domingo, 22 de março de 2009

ECOS DO MEU SENTIR


IV - VOLTEMOS À NOSSA ESCOLA PRIMÁRIA
por

FILINTO MARTINS

Uma escola reflecte o passado, o presente e o futuro.



O passado está patente na plêiade de antigos alunos que mesmo criados com carolos de centeio, carne gorda “rijada” e torradas de pão de quinze dias com unto, olharam mais além. O presente está neste blogue de Rebordainhos de que nem todas as aldeias, quase desertas, se podem orgulhar. O futuro que só a Deus pertence, está na semente que todos vamos lançando aqui e acolá, mesmo que o terreno tenha fragas, urzes, giestas… estará sempre como recordação naquela escola branca, com seis janelas, linda, grande… plantada no lugar mais arejado da aldeia, isolada… noutras aldeias seria ali o cemitério… o culto dos vivos dará sempre mais frutos que o dos mortos, merecedores do nosso respeito e admiração.

Suponho que tive sorte, nascendo a 3 de Outubro para a 7 entrar para a escola, como ditava o calendário de então. Agora começa um mês antes e termina um mês depois… Provavelmente porque já não é preciso sacudir a rama na apanha das batatas, virar o feno, ir com as vacas… novas tecnologias. Ainda bem, sem a mínima ironia. Não é preciso aprender de cor os rios e os seus afluentes e muito menos as linhas dos extintos caminhos-de-ferro. Basta consultar a NET e até horários e preços estão disponíveis.

7 de Outubro de 1955 – o sino da igreja nunca mais tocava… já estávamos à porta da Escola, onde nunca tinha entrado, quando umas leves badaladas ecoaram naquela manhã, efeito das mãos da Sara, que puxara o cadeado do sino, mais tarde, o mesmo, serviria para tocar a rebate e ir para a enxertia, no dizer do tio Leque… É claro que se tivesse sido duzentos anos antes, pensar-se-ia que era o terramoto de Lisboa.

Entrámos numa sala muito grande, com carteiras compridas, janelas muito amplas, um quadro negro, uma braseira, uma mesa, uma cadeira, alguns livros a um canto. Ao fundo, encostados à parede, dois armários onde se destacavam um carro de bois com “engarelas”, um arado, uma grade, tudo em madeira… que bonitos eram… ai se nós pudéssemos mexer neles!

Após esta primeira descoberta, eis que surge o senhor professor, Joaquim Francisco Ribom. Ninguém na aldeia ousava pronunciar o seu nome, mas o seu “ofício – Senhor Professor”. E quando passava a caminho da escola, de casa ou da Igreja, todo o ancião descobria a cabeça e com uma leve vénia, dizia: “Bom dia, Senhor Professor”, qual biblioteca ambulante.

Aquela figura esguia, alta, cabelo branco, olhos perscrutadores, fato e gravata, porte aristocrático, parecia o epítome do conservadorismo agressivo da época. Tirava um lenço branco do bolso das calças vincadas e com ele limpava a saliva dos cantos da boca. Com um olhar fixo e fulminante, acomodou-nos nas longas carteiras. Silêncio sepulcral.

Estava ansioso, acho que sem candeia no nariz, em abrir a sacola de pano de serapilheira, tirar o livro único e a pedra ainda limpinha, que tinha comprado na taberna do tio Trocho. Naquele tempo não distinguia uma única letra, a minha pré-primária foi ir com as vacas, andar aos pássaros, ir aos guiços para a lareira… Fiquei imenso tempo à espera… não apareceu nada escrito na minha lousa, todavia regressei a casa todo radiante porque já vinha da escola! Aquele livro com a águia, a égua, a igreja, o ovo, as uvas… decerto folheado vezes sem conta, sem identificar o significante, mas era aluno…

Os dias sucediam-se aos dias.

