VI
III – Escola… Ritual de Iniciação
III – Escola… Ritual de Iniciação
por
FILINTO MARTINS
FILINTO MARTINS
Andava com as vacas nas Bouças e o meu companheiro de desgraça era o Pilatos. Este era o meu segundo professor… e que "mestre"!
"Outro dia, viste, levei aquelas reguadas, porque não sabia fazer aquela conta de dividir… eu, também prefiro ficar com tudo, do que dividir!" – confidenciava-me o meu "mestre"…
Voltemos à escola.
Estava a chover… "frio e vento de Mogadouro, água até ao couro". À volta da braseira estavam dois colegas dos Pereiros a aquecer as mãos, depois do sinuoso percurso por eles percorrido diariamente, encharcados da cabeça aos pés. Ao meio-dia, a cantina que os esperava era um naco de pão de centeio de oito dias, com um pedaço de queijo de cabra, ou carne gorda de porco cozida, dos cevados que todos se orgulhavam de criar e engordar com castanhas, pois naqueles tempos eram eles que as comiam em grande quantidade. Hoje são outros, que tal sorte têm. "Mudam-se os tempos, mudam-se os costumes".
Naquela manhã fria, cor de chumbo, o senhor professor, sentado à braseira, enfiado no seu capote alentejano, enquanto os da segunda palreavam a tabuada em voz monocórdica, lembrava solenemente que alguns ainda não tinham entregue os 2$50 para as brasas… (ia dizendo, por dizer, pois nunca cumpria…) Aquela braseira estava perto da mesa do senhor professor, para ele poder ter os pés quentes, pensávamos nós. De quando em vez, após pedirmos licença, íamos aquecer as mãos. Sempre era melhor que o "aquecimento artificial".
Lembro-me, como se fosse hoje, que num ditado dei um erro, escrevendo "muinto". Até recebi um elogio, pois era caso raro em mim tal suceder… mas era um erro muito grave. (Hoje penso que a palavra deveria ter esta ortografia…. Nem com o acordo ortográfico!). Muito grave mesmo, de palmatória… Disse para com os meus botões: “aguenta, depois aqueces as mãos na braseira”. O pior estava para vir. A régua estava na sala das raparigas, pois naquele tempo a separação de sexos era um facto que ninguém colocava. "Vai buscar a régua à sala das raparigas". Ordem dada, missão cumprida e comprida…
Entrei na sala e não via ninguém… Tremia que nem varas verdes. Os olhares complacentes das minhas colegas, que noutras circunstâncias muito gostaria de ver, aumentavam o meu rubor nas faces, que nesta altura do ano eram sinal dum rijo transmontano. Não me vi ao espelho, nem precisava, mas devia estar mais corado que qualquer miúdo a assar o rabo do porco em dia de matança, nas brasas entre os grandes potes que faziam as delícias das cozinheiras.
Gaguejei para a senhora professora: "… era a régua…"
- Mas não é para ti, Filintão? Questionou a Dona Maria, por cima dos óculos.
- É sim – balbuciei.
- Eu sabia que tu eras muito esperto! (Hoje … acho que a Dona Maria teve pena de mim).
Só se ouviam os pardais, dado que naqueles dias a comida não abundava, através da porta entreaberta e os meus socos nas tábuas molhadas do soalho. Não olhei para ninguém, até encostei a porta sem olhar matreiro, que noutras ocasiões poderia suceder. Doeram-me menos as reguadas que o olhar condoído das minhas colegas.
Não havia melhor remédio que o tempo
Certo dia o Jorge, mais nosso conhecido por Pilatos, chamou os rapazes da quarta classe. Logo se seguiu a ordem do mestre: "Amanhã faço anos… vamos ter aqui uma cigarrada".
O mestre nunca faltava com a palavra. No dia seguinte, lá pareceu muito pontual, com um maço de Definitivos. A caixa dos cigarros tinha umas riscas azuis e outras vermelhas. Alguns de nós, perante aquele aparato já exercitavam a caixa torácica enquanto ele os retirava, com muito cuidado, distribuindo a cada comparsa o seu quinhão, qual lobo segura a presa.
- Ó Pilatos, são do teu tio? Perguntou o Pintassilgo.
O Pilatos quase que o fulminava com o olhar… mesmo assim teve direito a um, mas não se livrou da reprimenda: "Abre o bico, Pintassilgo, e vais ver a gaiola!"
Os senhores professores tinham ido almoçar e nós aproveitámos para nos servir da sala para fumar… como se fosse uma esplanada… e o "mestre" mandava. Santa inocência…
- "Olhem que vem ali a professora" – gritaram as raparigas, mais aflitas do que nós. Ordem do "mestre": "apaguem os cigarros e nada, bico calado."
