domingo, 24 de maio de 2009

A TIA ETELVINA


Ela cumpria com rigores de fiel alguns ensinamentos dos romances que, de quando em vez, chegavam às mãos das mulheres de Rebordaínhos. Não que se encafuasse em casa e só visse o mundo por detrás dos caixilhos das janelas, posto que a vida a tal não asava, antes, porque o seu ser donairoso se moldava pouco ao resguardo de quatro paredes. Gostava de ser admirada e sabia que marcava a diferença com a sua pele de uma alvura imaculada que o sol não tinha permissão de tocar. Senhora de si, enfrentava os dias e o trabalho com a sombrinha aberta numa mão e o cabo da enxada na outra. A sombrinha e também o lenço da cabeça, mas a esse deixava-o tombar sobre a nuca mostrando a cabeleira farta enrolada em crucho descaído e as arrecadas de ouro que, pendentes das orelhas, lhe emolduravam o rosto. Nem quando a torreira de Agosto frigia a carne ela descalçava as meias "para que as pernas me não fiquem pretas", justificava-se entre risos, reconhecendo que a vaidade era o motivo.

Era uma figura e tanto, a tia Etelvina! Nem teria metro e meio de altura, mas que importava isso, se a mulher se quer como a sardinha e a natureza fora pródiga nos atributos que lhe concedera? Nunca se vira menear de ancas como aquele nem colo onde as sete voltas do cordão de ouro assentassem tão plenamente. Jamais saía à rua sem as maçãs do rosto resplandecentes de pó-de-arroz e, aos domingos, avivava os lábios de carmim. A ganapada, que ainda mal aprendera a vergonha, perguntava-lhe só para se poder rir da resposta que já esperava:

- Ó tia Telbina, a senhora porque é que pinta a cara
?

- Ora andor! Metei-vos lá na vossa vida
!

Nos domingos de estio vestia-se de seda, um fatinho florido e fresco de saia e casaco que se ouvia roçagar. Calçava as meias de vidro e os sapatos finos de ir à cidade e, à hora da missa, dobrava em quatro o tapete vermelho sobre o qual se ajoelharia para que as frinchas das tábuas ou alguma areia escapada da varredura da véspera lhe não ferissem os joelhos. A garotada, que de tudo faz motivo de brincadeira, se a apanhava distraída, surripiava-lhe o genuflexório para se poder rir à socapa enquanto ela se desunhava a saber dele, inquirindo as mulheres à sua volta. Impávido, o Sr. padre João continuava a celebrar a missa, mas à roda da tia Telbina era tudo risos sufocados.

Todo o lixo a enojava, brio superlativo numa terra de gente habituada a conviver com lama e fumo, a meter a mão no estrume seco para o espalhar na terra e a cofiar o pelo de vacas e de porcos. Enquanto caminhava pelas ruas no seu andar de balancé, com os botins pretos de borracha de ir à rega, arremessava para os cantos qualquer porcaria que lhe atrapalhasse o passo. "Que gente tão porca!", resmungava. Certo dia, passando em frente à casa da Maria Fecisma, sentiu os pés enrolados num farrapo e lá veio a exclamação inevitável enquanto atirava o benairo sobre o sequeiro encostado à casa. Prosseguiu o caminho, foi regar as batatas, mas à volta sentiu a falta da combinação que mulher nenhuma se esquecia de vestir. Procurou-a por todo o lado e, não a encontrando, veio-lhe à ideia que antes de ir à rega estivera em casa do João Fouce. “Ó João, eu não deixei aí a minha combinação?” perguntou, inocente, do fundo das escadas. O Fouce, que normalmente era brincalhão, naquela altura gostou pouco da pergunta e retrucou indignado: “O diabo da mulher é maluca, ou faz-se?!” Foi então que a tia Telbina se lembrou do benairo que arrojara sobre o sequeiro da Fecisma. Foi lá ver e encontrou a sua combinação a que se tinham escochado as alças e lhe deslizara corpo abaixo sem ela dar por isso, a não ser quando, já no fundo das pernas, lhe atrapalhou o passo.

