sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

DIA DE CONCELHO

por

António Augusto Fernandes


Naquele tempo, mais ou menos por esta altura do ano, quando o Inverno ia já de abalada e as carvalhas enxugavam as últimas lágrimas da invernia, quando pelas touças começava de se ouvir a flauta alvissareira do cuco e os passarinhos esvoaçavam atrás das passarinhas, era chegado o tempo do primeiro concelho.

Essa palavra que, no antigamente, andava prenhe de sentido, ia buscar o seu significado às raízes mais profundas do étimo concilium – reunião da assembleia do povo, e tinha a ver com antiquíssimos costumes comunitários dos povoados perdidos nos picotos das serranias de Trás-os-Montes, esquecidos de El-rei e deslembrados da senhora República, que forçosamente iam buscar ao seu sentir comunitário a maneira de sobreviverem.

O primeiro concelho do ano tinha lugar por esta altura, nos começos da Primavera. O Presidente da Junta comunicava a decisão ao Sr. Padre e este, por sua vez, no fim da celebração dominical, anunciava ao povo: “no domingo que vem, há concelho”. Nesse domingo a missa tinha lugar mais cedo, logo ao raiar da alva e o Sr. Padre declarava toda a gente dispensada do preceito que proibia “trabalhos servis nos domingos e festas de guarda”. Depois do mata-bicho, o sino grande lançava do alto do campanário um pregão alegre, quase festivo, o toque a concelho e os vizinhos iam-se agrupando, conversadores, cada qual artilhado com a ferramenta que lhe aprouvesse ou mais necessária alvitrasse para as tarefas do dia, e dirigiam-se para uma das quatro entradas da povoação. O objectivo deste primeiro concelho era reparar os caminhos comunais que davam serventia às terras de amanho e que as enxurradas grossas da invernia tinham escaboucado.

As leis comunitárias estatuíam que cada agregado familiar enviasse o seu representante. As famílias onde não houvesse varão válido faziam-se representar no concelho por uma mulher ou mocito já espigadote. Quem, por algum motivo, se via impedido de participar pagava jeira a quem o substituísse ou obsequiava o concelho com um garrafão de vinho, o que, naqueles tempos escassos em pecúnia e abundantes em mão-de-obra, equivalia aproximadamente ao valor de uma jeira. Mas, por tradição, apenas as duas pessoas gradas da aldeia – o padre e o professor – se esquivavam a acamaradar nessa obrigação, substituindo-a pela coima. Mesmo o Sr. Lopes Direito, colheiteiro grado, de lameiros gordos e vastos soutos, ausente na capital, se fazia representar pelo seu administrador, o Sr. Carlos Ribom, que lá se integrava na malta trabalhadora com umas ganas muito democráticas: mãos macias e sachito ocioso, mais de enfeitar que outra coisa, ia parolando com o pessoal e distribuindo dos definitivos pequenos a quem como ele não prescindia do paivante nos queixos. O que não era despiciendo, pois que, tanto ou mais que o trabalho, era de valia o espírito convivial implícito na tarefa, verdadeiro ritual de consolidação da comunidade aldeã em que se reforçavam os velhos laços de vizinhança e entreajuda. Até aqueles poucos que, tendo vindo de fora, por lá assentavam arraiais passavam a usufruir do estatuto de vizinhos a partir da sua participação nesse ritual de iniciação.

Um cavava, outro carreava pedra, este empurrava um carrinho de mão, aquele deslocava um penedo com o ferro de desmonte e assim, sob a orientação dos anciãos do povo, se remendavam os caminhos, atulhando os fundões que a água abrira e as rodeiras que as rodas maciças dos carros de bois tinham afundado em demasia. E, entre risos e conversas, rememoravam-se velhos casos que já faziam parte da crónica colectiva da aldeia, rediziam-se ditos velhos que, sancionados pelo carimbo do como diz o outro, entravam na cultura da comunidade a caminho de se tornarem proverbiais. À hora do almoço, bebia-se da mesma cabaça, trocava-se de pitança com o comensal mais próximo, e, acedendo sem mais formalidades ao convite do és servido?, provava-se o presunto do vizinho e gabava-se o refogado da comadre. Ria-se das mesmas velhas chalaças do outro ano, os rapazotes mais espirituosos lançavam a sua pilhéria às moçoilas que tinham vindo trazer o almoço a algum familiar… E, neste conviver amigo, a rudeza bravia dos serranos amaciava, embebida de uma poalha de fraternidade.