Mal a professora entrou, qual raposa farejando galinha, exclamou: "Cheira-me a tabaco… cheira-me a tabaco…"
Agora é que o silêncio era sepulcral!
- Quem é que esteve a fumar?
Cada um fazia que fixava algo nos livros, recitava em surdina a tabuada, outros mexiam-se sem saber o que fazer.
- Ai ninguém se acusa?! Então os rapazes todos aqui para a frente.
Revista às tropas. Dirigindo-se a uma das nossas colegas, ordenou:
- Tu… Vê se algum dos teus colegas tem cigarros nos bolsos.
O Pilatos tinha guardado a "prisca" na orelha, debaixo do cabelo comprido, que não cortava há meses e havia de cair às mãos do Armindo. O Pintassilgo meteu-a nos socos que eram do irmão, do Domingos… ficavam-lhe grandes… eu, grande parvo, meti a minha "prisca" no bolso das calças, que, por sinal, estava roto. Enquanto estávamos na parada, à frente das raparigas, caiu-me aos pés. Nem foi preciso continuar a revista. Já nem sei quantas reguadas levámos, pois a bênção foi igual para todos. Só me recordo que na altura ainda não havia telemóveis e quando cheguei a casa levei um enxerto de porrada da minha mãe, pois alguma linguaruda já lhe tinha dado a novidade.
Razão tinha eu, quando há vinte anos atrás, encontrando-me com o meu "mestre", na taberna de cima lhe dizia:
- Pilatos, tu foste o culpado dos nossos vícios!
Abrindo bem as pernas, para não cair, dado que tinha areia na asa, respondeu:
- Ainda te apetece um cigarrinho, ó Filinto?
- Ó Pilatos, olha que tu, às vezes, lembras-me o tio Rasca dos Pereiros!
- Carai! Ele tinha mais sorte do que eu. Já viste que eu para ir para a Portela, ao fim do dia, é sempre a subir e o tio Rasca para os Pereiros era sempre a descer, homem!
- Ó Pilatos, mas tu hoje andas aos ziguezagues? É do vinho?
- És mesmo burro! Afinal o que é que tu andaste estes anos todos a aprender lá para o Porto? Os ribeiros não vão também aos ziguezagues? Não é água que eles levam? Se vires um com vinho, diz-me, que eu vou lá. Estou mesmo a ver que te faltaram mais umas reguadas… a professora bateu-te pouco.
O meu "mestre" lá tinha a sua razão…
Enquanto ele fazia o seu lento raciocínio e o meu filho, ainda pequenote, se ria do seu bom humor, eis que um cão do gado nos fitou longamente. "Ó rapaz, aprende comigo, já que o teu pai só te ensina nos livros e pouco!" Agarrou na primeira pedra que encontrou e atirou-a ao bicho que deu à perna…
- Não lhe acertou! – riu-se o meu filho.
É que eu vi dois e atirei ao outro.
Um grande abraço, "mestre" Pilatos, do teu companheiro da farra.
Filinto
"Outro dia, viste, levei aquelas reguadas, porque não sabia fazer aquela conta de dividir… eu, também prefiro ficar com tudo, do que dividir!" – confidenciava-me o meu "mestre"…
Voltemos à escola.
Estava a chover… "frio e vento de Mogadouro, água até ao couro". À volta da braseira estavam dois colegas dos Pereiros a aquecer as mãos, depois do sinuoso percurso por eles percorrido diariamente, encharcados da cabeça aos pés. Ao meio-dia, a cantina que os esperava era um naco de pão de centeio de oito dias, com um pedaço de queijo de cabra, ou carne gorda de porco cozida, dos cevados que todos se orgulhavam de criar e engordar com castanhas, pois naqueles tempos eram eles que as comiam em grande quantidade. Hoje são outros, que tal sorte têm. "Mudam-se os tempos, mudam-se os costumes".
Naquela manhã fria, cor de chumbo, o senhor professor, sentado à braseira, enfiado no seu capote alentejano, enquanto os da segunda palreavam a tabuada em voz monocórdica, lembrava solenemente que alguns ainda não tinham entregue os 2$50 para as brasas… (ia dizendo, por dizer, pois nunca cumpria…) Aquela braseira estava perto da mesa do senhor professor, para ele poder ter os pés quentes, pensávamos nós. De quando em vez, após pedirmos licença, íamos aquecer as mãos. Sempre era melhor que o "aquecimento artificial".
