deixavam de cumprir os seus deveres cristãos. O senhor padre Caminha, que sempre gostou de educar pelo exemplo, contava aos netos do tio Trocho que aos domingos, para poder ir à missa, o avô espetava uma vara no chão e embarrava-lhe o casaco em cima. Quando voltava ao sítio do pasto, o gado continuava lá todo, confiante de que aquele pau vestido era o seu pastor. Ajuda nestas lides só a tiveram já o filho Eurico se casara com a formosa Julieta da tia Glória. Esse pastor, bom homem não fora a mania de se esconder de quem lhe levava o almoço, esteve lá em casa durante vinte e três anos.

A quem tanto labuta para sustentar os seus ninguém pode levar a mal que se torne cioso do que granjeou. Não era assim o tio António Trocho a quem a vida, se feria, não azedava. Se lhe roubavam lenha era com um Deixai lá, se roubou é porque precisava… que aplacava a indignação da família. Ninguém que demandasse Rebordaínhos ficava sem abrigo. No seu cabanal chegaram a juntar-se para cima de vinte homens a quem fornecia cobertores com que enganassem o frio das noites. Ó Ingelca, faze lá um pote de caldo a estes homes que não têm que comer! Alguns tornavam-se amigos. Outros iam-se embora e levavam o cobertor.

Deixai lá, é porque precisavam!

O senhor António legou aos herdeiros a gentileza, o bem servir e a amizade. Deles falaremos depois, na rubrica dedicada às actuais actividades económicas da freguesia.

Fátima Stocker

31 comentários:

Raffa disse...

Que bem sabe ler estes artigos que me fazem lembrar a minha querida aldeia. :)

J. Stocker disse...

Caro Rafael Alves

(pendo que és o Rafael, filho da Lurdes')
Muito satisfeito por ver o teu comentário, pois já andava para te dar os parabéns pelas fotografias que colocaste na Net sobre Rebordaínhos, uma boa divulgação da aldeia e também pela iniciativa que tiveste de escrever ao Presidente da CMB sobre o eco ponto, nós também já tinhamos colocado um cartão amarelo aqui no Blog, mas até hoje não tivemos qualquer informação nem da Junta nem da CMB e a ti responderam à carta? Penso que temos que passar ao Cartão encarnado!
Motivo de satisfação também é ver um jovem da tua idade a preocupar-se e a ter raízes com uma aldeia que não é a dele nem a da mãe (penso que ela nasceu em Angola), mas tão somente dos avós, por quem nutro muita estima.
Volta sempre a este cantinho dos amigos de Rebordainhos e traz a tua mãe a comentar também.
Nós por cá vamos acompanhando o teu blog e iremos acrescentar na nossa lista .
Já temos dois jovens a comentar o blog, tu e o Rui Freixedelo, outros sabemos que cá entram mas não comentam com grande pena nossa.

Um grande abraço

J. Stocker disse...

Fátima

As minhas desculpas de não te deixar responderes ao comentário do Rafael em primeiro lugar, foi o entudiasmo.
Quanto ao teu Post está excelente e sabendo eu o trabalho que tens em mãos nesta fase do arranque do ano lectivo mais agradeço a tua colaboração e já agora quando passas a membro do blog?

Anónimo disse...

Viva, Rafa!

Antes de mais, sê muito bem-vindo a esta nossa casa, sublinhando todos os motivos que o João se apressou a apresentar. Quando tiver tempo retribuirei a visita.

Sei bem que gostas da nossa aldeia, que passas lá as férias e te encantas com os teus avós - pessoas por quem nutro grande estima e consideração, assim como pelos teus pais (embora só conheça bem a tua mãe).

Obrigada pelo que disseste.

Beijos

Anónimo disse...

João

Sabes bem que não posso assumir a condição de membro do blog: sentir-me-ia responsável por colaboração permanente e raramente tenho tempo para isso. Assim, vou contribuindo com o que posso e quando posso, sem me sentir obrigada a nada.

Olímpia disse...