Já licenciado em Psicologia, o meu ego saiu muitas vezes recompensado com as palavras doces que a senhora Dona Maria, que visitava sempre que ia a Rebordainhos, me dizia passeando no seu quintal, junto a uma biquinha… um relógio de sol… confidências! “Olha, Filintão, uma vez a aluna… estava a aprender a juntar sílabas obtendo a palavra final, associada a uma imagem. Eu dizia-lhe: pa – pa e to - to. Ora lê. Resposta pronta: parreco.” Hoje digo eu: excelente resposta. Noutra ocasião a mesma aluna, tentando juntar a + pi + to, respondeu: subiote. O significante era o que menos interessava, todavia o significado era fruto duma socialização primária, ainda sem o Magalhães.

Estas recordações com a senhora Dona Maria e o senhor professor, tendo como testemunha o senhor Carlos, eram como o perfume das peras e maçãs que tão bem guardava na memória, na alcofa da sala de jantar da sua casa junto à Igreja. Voltaremos lá noutra ocasião.

O tratamento “Filintão”, que eu achava ser depreciativo e sinónimo de burro, naquela época, hoje recordo-o com carinho e saudade, pois o primeiro brinquedo que tive foram eles que mo ofereceram – uma gaita de foles - que a minha mãe guardava com carinho e especial atenção, dizendo sempre: “Foram os senhores professores e o senhor Carlos que te ofereceram”.

O Senhor Carlos, não sendo professor, era uma pessoa muito querida e respeitada. Estou a vê-lo passar para Vale-das-Vinhas, com um sachinho ao ombro e saudando tudo e todos. Jogando à sueca, ao “xincalhão”, na taberna do tio Trocho, saboreando o seu cigarrinho. A cada passo, mais atento ao tempo que ao jogo, puxava do seu relógio de bolso do seu colete, que muito prezava usar, a curta distância conferia as horas. “… é o último jogo…” bebia apressadamente o seu Sumol para iludir o cheiro do tabaco e ei-lo, em passo aligeirado, a caminho de casa… por ele não vinha mal ao mundo.

Obrigado, senhor professor, obrigado senhora Dona Maria, sinto orgulho de ter sido vosso aluno. Ela, lá onde se encontra, sabe que eu não gostava de chamar “senhora professora”, pelo carinho que sentia, gostava e gosto, pois para mim será sempre “senhora Dona Maria”. A autoridade era “professor”, ela era mais que professora. Até a sua terra natal – Carrapatas – que nunca visitei, continua na minha mente como algo diáfano, pois quando à saída de Macedo, vejo a placa Carrapatas, o meu espírito tem sempre presente os três grandes amigos.

Paz às suas almas.

15 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Filinto

Feliz regresso, este seu. Feliz porque nos oferece mais memórias e bem apanhadas, num estilo limpo e agradável de ler. Feliz, também, porque tais memórias são comuns a quase todos os naturais de Rebordaínhos, nascidos nos primeiros 60 anos do séc. XX. Memórias comuns e gratas, tendo em conta de quem se trata: os senhores professores que nos ensinaram a nós e aos nossos pais, jamais quebrando o compromisso que estabeleceram com o nosso povo: instruí-lo e instruí-lo muito bem!

Muitas vezes comentámos, o João e eu, sobre a importância sociológica desses dois irmãos: serão eles os responsáveis por Rebordaínhos ter tantos licenciados, filhos da primeira geração que eles ensinaram? Terão sido eles a semear tal semente que levou os nossos pais a fazerem da pobreza riqueza e das tripas coração para nos fazerem chegar onde se julgaria impossível?

Obrigada por estas memórias, do seu e do nosso sentir.

Fátima Pereira Stocker disse...

Às minhas primas Tilinha e Milita

Desculpai-me se insisto por esta via, mas ficariam aqui tão bem as fotografias dos vossos tios e do vosso avô! Bem sei que o vosso tempo é curto, mas como a minha intenção é boa, aqui fica o apelo.