Lembro-me, como se fosse hoje, que num ditado dei um erro, escrevendo "muinto". Até recebi um elogio, pois era caso raro em mim tal suceder… mas era um erro muito grave. (Hoje penso que a palavra deveria ter esta ortografia…. Nem com o acordo ortográfico!). Muito grave mesmo, de palmatória… Disse para com os meus botões: “aguenta, depois aqueces as mãos na braseira”. O pior estava para vir. A régua estava na sala das raparigas, pois naquele tempo a separação de sexos era um facto que ninguém colocava. "Vai buscar a régua à sala das raparigas". Ordem dada, missão cumprida e comprida…
Entrei na sala e não via ninguém… Tremia que nem varas verdes. Os olhares complacentes das minhas colegas, que noutras circunstâncias muito gostaria de ver, aumentavam o meu rubor nas faces, que nesta altura do ano eram sinal dum rijo transmontano. Não me vi ao espelho, nem precisava, mas devia estar mais corado que qualquer miúdo a assar o rabo do porco em dia de matança, nas brasas entre os grandes potes que faziam as delícias das cozinheiras.
Gaguejei para a senhora professora: "… era a régua…"
- Mas não é para ti, Filintão? Questionou a Dona Maria, por cima dos óculos.
- É sim – balbuciei.
- Eu sabia que tu eras muito esperto! (Hoje … acho que a Dona Maria teve pena de mim).
Só se ouviam os pardais, dado que naqueles dias a comida não abundava, através da porta entreaberta e os meus socos nas tábuas molhadas do soalho. Não olhei para ninguém, até encostei a porta sem olhar matreiro, que noutras ocasiões poderia suceder. Doeram-me menos as reguadas que o olhar condoído das minhas colegas.
Não havia melhor remédio que o tempo
Certo dia o Jorge, mais nosso conhecido por Pilatos, chamou os rapazes da quarta classe. Logo se seguiu a ordem do mestre: "Amanhã faço anos… vamos ter aqui uma cigarrada".
O mestre nunca faltava com a palavra. No dia seguinte, lá pareceu muito pontual, com um maço de Definitivos. A caixa dos cigarros tinha umas riscas azuis e outras vermelhas. Alguns de nós, perante aquele aparato já exercitavam a caixa torácica enquanto ele os retirava, com muito cuidado, distribuindo a cada comparsa o seu quinhão, qual lobo segura a presa.
- Ó Pilatos, são do teu tio? Perguntou o Pintassilgo.
O Pilatos quase que o fulminava com o olhar… mesmo assim teve direito a um, mas não se livrou da reprimenda: "Abre o bico, Pintassilgo, e vais ver a gaiola!"
Os senhores professores tinham ido almoçar e nós aproveitámos para nos servir da sala para fumar… como se fosse uma esplanada… e o "mestre" mandava. Santa inocência…
- "Olhem que vem ali a professora" – gritaram as raparigas, mais aflitas do que nós. Ordem do "mestre": "apaguem os cigarros e nada, bico calado."
Mal a professora entrou, qual raposa farejando galinha, exclamou: "Cheira-me a tabaco… cheira-me a tabaco…"
Agora é que o silêncio era sepulcral!
- Quem é que esteve a fumar?
Cada um fazia que fixava algo nos livros, recitava em surdina a tabuada, outros mexiam-se sem saber o que fazer.
- Ai ninguém se acusa?! Então os rapazes todos aqui para a frente.
Revista às tropas. Dirigindo-se a uma das nossas colegas, ordenou:
- Tu… Vê se algum dos teus colegas tem cigarros nos bolsos.
O Pilatos tinha guardado a "prisca" na orelha, debaixo do cabelo comprido, que não cortava há meses e havia de cair às mãos do Armindo. O Pintassilgo meteu-a nos socos que eram do irmão, do Domingos… ficavam-lhe grandes… eu, grande parvo, meti a minha "prisca" no bolso das calças, que, por sinal, estava roto. Enquanto estávamos na parada, à frente das raparigas, caiu-me aos pés. Nem foi preciso continuar a revista. Já nem sei quantas reguadas levámos, pois a bênção foi igual para todos. Só me recordo que na altura ainda não havia telemóveis e quando cheguei a casa levei um enxerto de porrada da minha mãe, pois alguma linguaruda já lhe tinha dado a novidade.
Razão tinha eu, quando há vinte anos atrás, encontrando-me com o meu "mestre", na taberna de cima lhe dizia:
- Pilatos, tu foste o culpado dos nossos vícios!
Abrindo bem as pernas, para não cair, dado que tinha areia na asa, respondeu:
- Ainda te apetece um cigarrinho, ó Filinto?
- Ó Pilatos, olha que tu, às vezes, lembras-me o tio Rasca dos Pereiros!
