À memória de meu Pai, um homem duro mas justo
por
António Augusto Fernandes
(…) Mais informa da intervenção da P.I.D.E. para tentar descobrir os autores do arrancamento de algumas árvores na serra de Nogueira: “Foram descobertos um ou dois e os Serviços entregaram depois novas árvores que a população que as tinha arrancado se encarregou de colocar de novo:”
(Extracto do Processo movido a Aquilino Ribeiro pela publicação de Quando os Lobos Uivam, romance que tem por tema a florestação dos baldios. 07.04.59, [fls. 43 a 44]) [1]
O misto resfolegava esfalfado sobre as duas fitas de aço, lançando baforadas de fumo negro, depois de quatro horas a lutar com os cem quilómetros que subiam da foz do Tua até ali, à cota mais alta da CP, na estação de Rossas. Parou consolado à sombra fresca da meia dúzia de nogueiras a que o chefe da estação dedicava os bastos ócios que o trânsito madraço de quatro composições diárias lhe permitia.
Da segunda classe saltou um adolescente espigadote balouçando a maleta de cartão. De fato preto, gravata preta, boina preta, era o provável seminarista, em tudo conforme com os regulamentos seminarísticos dos anos cinquenta, de regresso para as férias de Verão. Depois de um ano de ausência, desde a estação de Salsas que os seus olhos augados da terra vinham espiando as alturas da serra de Nogueira onde Rebordainhos se fora encarrapitar. E quando o comboio atacou a recta dos Roubões, antes de encostar à plataforma da gare, já o olhar se lhe prendia às alturas do Alto da Cabeça, onde jogara à bola com os da sua igualha, à Eira da Cabecinha onde se avistavam os primeiros medeiros da aldeia e o Armindo barbeiro lhe cortava as melenas. E suspirou de alívio.
Na plataforma da estação deserta, sufocada pela canícula da tarde e pelas poeiras que o suão levantava dos campos ressequidos, procurou com o olhar erradio a comitiva familiar que devia esperá-lo. Nada. Só depois de o comboio arrancar e dobrar a curva que desce para o túnel de Arufe é que reparou no mano mais novo que atravessava a linha. Crestado dos ares bravios da serra, a camisa de popelina listrada pela cruz de santo André das alças que lhe seguravam as pantalonas de cotim já um pouco curtas, avançava indeciso. Estava bem crescido o dianho do moço! Mas estranhou-lhe os modos. Ele sempre zombeteiro, a magicar na próxima partida que lhe iria pregar, parecia constrangido, quase hirto. Sem um gesto, sem desenterrar as mãos dos bolsos, desferiu-lhe à queima-roupa, como quem quer desincumbir-se rapidamente de recado que lhe frige a alma: − O pai esteve na cadeia!
Ora essa! Assim, sem mais! A notícia deu-lhe um baque na alma sensível de seminarista. Em boa verdade, com o feitio arrebatadiço que se lhe conhecia, não seria muito de estranhar que tivesse quebrado as trombas a algum bebedolas menos conforme com as etiquetas do soto onde governava a vida, ou pregado um par de lostras nalgum moinante que lhe moesse o juízo. Mas tais percalços não eram de estranhar e estavam em conformidade com os brandos costumes da serra. Não era decerto por tal ninharia que ia um cristão malhar com os ossos na cadeia! Ainda por cima o Jaime polícia! Lá rebentio de génio era ele, mas enfim, nunca seria caso para prisão!...
E, enquanto demandavam a aldeia pelo carreirão de Arufe ia rememorando aqueles escassos cinco anos de vida na aldeia, quando o pai, indisposto com os nepotismos da polícia onde as promoções eram regidas por empenhos e conivências, voltara à aldeia natal trazendo consigo revivida aquela fome antiquíssima de terra, uma fome herdada dos antepassados, funda como as raízes fundas que nela tinham lançado. Atirara-se com afã a desfazer os bocados que andavam a monte na Corredoura, na Ladeira, no Pórto, onde quer que pudesse colher mais dois alqueires de centeio.