São muitas as histórias da tia Etelvina associadas aos seus requisitos higiénicos. Gostando de luzir no corpo, tinha as mesmas exigências no que ao seu Casimiro e à casa dizia respeito. Não era no brilho argênteo dos potes energicamente esfregados com areia que se distinguia das outras mulheres de Rebordaínhos, porque os potes luzidios eram o orgulho de todas elas, prova maior do seu asseio e demonstração segura das suas virtudes domésticas. Não. O que distinguia a tia Etelvina era a atenção aos pormenores, às coisas a que mais ninguém dava importância. “Ai que me esqueci de esfregar as tenazes! Ó garotos, esperai aí por mim!” pediu à quantidade de gente que, empoleirada no atrelado do tractor do Manuel Nelzeira, se preparava para ir a um funeral a Vale de Nogueira. Estava dado o mote para a risota do caminho, espécie de esconjuro do motivo triste da viagem.

Levava a vida sossegada. Sem filhos, afeiçoou-se a sobrinhos e vizinhos, não dando mostras de que a falta de descendência lhe inquietasse os dias ou desse noites mal dormidas. Garantia a juventude recorrendo às novidades que os contactos com Bragança permitiam chegar à serra, por isso, mal a queda dos dentes lhe começou a fazer encovar o rosto, tratou de pôr dentadura que lhe permitisse um sorriso imaculado. Nem à hora da morte se esqueceu dela, pedindo às mulheres que a rodeavam que lha pusessem. Deus nosso Senhor, afeito às coisas belas, gostaria de ver um rosto perfeito à Sua frente. E a ela, a Santa, nomeada que herdara do pai, por motivos acrescidos, o Todo Poderoso haveria de exigir perfeição.

O que mais a zangava era que lhe perguntassem a idade. A tia Ascensão Gralha, regressada havia pouco de África e esquecida de tais pruridos, um dia em que sossegavam nas escadas da Teresa e do João Fouce, atreveu-se a fazer-lhe a pergunta fatal. “Quantos anos tem, já, a senhora, tia Telbina? “Quarenta e cinco!” foi a réplica que ouviu, a mesma que escutavam todos quantos a queriam ver arreliada e se divertiam com a resposta. “Tem quarenta e cinco, tem! A senhora é mais velha do que o nosso assador!” sentenciou o Zé Garrano do tio António Piloto, garoto desbocado e de saídas hilariantes para quem, naquela tenra idade, o assador de castanhas cheio de buracos devia ser mais que centenário.

Como qualquer mortal amante do que tem e desconfiado daquilo que está para vir, a tia Etelvina amou e quis a vida até ao último instante. No leito de morte, ainda teve fôlego para uma tirada da mais profunda filosofia e, na sua voz nasalada, sentenciou para as mulheres que tentavam sossegá-la com as promessas de vida eterna:

Vós bem falais, mas eu morro e vós ficais!

19 comentários:

Anónimo disse...

Sou o 1º a comentar a história da tia Telvina, é verdade que era um pouco vaidosa, tinha das suas.Quem melhor que tú vizinha podia descrevê-la! Essa do saiote que lhe cai sem se apersever, não a conhecia. Lamento não teres falado, ou pelo menos tão pouco do tio Casiro, pessoa com grandes valores.bjs, António B. Pereira

Augusta disse...

Ora aqui está um pouco da história duma vizinha a quem nós costumávamos "atizanar" com a questão da idade: "Bô, 55 tem a minha mãe e a senhora é mais belha?!"
-"Belhos são os trapos!..." respondia de imediato com voz arrediça.
E ainda hoje, quando passo em frente à janela do seu corredor, tenho a sua imagam em frente a um pequeno espelho, colocando o baton nos lábios antes de ir para a missa.
E o que se ria o nosso pai, quando recordava a cena da combinação!
Concordo com o Tonho na omissão do sr. Casimiro. Mas, por outro lado, também acho que merece uma página só dele. Por isso já sabes, ficas a dever-nos essa.
Beijos e obrigada pelas memórias avivadas.

Olímpia disse...

Gostei muito do retrato que fizeste da tia Etelvina.Um retrato físico fiel.
E, tratando-se dum retrato, não concordo que devesses falar mais do Sr. Casimiro ( pessoa respeitada por toda a gente).Está muito bem assim.O Sr. Casimiro, ficará concerteza para outras escritas.
De quando em quando, fizeste-me lembrar Cesário Verde ( o rebolar das ancas,o carmim dos lábios,luzir no corpo,etc).
Recordo-me bem da tia Etelvina e de quando o pai e a mãe íam passar o serão a casa deles:
-" se não se portam bem, dou-vos o arroz doce quando voltarmos", dizia-nos a mãe.
E eu,na minha pura inocência, nunca mais via chegar ao fim esse serão, ansiando pelo arroz doce !
Também me lembro de, a certa altura, ela pedir à Amélia para lhe fazer a depilação às pernas e ao buço, demonstrando assim, im certo "avanço", para uma mulher da sua época.
Ela era mesmo como tu a descreves.
Parabéns
Beijos
Olímpia

Olímpia disse...