- Carai! Ele tinha mais sorte do que eu. Já viste que eu para ir para a Portela, ao fim do dia, é sempre a subir e o tio Rasca para os Pereiros era sempre a descer, homem!
- Ó Pilatos, mas tu hoje andas aos ziguezagues? É do vinho?
- És mesmo burro! Afinal o que é que tu andaste estes anos todos a aprender lá para o Porto? Os ribeiros não vão também aos ziguezagues? Não é água que eles levam? Se vires um com vinho, diz-me, que eu vou lá. Estou mesmo a ver que te faltaram mais umas reguadas… a professora bateu-te pouco.
O meu "mestre" lá tinha a sua razão…
Enquanto ele fazia o seu lento raciocínio e o meu filho, ainda pequenote, se ria do seu bom humor, eis que um cão do gado nos fitou longamente. "Ó rapaz, aprende comigo, já que o teu pai só te ensina nos livros e pouco!" Agarrou na primeira pedra que encontrou e atirou-a ao bicho que deu à perna…
- Não lhe acertou! – riu-se o meu filho.
É que eu vi dois e atirei ao outro.
Um grande abraço, "mestre" Pilatos, do teu companheiro da farra.
Filinto
6 comentários:
Filinto
Estas suas memórias estão a tornar-se indispensáveis. Fazem-me bem, dispõem-me bem, fazem-me rir. Além do mais, o Filinto é capaz de captar aqueles instantes que, por si só, desenham retratos fieis das pessoas que enriquecem e dão colorido às memórias da nossa infância. Muito obrigada!
Beijos
Filinto:
Mais um brilhante post. Este dispôs-me particularmente bem.
Agora sei que, afinal, o Pilatos é atraganado há muito. Está-lhe no sangue, não há que ver! É um regalo passar um bocado ao seu lado. Permito-me mesmo afirmar que a sua boa-disposição é um excelente remédio para o tédio e depressão.
Obrigada, Filinto por conseguir transmitir-nos estes pedaços de vida e... queremos mais!
Um beijo
Bem-hajam Filinto e Pilatos, pelos minutos divertidos que me proporcionaram.
Durante a nossa infância, todos tivemos as nossas aventuras.Nestas, o Pilatos foi especialmente criativo.
Neste teu texto Filinto, fizeste com que nos fosse possível visualizar não só o cenário onde as acções decorreram, como também as personagens que nela participaram.
E QUE PERSONAGENS!...
Que bem descreveste o Pilatos!
Com muita habilidade, soubeste salientar alguns dos seus aspectos característicos, traços singulares que o individualizam e que o distinguem .
ADOREI.
Beijos
Olímpia
Filinto: se me permites, vou dividir este comentário em três partes distintas.
Em primeiro lugar, agradecer-te em nome do meu primo, Jorge "Pilatos", a narrativa das peripécias de infancia,afectivas e consideráveis, movimentadas e rebeldes, como não podia ser de outra maneira, conhecendo-o como eu o conheço.
Em segundo lugar,gostava defender a integridade fisica e moral da pessoa, por crescermos juntos, termos os mesmos avôs, recochecendo-lhe defeitos e virtudes como qualquer ser humano.Como exemplo, vou citar o meu avô, brincalhão, mas ireflectido, que, embora criança, recordo ralhar, com o tio Ramos na forja, para momentos depois, assentados numa "pia" de granito, exibirem uma sinfonia de traseiro, rindo às gargalhadas, mediante o espanto de quem passava.
Para terminar,gostava salientar um provérbio françês que diz: " l'habit ne fait pas pas le moine".Á porta do Pilatos, também há água boa, mas é claro, para que serve não sendo ele Ministro?...
Recebe um abraço: António Brás Pereira
Filinto
Obrigada por mais um presente tão delicioso e afável ao mesmo tempo.
Quem conhece o Pilatos, sabe bem que o caracterizas tal qual ele é.
Depois, estas vossas memórias faz-me regredir no tempo e por momentos sinto-me mais jovem, mais alegre e muita mais enriquecida em termos de conhecimentos.
Também me faz sentir que no fundo, somos todos da mesma família, que vivemos as mesmas coisas e que as partilhamos da mesma maneira.
Os teus Ecos são sempre um grande dádiva, obrigada, Filinto.
Beijinhos
Céu
Primacho:
Cá estou de novo a saborear as recordações dessa nossa infância, mais as lições de ida desse grande pícaro que é o Jorge(Pilatos para os amigos)digno de figurar como protagonista de uma narrativa de mais alentado fôlego à laia do Malhadinhas do Aquilino Ribeiro.
Um abraço
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