Obrigada e beijos

Mare Liberum disse...

Não tenho palavras para vos dizer como me sinto em casa quando aqui venho. Também eu fui para a escola na década de cinquenta num 7 de Outubro que está tão presente como se tivesse passado há pouco. A senhora professora Gabriela, que há muito partiu, jamais será esquecida por aqueles que lhe passaram pelas mãos. Todos eles saíram aptos para ganhar a vida.
Bem-haja, Filinto!
Um abraço fraterno

Augusta disse...

Filinto:
É mais do que justa esta homenagem simples, que hoje fazes à Srª D. Maria, ao sr professor e ao sr Carlos. Para além de professores, eles foram também nossos vizinhos e amigos. Muitas vezes, quando a minha mãe se deslocava à fonte da vila, ou a outra terra qualquer, lá estava ela, a srª D. Maria, de olho vivo e vigilante!...
Tendo sido ela a minha professora, recordo-a melhor, mas ambos, abraçaram a profissão com uma militância admirável. Adoptaram a nossa aldeia como sua, e ela, não se escusava a trabalhar mais, quando a partir do segundo período, iniciava mais cedo e acabava mais tarde o seu dia de trabalho para nos preparar melhor para o exame da "quarta". Imagino que, na altura não tinha direito a horas extraordinárias...
Certamente, todos da aldeia teriam muito a acrescentar acerca destas três brilhantes e excelentes PESSOAS... Mas, mais importante que o "dizer" é o "sentir", pela parte que me toca, SINTO MUITO ORGULHO EM TER SIDO SUA ALUNA.
Obrigada aos três e obrigada a ti. Beijinhos

Chanesco disse...

Como, estando nós tão distantes geograficamente, nos parece estarmos tão perto, ao ler esta prosa, sentida, do Sr. Filinto. A descrição da escola, a dos professores, o ambiente, tudo me parece tão familiar.

Um abraço para Reordainhos

António disse...

Olá, Primacho!
Até que enfim reapareceste com os Ecos do teu sentir. E reapareceste muito bem com a recriação da memória de três personalidades da nossa infância que marcaram a vida da aldeia. É engraçado que outro dia me ocorreu semelhante ideia e me dei ao desfastio de escrever também umas coisitas sobre o Sr. Professor. Qualquer dia poderão aparecer como um segundo capítulo pobre desta tua belíssima página.
Um abração

Olímpia disse...

Também eu, recordo com carinho os senhores professores e o sr. Carlos.Este,amigo como era da criançada, costumava presenteá-las com uns rebuçados após o cumprimento de"Olá".Para nós, era uma agradável brincadeira e um adoçar de bocas.
Mais conhecedora da personalidade da Srª D. Maria (porque não lhe chamaríamos Srª Professora?),é com muita admiração que a recordo pelo seu exemplo de verticalidade,honestidade, dignidade, dedicação e uma grande preocupação por ensinar e formar cidãos com valores hoje quase esquecidos.
Ela foi uma organizadora das nossas aprendizagens e gestora do material escolar que, com algumas dificuldades era adquirido pelos nossos pais ( lembro-me de quando ao escrever,muitas vezes tocar com a ponta dos dedos a pedra ou o caderno diário pelo tamanho diminuto dos lápis."Os vossos pais, não andam a trabalhar para vocês estragarem", dizia-nos ela com frequência.).
Vizinhos durante toda a minha infância, tivemos o prazer de com eles partilharmos o convívio e a protecção de quando a nossa mãe estava ausente.
A Srª D. Maria, foi minha professora já quando estava próxima a sua aposentação e,quando substituída nas suas ausências, lembrava-a com muito carinho.
Bem-hajam, Senhores Professores.
Bem-hajas Filinto, por os teres recordado neste bonito texto com tantas coisa comuns a todos nós.
Beijos
Olímpia

Filinto Martins disse...