Estes concelhos podiam realizar-se ainda por outros motivos de interesse geral ou de apoio comunitário, como a necessidade de acudir ao descalabro da igreja ou da escola, de reconstruir o palheiro ardido do vizinho. Mas de marcação fixa eram dois: este, o do arranjo dos caminhos e, logo adiante, no começo do Verão, o do conserto das poças comunais de rega.
Na serra, as águas brotam finas e frias, saudáveis e gratas ao palato, mas são escassas as nascentes, esparsas e flébeis em seu lacrimejar. Há, por isso, que aproveitá-las com parcimónia para dessedentar hortejos e batatais quando a estiagem caustica as lombadas da serra. E, como essas águas são de todos, gratuitamente dadas por Deus a quem delas precisar, todos aqueles que delas beneficiavam eram chamados a concelho para limpar as poças dos juncos que lá medravam, retirar as lamas arrastadas pelas enxurradas e calafetar as galerias abertas pelos leirões. Quem não comparecesse alienava, para esse ano, os seus direitos de rega que constavam em rol de que tomava conta o tio Zé Çuca, presidente da Junta de Freguesia.

E era das coisas bonitas de ouvir, no silêncio das tardes abafadiças de Agosto, quando a calma declinava, o tagarelar das águas, gorgulhando pelas agueiras, bulhando com os seixinhos, na pressa tranparente de matar a sede do batatal ou do talhão de feijões.

Hoje, a aldeia já não é a mesma e já não se toca a concelho. Hoje, felizmente, já quase desapareceram os tugúrios de granito e barro, colmatados de telha vã, para darem lugar a casas inspiradas em moldes recolhidos por franças e araganças. Felizmente as máquinas realizam as tarefas mais gravosas que então se faziam a pá e picareta e derreavam os quadris a um cristão. Felizmente!

Mas hoje, infelizmente, está a pique de se perder o sentido comunitário da existência implícito nessas tarefas de entreajuda. E cada dia que passa, corremos o risco de cada indivíduo se ir sentindo mais pobre, mais enconchado nas suas miúdas preocupações individuais.

Dá Deus as nozes a quem não tem dentes: hoje, que Rebordainhos vive decentemente, que tem luz, que tem água canalizada e ruas calcetadas, que vai à cidade quando muito bem entende… hoje Rebordainhos está velho, quase sem crianças, à beira se transformar numa aldeia de casas novas habitadas por ausências.

É por isso que daqui vai um obrigado enorme para todos aqueles que teimam em não deixar que a nossa aldeia morra. Bem-hajam!

9 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Que bem me fez, ler sobre os nossos concelhos, nas tuas palavras com sabor a berço! Os concelhos são daquelas memórias vívidas que mostram como, em muitos aspectos, o comunitarismo é muitíssimo superior à democracia.

Perderam-se, de facto, e o povo perdeu com isso, mau grado os poucos que ainda por lá resistem.

A última vez que ouvi tocar a concelho foi há mais de seis anos - já não para arranjar canadas e outros caminhos, tão-só, as ruas da aldeia, uma ou duas semanas antes da festa. No nosso bairro e, suponho, também nos outros, toda a gente participou, apesar de algumas vozes recalcitrantes. Tenho pena de já não ouvir o sino para tal propósito porque, com todo o gosto, continuaria a participar.

Um grande beijo e bem-hajas por mais este contributo tão valioso.

Mare Liberum disse...

Leio os textos do António com o mesmo gosto com que leio e releio alguns transmontanos e beirões que fizeram e continuam a fazer as delícias dos meus momentos de lazer. A eloquência dos seus textos cativa-me, Tonho ( desculpe-me)e fico a degustar as imagens que a leitura me vai proporcionando.
Depois, o viver comunitário, que no Sul há muito desapareceu, sempre foi uma paixão minha e assim gostaria que continuasse.Todos os vizinhos a dar o seu contributo em prol do bem comum vai desaparecendo dos nossos hábitos e tão positivo seria se assim fosse.

Bem-hajam Fátima e António! As vossas palavras deliciam-me.

Anónimo disse...

É uma felicidade enorme descobrir que ainda existem Seres Humanos que dedicam algum tempo de suas vidas à prática de todos os tipos de solidariedade e muito reconfortante relembrar factos como este, que estavam totalmente adormecidas na minha memória e, possìvelmente, na de muitos outros. São imagens vivas e em cores que retornam à memória e trazem saudades desses tempos em que as dificuldades eram muito maiores, mas a solidariedade e o espírito comunitário também.
Parabéns ao autor e às poucas pessoas que ainda teimam em nos manter a par das tradições de nossa terra.