Lembro-me muito bem do Sr. António Trocho e da Sr. Angélica, em todas as cenas que tão maravilhosamente descreveste.
Ao ler este texto, regressei a certos instantes da minha infância.Recordei-os com um grande sorriso.
Consegui atravessar o prado, vendo-o exactamente como ele era:amplo, com muitas árvores.Ao meio, o tanque onde, para além de se ir à fonte,se lavava a roupa também. Quando a geada era abundante, atrevíamo -nos a atravessá-lo por cima da água gelada, numa algazarra hilariante.
Para além das memórias que tão bem soubeste descrever,só posso acrescentar que a bondade, empenhamento e simpatia do sr. António Rodrigo, se viu continuada ao longo das gerações.
Assim, pela disponibilidade do Sr.Eurico e Sr. Julieta, pelo sorriso e simpatia das suas filhas Maria Angélica, Fátima e julinha; pela camaradagem e solidariedade dos filhos Toninho, Luís e Bino; pelo carinho de todos os netos:
O meu bem-hajam
Olímpia

António disse...

Parabéns por esta linda e sentida página a ilustrar o nosso digníssimo blog: assim se vai construindo, passo a passo, a crónica de Rebordainhos e das suas gentes, rememorando factos, reavivando valores do mais profundo humanismo, evitando que esses tempos antigos caiam definitivamente no olvido.
Um abraço

jose jorge disse...

Boa tarde. foi com muito gosto que li o texto. Interessante e profundo. As coisa do antigamente devem ser recordadas e vividas. O nosso presente é feito de coisas incriveis que aconteceram no passado.
Um dia publicarei o texto que escrevi ao meu pai no dia do seu funeral...

Anónimo disse...

Olímpia

Obrigada, sobretudo porque disseste muito melhor do que eu as qualidades daquela família.

Anónimo disse...

Tonho

Vindo de ti sabe bem a dobrar, embora seja a tua bondade a falar.

Beijos

Anónimo disse...

JORGE

Que bem me sabe receber-te aqui! Quero que saibas que és muito bem-vindo e que apreciaremos toda a colaboração que queiras e possas dar-nos.

Entretanto, obrigada por teres apreciado o meu escrito.

Quanto ao texto sobre o teu pai, esta página está à tua disposição e se quiseres publicá-lo neste espaço sentir-nos-emos honrados com isso.

Beijos

Anónimo disse...

Fátima,
Mais uma vez um texto maravilhoso na nossa página.
Como nos faz bem recordar os valores que pudemos testemunhar na nossa meninice.
E que falta sentimos hoje dessa generosidade e desse humanismo!Parabéns pela maneira sentida que sabes transmitir e reavivar as nossas memórias com personagens que nos marcaram de uma forma ou de outra.
Um beijinho
Céu

J. Stocker disse...

Sr. Padre

José Jorge

É com muito agrado e satisfação que registamos a sua entrada nesta casa de todos os naturais e amigos de Rebordaínhos.
Qualquer colaboração será muito bem vinda, quer como natural da Freguesia , quer como Homem da Igreja.

Um abraço

RF disse...

Apraz-me ver aqui um texto tão sentido sobre este meu avô que infelizmente não tive oportunidade de conhecer. De ele todos bem falam, ainda bem que assim é. É tanto o orgulho que sinto ao ver o sentimento que por ele das pessoas que o conheceram em vida, e saber que ele é meu bisavô. Não poderia ficar mais contente. Foram tantas as almas que ele ajudou...só demonstra o grande coração que ele tinha. Não podia ficar indiferente a esta mensagem. Que a sua memória nunca se apague, pois eu também penso as boas pessoas se perpetuam com as suas boas acções no tempo.

Rui RODRIGO Freixedelo

J. Stocker disse...

Caro Rui

Fizeste muito bem em colocares a maiúsculas "RODRIGO" e o orgulho de seres seu bisneto é bem merecido

Deixai lá, é porque precisavam!

Se todos nós nos lembrássemos da frase acima do teu bisavô mais vezes, o Mundo seria certamente bem melhor

Um abraço

Anónimo disse...

Céu

Obrigada!

Não sei se é a idade a falar mas dou por mim a dar-te razão e a todos quantos dizem que já não há pessoas como dantes.

Beijos

Anónimo disse...

Olá Rui

Já sentíamos a tua falta por aqui... por bons motivos, sei-o bem. Que tal a primeira impressão da faculdade?

Por seres bisneto (e neto e filho) de quem és é que as tuas palavras me souberam muito bem. Obrigada.

Augusta disse...