O Pai tinha os seus repentes, bem entendido, mas no fundo era um sentimental capaz de verter a sua lagrimazita às escondidas e, sobretudo, era um homem com profundo sentido de justiça. Nesses anos magros a seguir à guerra, fora dele a iniciativa de aumentar para doze mil e quinhentos réis a jorna aos cavadores, recordado ainda dos tempos que ele próprio levara agarrado ao cabo do enxadão. E, por essa memória, a pobreza dos mais pobres merecia-lhe um grande respeito e a fome de quem trabalha o dos outros via-a como a mais negra das injustiças num mundo mal feito. Exigia trabalho que se visse e escolhia os trabalhadores mais valentes, mas tratava-os com a consideração devida a quem trabalha. Seria ríspido e não se ensaiava para dar um recado. Mas era generoso se um pobre lhe batia à porta com fome e ironizava os seus confrades nas Conferências de S. Vicente de Paula quando na saqueta das esmolas abundavam as moedas de cobre: não é assim que os pobres tiram a barriga de misérias…
Era também a ele que a ciganada recorria quando faziam questão em baptizar algum filho. − Ó homem, não seja por causa disso que o lacru fica mouro! E à conta disso se viu padrinho de para cima de meia dúzia de ciganitos. Tinha um sentido de humor um tanto sardónico e mais que um lhe ficou a dever a alcunha. Amigo dos seus amigos, era correntio e folgazão nos jogos de ar livre aos domingos, quando ameaçava os adversários do chincalhão de os levar em pó e vento, e homem de força quando era preciso dominar pelos cornos um bezerro bravo recalcitrante ao jugo.
A vida não lhe fora nada meiga. Criado com muita estreiteza pela tia Antonha Pastora já viúva, naquele casinhoto negro do Covelo, não se envergonhava de confessar que muitas fominhas rapara e só aos vinte anos, quando assentara praça, deixara os socos de amieiro para estrear os primeiros sapatos. Enfim, o pouco que subira na vida subira-o a pulso e honradamente.
E o seminarista estimava-o e admirava-o por tudo isso. E ainda pela recordação supremamente grata de lhe ver a compenetração com que aos domingos acendia a vela do altar de Santa Maria Madalena, ajoelhando sempre diante do altar da grande pecadora arrependida, padroeira da freguesia, cuja imagem mandara restaurar a expensas suas num santeiro de Braga.
Por tudo isso lhe custava encaixar essa história da prisão do pai. E, de repente, passou-lhe pela mente o grande desarranjo: podia lá chegar a padre, sendo filho de pai preso!? Ele bem estranhara que, durante uns tempos, as cartas chegadas ao seminário não mostrassem aquele belo cursivo de quem redigiu muitos autos de zaragatas nas feiras do 12 e dos 21, em Bragança, de quem apontou muito calote no rol dos fiados, mas sim a caligrafia titubeante da mãe, com menos arte para relatar coisas e loisas da aldeia. Lá tentara explicar para consigo o desacerto na correspondência com o aperto dos afazeres da lavoura somados às preocupações dos calotes abusivos que a magreza do viver aldeão multiplicava como tortulhos no Outono. Não, que a vida na serra andava cada vez mais cainha e muito complicada para todos: os filho nasciam bastos como os cabeçudos na charca do Espinheiro, os rendimentos da lavoura eram mais que escassos, ainda que andassem de sementio até a pedriça do Alto do Sirgo e os pedregulhais das Curreliças que mal davam sustento ao tojo rastiço, quanto mais às paveias de centeio. Ainda por cima, para ajudar o pai que é pobre, coelhos e perdizes iam retraçando o pouco que a terra dava.
E só à hora do caldo veio a saber que a história era bem outra!
As coisas tinham começado alguns meses antes. Uns engenheiros, armados de fitas métricas e teodolitos, dados a muitas inquirições sobre matrizes e estremas, iam cravando bandarilhas de mau agouro pelo longo dorso que vai da Malhada Velha aos cumes da serra, às Três Marras, ponto de encontro dos concelhos de Bragança, Vinhais e Macedo de Cavaleiros.