Um abraço
César

Augusta disse...

Tonho:
Eu sei que estou a ser repetitiva ao dizer-te o quão bem me fazem os teus textos.
Ainda bem que tens essa memória de elefante, que nos faz regressar a anos e experiências vividas, mas também já praticamente esquecidas.
Depois, deixa-me que te agradeça a tua preciosa colaboração neste espaço, que quer continuar a existir e, desta forma, ajudarmos a que Rebordainhos continue VIVA, apesar da ausência do bulício doutros tempos.
Um beijo

Olímpia disse...

Tonho:
Aguardo os teus textos, da mesma forma que uma criança anseia por um presente.
O " dia do concelho", é uma grande lição para todos nós, principalmente nos dias de hoje, em que cada um olha cada vez mais para o seu umbigo.
Esta facilidade com que as pessoas se organizavam mediante um conjunto de normas para um benefício colectivo,seria um bom exemplo a seguir pelos nossos governantes.
Desde sempre habituados ao esquecimento e à dureza da terra,
a iniciativa, a solidariedade e o espírito comunitário sempre fez das gentes de Rebordaínhos gente forte e guerreira.
Bem-hajas António
Bjos
Olímpia

Fátima Pereira Stocker disse...

Desde há uns anos a esta parte, a Junta tem chamado a si a responsabilidade pelo arranjo dos caminhos. Isso é de louvar. Duas ou três canadas, porém, têm caído no esquecimento, provavelmente porque não são utilizadas ou são-no por poucas pessoas ou, talvez, porque sendo caminhos de pedras invalidam a entrada de máquinas. De memória, lembro a canada da Fonte da Vila (aquela que passa à frente da Casa da tia Emília do tio Aniceto); a canada da Ribeirinha (desde a casa do tio Benjamim e da tia Elvira até à Ribeirinha), a parte final da outra canada da Ribeirinha (desde a parte de cima da terra do Rafael até à poça)e toda a canada das Ribas.

Entrar com máquinas nessas canadas é destruí-las, o que significaria a destruição de um importante legado histórico que vem desde a Idade Média. Não seria bom que os sinos a tocassem, de novo, a concelho para que elas voltassem a estar transitáveis? Aqui fica o repto para o Bino e para o Sr. Padre Estevinho, oferecendo-me, desde já, para o trabalho necessário.

EC disse...

Embora não me lembre dos concelhos do final do Inverno, ainda tenho em mente os concelhos para arranjar as poças.
Gostei muito de saber que o meu avô Carlos também não perdia um concelho, embora " com umas ganas muito democráticas: mãos macias e sachito ocioso, mais de enfeitar que outra coisa".
É delicioso ler os seus textos (embora não os comente!).

Muito obrigada
Emília Caminha

António disse...

Olá Milita:
Olha, Priminha, não quero que fiques com a impressão de algum desprimor nas minhas referências ao teu avô Carlos de quem guardo as melhores recordações. Ele era de facto um homem excelente, atencioso e delicadíssimo. Claro que as minhas recordações são um quanto evanescentes, dado que deixei Rebordainhos quando fiz onze anos, mas ainda o recordo quando aparecia pelo soto do meu pai a comprar os definitivos pequenos ou a jogar um furtivo chincalhão com com o povo. Furtivo, porque ao teu tio-avô, o Sr. Professor, não agradavam muito estas convivências plebeias. Mas era muito brincalhão e de trato afável com toda a gente e toda a gente gostava dele. Para nós, a garotada bravia amansada pela palmatória severa do Sr. Professor, ele representava o seu contraponto familiar em positivo.
Digo isto para que conste e estimes a sua memória. Talvez um dia ainda façamos uma cronicazinha sobre ele.
Um beijo do primo
António

Anónimo disse...

António

As tuas memórias fizeram recordar a vida verdadeiramente comunitária que se viveu em Rebordainhos. Não quer dizer que esse espírito tenha desaparecido, mas sim que a aldeia está muito envelhecida.
Lembro-me que nos finais dos anos 60, a pá e picareta, o povo rasgou as ruas da aldeia para a canalização da água. Foi um trabalho muito árduo, mas feito com os valores e o espírito de união que tu tão bem sabes descrever.
Obrigada por mais este lindíssimo texto.
Um beijinho
Céu
Obrigada por