Fátima:
Acabadinha de chegar de uma intensa semana de trabalho, foi com grande interesse, alegria e orgulho que saboreei este teu post acerca do tio António Trocho.
A tua descrição é tão excelente, quão excelente era e continua a ser esta família RODRIGO.
De facto, valores como a interajuda parecem estar nos seus genes.
É indescritível a forma como esses valores são rapidamente adquiridos pelos novos membros que a vão integrando.
Assim, são de enaltecer também aqui os genros e noras que foram aumentando em número e também em qualidade esta família que as pessoas de Rebordainhos tanto admiram.
Por tudo o que foi feito pelo tio António e pela tia "Ingélca", e perpetuado no tempo pelos seus filhos, netos e bisnetos, o meu mais reconhecido agradecimento

Augusta disse...

Jorge:
Porque estive presente no funeral do teu pai e pude partilhar convosco as palavras sentidas que lhe dedicaste e, posteriormente, numa simbologia singular depositaste junto ao seu corpo, seria realmente uma honra para este blog vê-las aqui publicadas. Então, por favor, não demores!
Obrigada pela tua disponibilidade constante para com todos nós. Mesmo em tempo de um repouso merecido, estás em permamente disponibilidade para quem de ti necessita.
Bem hajas por seres quem és.
Um beijo de gratidão
Augusta

J. Stocker disse...

Uma foto do Sr. António Rodrigo, ficaria muito bem no Post, se algum dos seus familiares nos fizer o favor de enviar, agradecemos.

Anónimo disse...

padre Jorge tambem espero pelo teu texto,amigo e colega de escola.

Anónimo disse...

Parabéns pela mensagem...

J. Stocker disse...

Respeitamos o querer ficar como anónimo, mas queremos dar-lhe as boas vindas a esta casa de todos nós.

Venha mais vezes

Anónimo disse...

Anónimo

Obrigada pelo que disse da mensagem, embora gostasse mais de saber a quem digo muito abrigada. Da próxima vez não se acanhe!

Filinto Martins disse...

Parabéns, Matriarca!
Li, com gosto o teu "depoimento" sobre o Tio António Trocho... que saudades... quando eu telefonava para Rebordainhos era quase sempre ele que atendia e dizia logo:"olha está ali a tua irmã."
Era um regalo vê-lo jogar à sueca... fazer contas num cartucho de açúcar, tirar a prova dos nove...
A Tia Angélica, sua companheira... "Ó Luís, esse café sou eu que o pago..."
Conterrâneos, não deixem que as nossas "bibliotecas ardam", gravem quanto antes...

Anónimo disse...

Filinto

À conta de me chamar matriarca dei-me o direito de cometer alguns abusos... sabe ao que me refiro.

A sua memória deu mais vida ao retrato. Obrigada.

Beijos

António disse...

Carai! Afinal Rebordainhos é um inçadoiro de poetas e memorialistas! E que bem que tu escreves, pequena, num estilo limpo, despojado, que me faz envergonhar das minhas redundâncias gongóricas. Como o passado surge de repente redondo e inteiro das brumas da nossas memória com estas tuas palavras...
Mais parabéns.

Anónimo disse...

Tonho

Gongórico, tu? Só nos elogios que me dás (mas que sabem bem)!

Beijos

Adriana Gouveia Rodrigo disse...

Bom dia,

fiquei emocioada em ler esse artigo, sou Adriana, neta do Manuel Joaquim Rodrigo (manuel do outeiro), irmão do Antonio Rodrigo ("trocho"). A semelhança física dos dois (manuel e Antonio) é incrível, parecem gêmeos, e o caráter também, todos dizem o quanto meu avô era calmo e bom com todos. Muito bonito o trabalho de vocês de remontar essas memórias. Já tinha ouvido falar do Rui, pois ele falava muito com meu tio Antonio, por telefone, e já o tinha visto por foto. Parabéns pelo seu trabalho Rui.

Adriana Gouveia Rodrigo disse...

Gostaria muito de entrar em contato com vocês e ter acesso a algumas fotos do meu avô, avó, em uma definição boa. meu e-mail é adriana_rodrigo@hotmail.com, whatssapp: 55-11-96797-7015

um abraço a todos e mais um parabéns pelo belo trabalho.

Fátima Pereira Stocker disse...

Boa tarde, Adriana

Vou encaminhar os seus comentários para o Rui - por ser neto do Sr. António Rodrigo, ele é o mais competente de entre nós para lhe responder.

Cumprimentos