Os aldeanos olhavam toda essa estranha movimentação de soslaio. A coisa cheirava-lhes a esturro, porque era certo e sabido que o governo só se lembrava deles para os cardar. Ora, mandar que suas excelências, os senhores engenheiros, viessem sujar as botas de calfe nas poeiras da serra não havia de ser no interesse dos lapoiços que a escarduçavam por mor de mais umas pousadas de pão. Quanto a inquirições, eles bem se fechavam em copas: − sei lá de quem são as terras, onde ficam as estremas! Não sabiam eles outra coisa! Estas invasões dos baldios não vinham nos jornais e disso não falava a Emissora Nacional, não, que andava tudo bem açaimado pelo senhor Governo! Mas, pelo que corria à boca pequena por feiras e romarias, futuravam eles que o acontecido lá para baixo, para as Beiras, mais tarde ou mais cedo lhes iria bater à porta. O que eles sabiam muito bem era que aqueles pedaços de terra por cima da Malhada Velha até à cota dos mil e duzentos metros, do Vale dos Azebros ao Cabeço do Pau e ao Lombo das Terças, quando calhava de o Inverno trazer dois ou três nevões que matassem a bicheza, adubassem as terras delgadas e fizessem borbulhar as nascentes, as espigas faziam dobrar as hastes do centeio, de gradas, porque lá reza o ditado: ano de neve, paga o pobre o que deve, ou o outro que diz o mesmo por outras palavras: ano de pão, sete neves e um nevão. E era também dali que saía a melhor batata certificada: nas covas mais lentas e de húmus mais gordo medravam os batatais com direito a que se lhe especasse uma tabuleta com algarismos pintados a zarcão, conferindo-lhes o direito a ser vendida como batata de semente certificada, o que dobrava o preço.
Ali, naquelas alturas lançando a vista para o horizonte, sobre o vale de Macedo de Cavaleiros, em frente, ou, sobre a esquerda, ao planalto de Miranda, enfarinhado no azul da distância, atrás de um coelho ou agarrado à rabiça do arado, um homem sentia-se de alma lavada e como se fosse dono do mundo. Era um espaço de liberdade, dessa liberdade tão cara ao serrano. Naqueles descampados, ceifados os pães, os gados pasciam livremente as espigas perdidas pelos segadores ou a relva tenra que brotava com as primeiras águas do Outono. As giestas e urzes que despontavam pelo pedregulhal eram de quem as quisesse arrancar para com elas fazer carvão, esquentar o forno ou atiçar o lume nas manhãs de codo. Aquela corda de outeiros, isentos de senhorio, eram de todos, mas eram sobretudo dos mais pobre que não tinham de seu leira de jeito ou touça para acender a lareira no Inverno. Eram terrenos baldios? Pois que fossem, mas era deles o proveito! Já assim era no tempo dos avós e dos avós dos avós, e nunca ninguém se incomodara com isso! Esses baldios eram bem o símbolo da sua liberdade e independência, já que não podiam ser coutados nem sisados pelo poder central. E se há coisa odiosa para o serrano é que lhe toquem na terra que sente como sua, ou que alguém venha de fora pôr-lhe o cangote debaixo do jugo. Por mor de um migalho de terra quantos não se tinham já perdido!
É bem verdade que aquilo ficava longe que nem seiscentos diabos, lá para cima, a dois passos da capelinha da Senhora da Serra no picoto mais alto da Nogueira, onde no tempo dos mouros (ou seria de Carlos Magno e dos Doze Pares de França?), Nossa Senhora aparecera a uma pastorinha muda, de tamancos, que Nossa Senhora não tem engulho dos pobres, e depois marcara com neve, no dia mais quente de Agosto, o sítio e modos como queria que lhe fizessem uma capelinha. Era a Nossa Senhora deles, que os de Rebordãos bem quiseram mudar a capela para onde a avistassem da aldeia, mas obra feita de dia esborralhava-se milagrosamente durante a noite. E ao fim de muito caturrarem, a capelinha bem que teve de ser feita onde Nossa Senhora a queria, que era a olhar para Rebordainhos, que Ela, pelos modos, preferia aos de Rebordãos.