Como ainda não dei as boas vindas ao António do tio Arnaldo, aproveito para o fazer agora.
Também lhe proponho um desafio:
Que tal, fazer uma recolha de jogos tradicionais que ele demonstra recordar-se tão bem e dos quais, eu me recordo de poucos ?( talvez por se tratarem de jogos de rapazes)
Contamos com a tua colaboração.
Cumprimentos
Olímpia

Amélia disse...

Da Tia Telbina guardo várias recordações.Entre elas vieram-me estas á ideia.
Um dia estávamos à espera dela para irmos a um enterro a Vale de Nogueira e quando, apareceu no portão do quintal vira-se para nós e exclama. Ai!...Que não esfreguei as estanazes!... Esperai mais um cibinho.
Outra vez, estávamos ao fresco nas nossas escaleiras, onde estava também a Tininha da Tia Alzira ainda miúda. A Tia Telbina pede-lhe para esta lhe ir à taberna comprar um carrilho de linhas brancas. Resposta da Tininha.
Não posso!
Não podes porquê?
Porque tenho quer ir fazer a cama do meu Pai!
Então não a faze a tua mãe?
A minha mãe feze a dela!..
Feze a dela! Então não dormem juntos?
Não!..
Não!...Pois olha que para se engancharem bem se juntam! Senão não faziam os filhos!...
Outra vez, andávamos às castanhas e quando, chegou a hora do almoço, tira um salpicão comprido e fino do cesto da merenda e vira-se para o Sr. Casimiro.
Hó! Casmiro o teu salpicão é quase assim!.. Não é tão comprido! Mas grosso olha que é quase igual!...
Nós desatamos todas a rir. Vira-se para nós e diz:
Arreganhais a tacha!...Olha que ainda lhe pega bem!...Inda outro dia me escachou uma costela com a força que lhe pegou!...É pena que já não vê o buraco às escuras, tem que ser com a luze acesa!...

Mare Liberum disse...

Claro que não conheci a tia Telbina mas este seu retrato fez-me avivar a memória e trouxe-me lembranças da Ti Soisa. Teria mais de cem anos se fosse viva mas nunca a vi sem o rouge que lhe avivava as maçãs do rosto, já de si vermelhuscas, como combinavam com os lábios onde nunca faltava o bâton.
Um excelente texto à moda dos Rebordainhenses que aqui vou tendo o gosto de conhecer.

Bem-hajam!

Abraços

Chanesco disse...

Minha cara Fátima

Não sei se o seu texto é o retrato ou a caricatura da tia Telvina, mas uma coisa é certa: a fotografia é apenas um pormenor.

Um abraço para Rebordainhos

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho (Braz)

A tia Telbina era uma criatura única de quem eu gostava particularmente. As histórias dela davam para passarmos um serão inteiro à gargalhada. Já faleceu há trinta anos (faz 30 ou 31 no próximo dia 8 de Agosto)e, quando estou em casa de meus pais, é como se ainda a visse passar à nossa porta a chamar: "Ó Teresa? Ó João?" ou a perguntar: "Bistes o meu Casimiro?"

Eu quis falar sobre a tia Etelvina, pessoa única na nossa terra. Quanto ao tio Casimiro, apesar de gostar muito dele, tenho menos que contar. Outros saberão muitas coisas sobre ele e esses devem avançar, para que o retrato seja mais completo e fiel. Concordo, no entanto, que merece que se escreva sobre ele.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

Avança! Isto não é uma recusa porque sim, é por achar que o Sr. Casimiro é digno de coisa de monta e não as parcas linhas que eu saberia escrever sobre ele.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Olímpia

Obrigada! Percebeste bem a minha intenção.

Se te fiz lembrar o Cesário... quanta honra!

Essa da depilação não a sabia! Esquecestes-vos de ma contar! Ah!Ah!Ah!Ah!Ah! Pois, completa o retrato!

