quarta-feira, 4 de março de 2009

Contas

Aquele lume do lar de Inverno, tenho a certeza, continua a acender a memória e a aquecer a saudade de todos quantos frequentam o nosso Rebordainhos. Eram longos os serões, ou assim me pareciam. Certas noites debulhava-se o milho, maçaroca contra maçaroca, mãos pequeninas a tentarem imitar os gestos dos grandes. Noutras, o homem da casa pisava o unto enquanto a mulher fazia malha: meotes e camisolas que calçavam e vestiam toda a família. Ora, porque o gesto da mão não é impeditivo da palavra, à medida que as agulhas puxavam a lã e a maça batia na banha branca, lá se iam contando histórias, naquela forma de dizer tão própria da oralidade. Que idade terão as contas da nossa infância?

Inicio aqui a publicação de uma série de contas no exacto registo em que as ouvi da boca de minha mãe, meu pai e tia Helena, cheia de pena de que a escrita não possa mostrar sorrisos e trejeitos nem fazer ouvir o riso nem o tom de voz de quem as ia dizendo. Quem se lembrar de mais faça o favor de ir acrescentando!

I - O ALFAIATE

Era uma vez um alfaiate. Ia de noite para a aldeia dele e passou numa canada. Uma silva prendeu-o. Esteve toda a noite:

– "Ó senhor, deixe-me, por favor, não trago dinheiro!"

Toda a noite a dizer isso! Trazia um cruzado no bolso e deitou-o para trás, para ver se o homem que ele julgava que o estava a prender, se ia embora.

De madrugada sentiu falar de trás dele. Olhou para trás e viu que estava preso pela silva. Tirou a tesoura do bolso e cortou-a. Ao fim disse:

- "Se fosses um homem fazia-te na mesma!"

11 comentários:

Olímpia disse...

Eram maravilhosos esses momentos passados à lareira.E, enquanto ouvíamos as contas, deixavamos-nos seduzir pelo poder mágico das palavras e, imaginávamos personagens e cenários.
Os gestos e as expressões de quem as contava,ajudavam a enriquecer a nossa criatividade mental facilitando-nos a entrada num mundo imaginário onde se viviam emoções e fantasias.
Bem-hajas Fátima
Beijos
Olímpia

Anónimo disse...

Um valentão esse Alfaiate.

Com contas, umas trás doutras, se passava um serão. Grandes rosários se faziam ao lume.

Numa das primeiras vezes que fui a Vila Boa, quando comecei a conhecer a familia da minha mulher, falavam-me da tia Irene como sendo uma boa pessoa, muito amiga dos filhos ... e dizem-me: e pra contas é que ela é.
A minha primeira ideia foi que ela seria uma daquelas pessoas que, mesmo com pouca instrução, às vezes fazem malabarismos no cálculo mental.
So depois constatei que a tia Irene era uma grande contadora de "contas".

Augusta disse...

Como ficávamos contentes quando o pai começava a contar uma conta. Ficávamos horas a fio ao serão a ouvi-lo, e depois de acabar alguma daquelas engraçadas que ele costumava contar, brindáva-nos ainda com aquele seu riso de olhos fechados, que hoje todos recordamos com saudade. Não havia luz eléctrica nem televisão. E diga-se, que não lhe sentíamos a falta (apesar de ser melhor a luz do candeeiro de petróleo, que a da candeia).
És uma "ideiota"!! E que bela ideia, esta das CONTAS.
Beijinhos

António disse...

Olá Fátima:
Olha que rica ideia essa de recuperar as contas do tempo da Maria Castanha! Lembrei-me logo das histórias do tio Zé Miguel, mas não há maneira de recordar nenhuma de cabo a rabo... só uns farrapitos aqui e além.
Entretanto esperamos pela continuação da vossas memórias herdadas do tio João.

Fátima Pereira Stocker disse...

Olímpia

Tens muita razão no que dizes: as contas, os dizeres, os jogos... eram porta aberta para a criatividade. Eu acrescento que eram importantes instrumentos de iniciação no nicho cultural das nossas gentes.

Fátima Pereira Stocker disse...

Chanesco

Seja muito bem regressado - aqui e à sua casa de que já tinha muitas saudades.

O alfaiate da conta é igualzinho as uns quantos farroncas com que topamos todos os dias e alguns até mandam em nós...

Há mecanismos estranhos no processo de selecção das palavras. Eu creio que é a estas contas que se refere a expressão faz de conta (e que nós dizemos faça à conta), mas não sei por que carga de água é que esse significado desapareceu do linguajar comum de quase todo o País.

Aproveite a tia Irene, se ainda for viva!

Um grande abraço

Mare Liberum disse...

Cara Fátima

Recuo no tempo, umas boas décadas, e sinto-me à lareira, à beira de um toro que ia ardendo lentamente tanto quanto o avô ia contando as histórias de outras décadas mais recuadas. Do Zé da Bia, do Tóino ferreiro, do Gazeta...e eu bebia as palavras que só o sono mas fazia perder.

Um abraço fraterno

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

O riso sossegado do pai, as gargalhadas da mãe, o rir calado da tia Helena, os remates apimentados da tia Maria, os "ai essa está boa!" do tio António... tudo nos fica gravado na memória, se calhar por não termos televisão e porque a luz difusa das labaredas e da candeia proporcionavam sombras que estimulavam a imaginação.

Vamos lá ver se mais alguém se lembra de contas. Eu ainda tenho uma mão cheia delas.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Do tio Zé Miguel tu herdaste o melhor, que é pegar nũa conta e dar-lhe cor. E assim te tornas, tu também, fautor das nossas memórias.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Cara Isabel

São tantas as vivências comuns. Bendita infância que nos permitiu o sonho!

Um grande abraço

Anónimo disse...

O Blog está o máximo

Qual não foi o meu espanto quando começo a procurar qualquer coisa de Rebordainhos e me deparo com existência de um blog da minha terra.

Foi uma boa ideia
parabéns a todos que elaboram este Blog sempre dá para matar saudades de vez em quanto da nossa terrinha.
Germana Martins