Pois é, um homem demorava uma manhã inteira para ir regar quatro sucos de batatas e, no tempo das acarrejas, tinha que jungir os bois ainda com escuro, se queria o carreto pronto antes de ir comer as batatas do almoço. Mas deixá-lo! Era deles, e… o tempo dá-o Deus de graça!
Até o tio Zé Çuca, monárquico convicto, que era fino, lia A Voz e desempenhava, como por descendência dinástica, o cargo de Presidente da Junta desde que lhe morrera o pai, o ti António Caminha, embora apoiasse a Situação e admirasse Salazar, desta vez achou que a Situação exorbitava, borrifou-se para o Salazar e acrescentou a sua indignação à dos demais.
Os Serviços Florestais começaram por construir uma casita toda liró, bem melhor que as da aldeia: reluzindo de branca, enconchadinha numa ruga da serra, com uma nascentinha de água leve e fria à ilharga, voltada a sul donde no Inverno espreita o sol criador e com vistas desafogadas para meio mundo, mais feita para poeta contemplativo que para Guarda-florestal.
E logo nos começos do Inverno as máquinas invadiram os corutos da serra e vá de arrotear o maninho, de afundir nos covachos milhares de pinheiritos tenros, de abetos, de bétulas… Se ainda aldemenos os Serviços se lembrassem de plantar carvalhos e castanheiros que era o que a serra reconhecia como seu desde que o mundo é mundo! Mas não… vinham lá com essas esquisitices da Terra Quente… − Rais os partissem a todos mais à pata que os pôs!
Máquinas e engenheiros já tinham partido e o sossego parecia ter regressado à serra. Aos domingos, no adro, depois da missa, não se falava de outra coisa e, enquanto as mulheres corriam a esverçar o caldo de couves, os homens davam uma saltada até à Cruzinha, levantando os olhos para aquela lombada da serra, na esperança de que a sarna tinha secado. É o tinhas! Ao longo de toda a cumeeira, os pinheiritos tinham pegado com arreganho e a rabugem verde-escura começava a pintar os terrenos onde dantes crescia o centeio e a batata. E, intrigados, quedavam-se em conjecturas: e agora?... e de quem é aquilo? e que torna e que deixa... A coisa começava a cheirar a esturro.
Até que um domingo, depois do almoço, os sinos se puseram num bimbalhar doido de toque a rebate. Acudiam as gentes a indagar onde era o fogo. Sobre o muro do adro onde no Inverno se arrematavam os chispes e orelheiras prometidas ao S. Sebastião, alguém ia despachando quem chegava: que desandassem em busca de enxada, de sachola, de picareta e ala para a Malhada Velha que a serra havia de ficar como era dantes.
A gemte começou de sse juntar e era tanta que era estranha cousa de se veer − diria o Cronista se ao sucedido assistira.
Munindo-se cada qual de ferramenta mais azada para o efeito e muitos também de uma pinga, que nestas alturas dá sempre jeito, esquentando-se mutuamente os ânimos com vozes façanhudas e esporádicos gorgolejos nas botelhas galegas de pele de cabra, quando passaram a Ribeira, na subida para os Vales, já se evocavam os grandes feitos guerreiros com que na escola se enfeitava a história pátria: espanhóis e Aljubarrota, mouros e Afonso Henriques, Índia e Vasco da Gama, tudo abundava no exemplo de como as coisas têm que ser feitas quando vêm mexer com quem está quedo. E era deveras inflamado o espírito belicoso das hostes. Tomaram o caminho dos Vales que, apesar de mais empinado, os punha lá riba em três tempos. Um nevoeiro cerrado abatera-se sobre a serra como manta cúmplice que os acobertasse de olhos coscuvilheiros, que estas coisas querem-se feitas a recato, como negócio entre homem e mulher. Enquanto o diabo esfrega um olho, imolaram a maior parte das hastezinhas tenras que lhes tinham invadido as terras de pão e alguns dos feros arrancadores trouxeram-nas à laia de troféus justamente arrebatados a inimigo vencido em valorosa peleja.
