sexta-feira, 11 de setembro de 2009

ECOS DO MEU SENTIR




VII

"NA CAMA…"

por

FILINTO MARTINS




A anatomia diz-nos que para sorrir entram normalmente em acção 18 músculos, enquanto para enrugar a fronte são necessários 99. Ora, em tempo de crise, devemos aproveitar para sorrir, quanto mais não seja, por economia. Além disso, nunca as tristezas pagaram dívidas.

A minha mãe estava ainda a acender a lareira e o fumo já enchia a cozinha, naquela manhã de invernia, não se vendo a porta da rua, que estava entreaberta para escoar aquela fumaraça, que a chaminé não conseguia engolir, senão quando se aproximou do cancelo e sussurra:

- Ó Adriano!
- O que é Manuel? – Perguntou a minha mãe, enquanto se levantou da tripeça e se dirigiu ao cancelo.
- Tome lá, Olímpia, é para arroz…
- Diga à Maria que à noite comem cá – retorquiu a minha mãe, que segurava o bicho pelas patas traseiras e acrescentou: é boa! Que lontra!

O dia foi mais um dia de neve e chuvisco e eu, nos meus cinco/seis anos, matava o tempo espreitando a preparação do dito pitéu, que era por todos muito apreciado, enquanto agarrava o gato pelo rabo ou atirava com uns guiços para o lume, que num clarão rápido iluminavam a cozinha, à falta de electricidade. Aproveitava para me espreguiçar no escano, que era todo meu, pois no rés-do-chão havia muitos socos grandes que eu de vez em quando experimentava para meu encantamento.

A noite chegou depressa e à mesa todos nos deliciávamos com a dita. Como não havia noticiário, as garfadas de arroz de lebre eram entrecortadas com diálogos dos adultos:

- Ó Adriano, sabes onde a matei?
- Aonde? Lá prá Penacan? – Alvitrou meu pai, erguendo o pescoço, enquanto se deliciava a chupar a cabeça da pobre defunta. Foi sempre um gosto que meu pai tinha e eu herdei: “fazer de comer”, lambendo aqueles restinhos.
Dando uma gargalhada e mostrando ao mesmo tempo a falta de dentes como a lebre, enquanto dos olhos vermelhos lhe escorriam lágrimas, devido ao fumo e talvez a Baco, acrescentou:

- Na cama, caranvas!
- A esta hora ainda o Moreno anda a pensar onde vai poder abatê-la – retorquiu meu pai.
- O Moreno é bom para as perdizes!... Caranvas, olha que a cadela dele é mesmo boa, mas para a lebre não há como a minha…

Acho que estremeci e até a chama da candeia se contorceu toda, não sei se com o vento que assobiava, se com o mesmo medo que eu. Aquela noite custou-me a adormecer, pois não tinha televisão para ver os desenhos animados. Meti a cabeça debaixo dos cobertores e pensava: "E se aqui na minha cama há uma lebre?" Com o ouvido bem à escuta, não ouvi nada, até que Morfeu tomou conta de mim.

Mesmo assim continuei a gostar de lebre… Só alguns anos depois soube em que cama a dita foi abatida.

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Fotografia retirada daqui

Embora só indirectamente tenha a ver com o assunto, esta página é muito interessante, sobretudo para quem tem crianças.

4 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Filinto

Que cama seria a tal...

Como é bom sorrir, até, com os medos da infância! E que bom é ter infância com medos que, depois, transformamos em risos! E que bom é ter quem os partilhe connosco e nos faça sorrir também.

Estas suas histórias funcionam como um bálsamo para os aborrecimentos dos dias. Um grande beijo por isso

Olímpia disse...

Também o Filinto tem "toques" de Miguel Torga!..
E olhe que toca muito bem.
Gostei muito deste seu texto e, comparei-me consigo:também eu tardei a descobrir qual era o "arroz doce" que me esperava, caso me portasse mal nas noites em que a minha mãe e o meu pai partilhavam o serão com a tia Etelvina e com o Sr. Casimiro.
"Não se portem bem meninas, que eu quando voltar, dou-vos o arroz doce..."
E como eu ficava triste, quando a via chegar de mãos a abanar!
Que inocência maravilhosa!
Continue a deliciar-nos com os seus textos.
Bem-haja
Olímpia

António disse...

Ó Primacho:

Ora vê lá tu a quantidade de coisas boas que um cidadão pode encontrar na cama!
Esta nunca tinha encontrado, mas está muito bem apanhada!
E a nossa meninice é uma fonte inesgotável de assuntos.
Continua, rapaz, que, para não nos repetirmos, ainda vais ser o Trindade Coelho de Rebordainhos!

Um abração

António

Augusta disse...

Filinto:
Mais uma linda história que nos contas. E que bem que nos soube. A ti soube-te bem a lebre, a nós o relato do sucedido.
Já agora, como dizia o outro "sem a minha não fica"! Trindades, Aquilinos, Torgas... pelos vistos são "coisas" que não faltam na nossa comunidade. Ora mandai cá mais coisas lindas, homes!
beijos