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Amélia

Descobriste-me a careca! Eis a minha fonte principal. Sempre que tenho dúvidas, ala! Amélia!

No caso da tia Etelvina deixei o mais picante de fora. Fizeste tu as honras de carregar mais nas cores do retrato. Obrigada.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Isamar - cara Isabel

Vamos avivando as memórias uns aos outros. Todas as terras têm personagens únicas como a nossa tia Telbina e a sua ti Soisa.

Grata pelas suas palavras.

Um abraço

Fátima Pereira Stocker disse...

Chanesco

Gentil, como sempre.

É uma faceta, a mais pública, da tia Telbina. Para mim foi sempre uma pessoa muito meiga. Eu, que em garota não estava quieta um minuto, deixava-me ficar parada, tempos infindos, a sentir na cabeça os magníficos cafunés que me fazia. Este lado doce e maternal ela também o tinha e ficou por dizer.

Um abraço

Céu disse...

Fátima

Que belo retrato nos reavivaste! Tal e qual a tia Telbina, única na pacata vida da nossa aldeia, sobressaindo de todas as outras. Adorei o teu testemunho, mas ri-me até escachar, com todo o respeito, quando li os comentários, sobretudo o da Amélia. A tua irmã é demais, pena que não tenha começado a comentar há mais tempo. Força, Amélia, tu sim que tens jeito para isto, não desistas.
Concordo com desafio lançado ao Tonho do Tio Arnaldo pela Olímpia sobre a recolha dos jogos tradicionais, pois ele sempre teve muito jeito e podes crer que seria uma mais valia para a nossa aldeia.
Estivesteis todos muito bem, parabéns à escriba e aos comentadores.
Céu

Eduarda disse...

Pode parecer estranho, mas não é que me lembro da Tia Etelvina?
Sempre que em família me deslocava à aldeia, era visita que não se dispensava, uma vez que era madrinha de baptismo do meu pai, ela e o tio João Santo, que creio era seu irmão.(se calha estou a dizer alguma barbaridade).
Curiosamente a minha atenção, vincava-se nas suas maças de rosto, e nos lábios, pintados, fora do contorno.
Personagem atípica da aldeia, mas que por certo e como no texto se confirma,um coração aberto para a vida.

E continuando com Cesário:

«…
Ela aí vem!» disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais
…»
Um abraço

António disse...

Olá, Fátima
E assim vamos avançando na construção da pequena "comédia humana" de Rebordainhos e qualquer dia "inda hemos de fazer" inveja ao Balzac. E para a próxima não te esqueças de investigar junto da Amélia, pois parece que o arquivo dela guarda sempre os pormenores mais pitorescos do retrato.É engraçado que da ti Telbina também só recordo, como a Eduarda, a luminosidade das bochechas profusamente decoradas e os lábios pintados a vermelhão exuberante, coisa inédita em Rebordainhos naqueles tempos.
Do ti Casimiro, santo homem vindo de Alfaião, recordo que, nos últimos tempos, era companheiro inseparável do meu pai que, embora fosse mais novo, lhe chamava "o meu neto".
E não é que um dia destes, na prova do vinho novo, um amigo destes sítios, sabendo que eu era de Bragança desata a falar dele dos tempos de São Tomé!
Cá me fico à espera de mais um retrato... e desta vez pode mesmo ser sobre o ti Casimiro.

Fátima Pereira Stocker disse...

Dadinha

Dizes muito bem: o tio João "Santo" era irmão da tia Etelvina. Não sabia é que eram padrinhos do teu pai!

És uma querida por aquilo que dizes.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Céu

A Amélia mantém-se a mesma pândega da infância e juventude. Sabe bem ler o que escreve e sabe muito melhor ouvi-la!

O Tonho do tio Arnaldo, atento aos desafios, já me mandou fotografias e um apanhado dos jogos. A publicação estará para breve, só aguardo alguns esclarecimentos.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Balzac... pois!
Rebordaínhos, prova-se, é um microcosmos com mais protagonistas do que, à partida, poderíamos supor.

Para o retrato do tio Casimiro terás de contribuir com esse testemunho de S. Tomé. Eu mem imaginava que ele lá tivesse estado!
O teu pai tinha um sentido de humor e tanto! "Neto" dele, o tio Casimiro! Ah!Ah!Ah!

À Amélia consulto-a sempre. Eu às vezes é que não sei bem como reproduzir algumas situações, se me faço entender.

Beijos