Viveram-se tempos de incerteza. Será que o Governo os tinha esquecido outra vez e tudo voltava ao que era dantes? Agora esquecera! Os polainudos da GNR começaram a rondar a aldeia, entravam nas tabernas com falinhas mansas, ofereciam o seu copo: quem tinha tocado o sino a rebate?... quem tinha acicatado os fregueses na arranca dos pinheiros?... quem tinha cometido o desacato contra o Estado?... Ninguém fora, ninguém ouvira nada, ninguém sabia de nada. Desistiram, encalhados na pertinácia serrana.
As inquirições pareciam ter dado em águas de bacalhau e os ânimos iam serenando. Sempre valera a pena o finca-pé!...
Até que um dia apareceu um jipe do Estado com uns sujeitos de ar sinistro. Nem parou. Atravessou a aldeia e pelos caminhos dos carros de bois subiu até aos Vales, como quem sabe ao que vem. Sem dizer água-vai os sujeitos de má catadura catrafilaram o Raul e enfiaram-no no jipe, que regressou à aldeia e estacou no Largo do Prado em frente da Taberna de Baixo. Com o mesmo despacho deram voz de prisão ao Jaime que nesse momento tinha vindo à porta do soto inquirir da novidade. Era o que eles receavam: a PIDE, não podendo prender uma povoação inteira, deitava os gatázios a quem muito bem entendia para escarmento dos demais: ao Jaime porque, sendo dono da taberna, pelas conversas que se soltam entre os fregueses depois de uns quantos quartilhos empinados, devia ter ouvido pela certa alguma coisa mais sobre o assunto da Floresta. Ademais, sendo polícia, embora de licença sem vencimento, tinha obrigação de informar os seus superiores de todos os movimentos sediciosos da população. Ao Raul, porque, morando no ermo dos Vales, a dois passos da zona florestada, tinha de saber pela certa quem lhe passara à porta para ir vindimar os pinheirinhos. Esta lógica caseira não convencia ninguém e serviu apenas para camuflar canhestramente os autores da feia delação. Veio-se a saber mais tarde que os dois sacrificados nas aras da sanha policiesca tinham sido denunciados por motivos bem pouco políticos e ainda menos patrióticos: o Jaime pelo guarda-florestal recentemente nomeado, fraca rês vinda da Terra Quente, a quem recusara alongar o rol dos fiados. O Raul por um vizinho da Quinta dos Vales que com ele mantinha pendências de estremas mal definidas ou marcos manhosos que se movimentavam a coberto da noite. E lá os levaram para a cadeia da Rua do Heroísmo, no Porto.
Viveram-se dias negros, pois que todos, quem mais, quem menos, se sentiam na pele dos dois caçados pela polícia política e em todos doía a consciência colectiva dessa aleivosia. A tia Lídia viera ocupar o lugar do marido na Taberna de Baixo chorosa e aflita. Lá de baixo a correspondência dos dois reclusos ia contando que não eram maltratados e a comida era razoável. Não fora o desarranjo trazido aos negócios de cada um pela ausência forçada, animavam eles, desdramatizando a situação, quase se podiam dizer umas férias à conta do Estado. O que deveras lhes doía na alma eram as grades da prisão. O serrano, preso nem com uma linha se quer ver! Periodicamente eram abordados blandiciosamente pela polícia: − que nada tinham contra eles… que bastava dizerem quem fora o da ideia, que a eles nada acontecia. O Raul entrincheirava-se na sua escusa: que mal saía daquele fim do mundo que eram os Vales, o que é que ele podia saber? Em tal dia até andava a lavrar lá p´rós lados de Lanção!... O Jaime insistia no seu álibi: nesse dia tinha ele ido ao vinho lá para a Terra Quente. Até tinha factura passada e tudo…
Ninguém se descosia, nada feito.
Pela aldeia, os dias passavam macambúzios, pela indecisão do caminho a tomar, até que o Pe Amílcar achou por bem descer à cidade a encontrar-se com o Pe Caminha, cunhado do Jaime, que, enquanto Director da Escola Profissional de Santa Clara, tinha entrada franca no Ministério do Interior. Passaram-se semanas caturrando dum lado e doutro, mexeram-se todos os pauzinhos e num domingo depois da missa, o Pe Amílcar, ainda antes de se desparamentar, dava notícias aos paroquianos:
− Tudo na mesma. O senhor Jaime e o senhor Raul não dizem nada e a polícia só os deixa vir embora se o povo plantar de novo as árvores arrancadas.