A foto com que a Fátima introduziu o meu texto... sim, essa era a nossa Escola. Não conheço a escola da ASCRR. Tiraram-lhe a beleza daquele apendre, que tinha muitas utilidades, até resguardar do frio os nossos colegas dos Pereiros, quando em dias de temporal chegavam mais cedo.
Também espero uma foto que alguém tenha, dos nossos queridos professores, que não eram de Carrapatas, mas de Rebordainhos.

EC disse...

Não tenho palavras para exprimir o que li sobre os meus tios e avô! Apenas lhe agradeço...

A fotografia dos irmãos (ainda muito novos) foi bem escolhida pela Fátima.

E só uma pequena correcção, se me permite: os três irmão não eram de Carrapatas, mas de Bragança.

Milita

Augusta disse...

Milita:
Também fiquei surpreendida com Carrapatas,mas... Eu até tinha a ideia que seriam de Gimonde.
Beijinhos

CC disse...

Obrigada por ter escrito estas belas palavras sobre os meus tios e o meu avô!
Recordá-los com tanto carinho e admiração é, de facto, maravilhoso...

Augusta,
Também não eram de Gimonde, apenas tinham lá familia, aasim como em Carrapatas.

Beijinhos

Tilinha

Filinto Martins disse...

Minhas amigas, não mes façam mudar o próximo texto sobre a nossa Escola... A minha mãe tinha razão "Carrapatas"! Eu nunca lá estive e passados 50 anos, quando vi, pela primeira vez a placa "Carrapatas" exclamei para a minha mulher: Olha a terra dos senhores professores. Se não era, tiveram lá alguém que lhes era muito querido. Seriam os pais? Se o algodão não engana, o nome também não. Gostava tanto de ver uma foto dos anos em que já estavam reformados, conversavam, riam e a senhora Dona Maria me dizia: "eu quando morrer quero ir com este vestido". Como ela encarava a morte, como passagem. O senhor Carlos dava rebuçados e ele chupava sempre um, quando regressava a casa, para abafar o cheiro a tabaco... ainda cheguei a ouvir a Dona Maria: "Ó Carlos, esse cheiro...". Foram meus amigos e só tenho pena que Rebordainhos não lhe tenha prestado uma homenagem, em vida. Bem mereciam. Não é agora, com placas... Uma vez mais obrigado aos três irmãos.

EC disse...

De facto eram de Bragança. Em Carrapatas tinham primos.

Fátima Pereira Stocker disse...

Filinto
Milita
Tilinha

Nessa discussão não me meto. Para mim eles eram de Rebordaínhos porque, quando nasci, já lá estavam há quase tantos anos como tenho agora. E sinto-me abençoada por isso (e pelos rebuçados que o Sr. Carlos me dava em mãos ou atirava ao pilha, para a garotada apanhar).

Filinto
Para não sobrecarregar este artigo com imagens, seguem por e-mail duas fotografias mais recentes que a Milita me enviou.

Beijos

Céu disse...

Filinto,

Escrever sobre os Senhores Professores ou sobre o Senhor Carlos, nunca é demais.
Eles foram o grande pilar da formação das gentes de Rebordainhos, como bem diz a Fátima, nascidos nos primeiros 60 anos do século p.p.
Eles educaram os nossos pais e a nós também. Marcaram uma época que fica para sempre. Todos os que tivémos a sorte de os ter como professores e o Senhor Carlos como amigo (sim, porque ele era amigo de toda a gente), todos guardamos as mesmas lembranças.
Sobre Carrapatas, eu sabia que tinha lá primos porque me lembro muito bem de uma história sobre eles, contada numa aula da Senhora Dona Maria por ela mesma, que eu nunca esqueci. Rebordainhos, foi a terra que eles adoptaram como sendo sua, tanto que gostavam dela.
Filinto, fez-me muito bem ler o teu texto. Ele é um testemunho de todos nós e tu transmitiste muito bem o teu sentir.
Obrigada,
Céu