Cá fora, no adro, discutiu-se rijamente. Por um lado, aquilo cheirava-lhes a forte humilhação, como se o povo não tivesse razão em defender o que era seu. Por outro lado, que mais culpados eram aqueles dois que os outros, para irem malhar com os ossos na cadeia!?... Depois de muito parlamentar, a muito custo optaram pela humilhação.
De novo subiram aos altos da Malhada Velha, mas agora com a amargura de quem sobe ao calvário. Cheios de má vontade lá foram replantando quanto tinham arrancado. E tudo pegou gorando, para seu espanto, a confiança que depositavam nas leis da botânica: bicheza brava aqueles pinheiros! pegavam, mesmo com um nó na raiz!
Em resumo:
Para regar a hortinha da Vale-da-Frunha-d’Além ainda por lá andava, nesse Verão, um sachito com que o mano participara na odisseia da floresta, crismando-o de arranca-pinheiros.
Para sossego de consciência do seminarista, não houvera morte de homem, a sedição acabara em bem, com o acatamento da autoridade e a floresta medrava lá em cima à lei da natureza…
Finalmente, rezam as crónicas, não foi por causa de pai preso que ele não veio engrossar as fileiras dos ministros do Senhor.
Hoje a floresta faz cinquenta anos, está frondosa e até que alindou o dorso nu da serra. Para consolo dos ecologistas encartados constitui notável contributo para a preservação do lobo ibérico que lá vai abocanhando ao desfastio alguma canhona distraída que lhes passe a jeito. E também do javali que cata meticulosamente as castanhas tombadas do ouriço e cabouca os batatais que lhe ficam à mão.
Mas permanece como a pegada de um governo que exerceu o seu poder autocraticamente e ao arrepio dos direitos comunais − memória de chaga mal sarada na alma da comunidade.
Os poucos velhos que se recusam a abandonar a aldeia e os jovens agricultores, que o Governo louva mas não ajuda, persistem em agricultar essa terra que sobrou da floresta, sabendo que trabalham para sustentação do lobo ibérico, que está de saúde se recomenda, e do javali, que os figuros da cidade adoram ostentar como troféu das suas caçadas. E, se não vier alguma trovoada à moda antiga, ainda sobra qualquer coisita para o pobre do lavrador que, não sendo espécie protegida, está em risco de extinção.
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[1] in Em Defesa de Aquilino Ribeiro, organização de Alfredo Caldeira e Diana Andringa, Edições Terramar, Lisboa 1994.
O processo em questão fora movido ao autor pela publicação do seu romance Quando os Lobos Uivam, que tem por tema a florestação dos baldios na Serra da Nave, saído em finais de 1958.
N.Ed. As fotografias que ilustram a narrativa são da autoria de António Fernandes
17 comentários:
Tonho
Cada um com a sua sina: a ti cumpre-te escrever assim tão bem; a mim cumpre-me ser redundante nos elogios.
A tirania conhece bem os pontos fracos daqueles que oprime e serve-se deles em proveito próprio. neste caso, a honradez e o sentido de lealdade dos serranos. A cedência à chantagem enobrece o povo de Rebordaínhos e avilta quem dela se serviu - denunciantes incluídos. O tio Jaime, teu pai, merece bem a crónica que lhe dediscaste, inspirada no cromatismo de que Fernão Lopes é mestre.
Só discordo de ti num ponto: aqueles pinheirais desfeiam a nossa Serra e, não tarda nada, avançarão sobre as matas de carvalhos, destruindo aquele coberto ímpar, esse sim, riquíssimo em biodiversidade.
Beijos
Caro António
Mais um registo de Rebordainhos, numa escrita cativante a que nos tens habituado.
Obrigado
A tentacao de nao "scroll down" para ver a conclusao desta narrativa era constante, mas a beleza de tal prosa forcou-me (com uma cedilha no "c") a saborear o texto lentamente.
Exemplos de accoes (cedilha no segundo "c" e ondinha no "o") despotas do nosso governo fascista em que o resultado e positivo serao muito raros, infelizmente.
Espero que seja possivel a co-existencia do pinheiro e do carvalho, e que o lobo iberico e o javali tenham finalmente abrigo e sossego -- pelo menos enquanto o lobo nao decidir ir a procurar o jantar...
Kudos a solariedade (?) da gente da aldeia (pelo menos de quase toda), e em especial a bravura do "Tio Jaime". Kudos tambem ao autor de mais um capitulo belissimo dos "Ares da Serra." Padre ou nao, pulpito ou nao, recebeu mesmo assim o dom da palavra. O seu pai iria com certeza ter muito orgulho.
Eu bem que gostaria de dizer algo, mas depois de uns 30 minutos lendo e segurando, como a Lina Warren, a vontade de ir para as últimas linhas da narrativa, consegui chegar lá pela vias normais e tomar conhecimento de mais uma parte da grandiosa história do povo da minha terra.
Agradeço de coração aos autores da narrativa e do blog, que me proporcionam momentos ímpares de cultura.
obrigado
Grande Primo
Acho que é uma das melhores homenagens que podes fazer ao teu pai... que me faz sempre lembrar a calma da tia Lídia.
Sabes, eu já nem comento os teus escritos, ficam para os meus netos se um dia os tiver, serem capazes de saborear o pão duro dos habitantes de Rebordainhos.
Apenas um reparo: Tonho, ali também se semeava batata, que era depois a famosa batata de semente.
Eu estive lá,tinha dez anos, não a derrubar os pinheiros, mas a metê-los nas covas que os homens fortes de Rebordainhos não se negaram a plantar, quando dois dos seus habitantes estavam nos calaboiços da Pide, no Porto, onde por sinal, passo todos os dias e me lembro do teu pai e do "Araul", como dizim os nossos.Quando algum esperto fala naquele lugar eu logo digo:"estiveram injustamente dois meus conterrâneos".
O Eurico do tio Trocho é testemunha, que nos dizia:"mete-os na pedra". Eles davam-lhe com a sachola e cortavam as raizes. Pegaram todos.
De quem são estas árvores agora?
O tio Çuca escondia-se nos medeiros com medo da pide... o tio Frade ia para os montes e só regressava à noite, era o regedor de então... o tio Leque, da sua janela ia dizendo: "vamos para a enxertia".
A primeira vez que fui para aqueles lugares era ainda pequeno, fui com o meu pai e o Frederico, nosso criado, a semear batatas, pois não quis ficar em casa da tia Ana Costa.
Obrigado, Tonho, pelo teu texto.
Foi há cinquenta anos.
Estes homens da nossa terra, merecem ser recordados como autênticos soldados da paz.
Leio estes posts com uma paixão e um prazer indescritíveis.Tomo-lhes o sabor devagarinho não vão eles acabar depressa. É grande este mas lê-se de um trago. Que bela narrativa!Repito-me, eu sei, mas estes Rebordainhenses são gente de boa cepa.Gente forte, corajosa, solidária que prefere quebrar a torcer. São/eram também assim os meus conterrâneos e familiares dos quais destaco o meu avô materno e o meu pai. Não havia fardado da G.N.R. ou sinistro senhor de fato e sobretudo que lhes arrancasse palavra. Eles passavam pela taberna, pagavam uma rodada, ficavam à conversa mas o que levavam era pouco.
Bem-hajam, amigos!Estes momentos são deliciosos!
Lina
Kudos também para ti que estás sempre atenta e, de mansinho, vais acrescentando o vocabulário aqui da malta!
Beijos
Filinto
Obrigada pela informação que acrescentou, tão saborosa, tão de acordo com aquilo que conhecemos das pessoas que citou!
Beijos
Baptista
Eu não sou membro do blog, mas mesmo assim quero agradecer-te as tuas palavras sempre tão gentis.
Beijos
Sophiamar
Nós é que temos qe agradecer o seu carinho e estímulo. E a minha amiga tem razão: de Trás-os-Montes ou do Algarve, os serranos são feitos da mesma cepa.
Um abraço
Caro
César Baptista
Os membros do Blog agradecem as suas palavras amigas.
António:
Bem-hajas por tão maravilhosos textos.
Ao homenageares o teu pai,lembraste os mais esquecidos da grandeza da palavra SOLIDARIEDADE.
Beijos
Olímpia
Venho deixar-vos um abraço e desejar-vos um bom Domingo!
Bem-hajam, amigos!
Tonho:
FAN TÁS TI CO!!
Podia ficar por aqui. Mas apetece-me acrescentar aquele ditado popular "Antes quebrar que torcer", que me parece ilustrar bem esta nossa gente.
Que linda homenagem fazes ao teu pai e, em simultâneo, a todas as pessoas daquela geração! Ainda bem que te temos a ti que nos dás a conhecer a valentia das nossas gentes.
Do teu pai guardo boas lembranças, principalmente quando já não possuia a capacidade de visão e eu lhe dirigia a palavra, ele pedia: "fale mais um bocadinho.", e depois de mais uma ou duas palavras, de imediato dizia: "Ah! É a srª D. Maria Augusta"!
Grata por compartilhares connosco estas memórias.
Um beijo
PS: e olha que estais bem pimpões na fotografia!
Primo,
Na sexta-feira, ao fim da tarde, abri a página.
Tive um baque ao ver a foto do TIO. Aquela postura firme que era só dele!.
Emocionei-me, não consegui ler. Imprimi, levei para casa, li, reli e revivi tudo o que descreves.
A homenagem que aqui deixas é mais que merecida e justa. O teu Pai, era um HOMEM amigo,sensível, compreensivo, justo, bom conselheiro, prespicaz,brincalhão e quando se diz que era duro, é porque para ele tudo tinha que estar no seu lugar. Quem disser o contrário, é porque nunca teve o privilégio de o conhecer.
Tinha eu apenas sete anos e ficaram bem marcadas na minha memória, as lágrimas da Tia, a corrida ao soto do tio António Trocho para atender as chamadas do tio Padre Caminha e do alívio que ela sentia quando do lado de lá da linha lhe dizia que sairiam em breve.
Quando chegou esse dia, o Povo acorreu em massa até ao fundo da cortinha dos professores para os receber. Pegou em mim e atirou-me ao ar como que a brincar e fomos aldeia acima. Já em casa, esperáva-nos um grande fogueira, pois enchera-se de familiares e amigos. Para a janta, e éramos muitos, a Tia ou a Amélia, tinham preparada uma daquelas iguarias que só a Tia sabia fazer.
Sobre a texto, já tudo foi dito, eu, com os meus fracos conhecimentos literários, pouco poderia acrescentar.
Pela homenagem ao Querido TIO que me ensinou a viver e sempre me deu conselhos, conversando comigo como meu amigo que sempre foi até ao fim da sua vida, o meu obrigada, primo.
Céu
Caros amigos todos: Fátima, João, Lina, Baptista, Sophiamar, Olímpia, Augusta.
Li e reli os vossos comentários e senti que se vai cimentando entre nós uma cumplicidade com raízes muito fundas no terrunho que nos pariu e nos pôs coisas e gentes diante dos olhos deslumbrados de quem é criança.
Obrigado pela vossa solidariedade neste momento de catarse e de cicatrizar a ferida do desaparecimento de meu Pai, vai fazer um ano. Devia-lhe este acto de justiça, de um rememorar entre a história e a ficção
Obrigado pela vossa presença amiga.
Primos muito amigos, Céu e Filinto:
Os outros amigos não levam a nal esta referência especial, não só por sermos primos, mas sobretudo por vocês, de algum modo, terem participado na História (embora não na história como eu a contei, eu que a contei e não estava lá). Obrigado por esses pormenores que eu ignorava.Pena que não os tenha sabido antes, embora corresse o risco de alongar demasiado o texto. Talvez um dia destes venha a reescrevê-la para lá meter essas façanhas do rio Zé Çuca e do tio Frade, mais a recepção que os prisioneiros libertados tiveram do povo n'À-Chave.
Beijos e abraços
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