quinta-feira, 8 de outubro de 2009

TERRA AMADA


IN ILLO TEMPORE

por

ANTÓNIO BRAZ PEREIRA


Rebordainhos já foi vila e, ainda hoje, lá para os lados da Chãera, as gentes de trás da serra falam dos “Cancelos da Vila”. Era um aglomerado bastante significativo de pessoas e a maior parte dos lares eram constituídos, bem à vontade, por uma dezena de familiares próximos. A maior parte das casas não possuíam o mínimo conforto: poucas divisões, telhados e paredes com buracos, por onde a ratazana fazia os seus passeios diurnos e nocturnos, com tranquilidade desavergonhada. O gatito que por lá andava tentava, de vez em quando uma astúcia heróica, pretensiosa, que resultava ou não, mas era do seu abnegado trabalho que dependia a sua sobrevivência. Havia, também, as chamadas casas “ricas”, as quais se contavam pelos dedos das mãos. Estas diferenciavam-se das outras, tanto pela arquitectura, como pela abundância, na recolha dos géneros, no seu devido tempo.

Falava-se de uma Igreja que em tempos teria existido no Lombo de à Igreja, pelo facto de ainda se encontrarem pedaços de telhas ao lavrar e, também, pelo nome dado ao lugar. Houve aí grandes pegas de touros a que nós chamávamos luta. Existia uma rivalidade orgulhosa, tremenda, entre os proprietários dos touros: todos diziam ser o deles o mais forte, o mais bonito, o maior... O Ramiro Alves e o Francisco Martins tinham dois bichos grandes e lindos. Lutaram no Lombo de à Igreja, mas já me não recordo qual deles ganhou. Também o Cândido Pires e o Fernando Jarrete participaram com os seus touros em lutas semelhantes. Outro pretexto de rivalidade era a rua que divide ao meio a povoação: sempre que se organizavam jogos, era o bairro de Baixo contra o de Cima, Cubelo, Espinheiro e Portela contra à Chave, Bairro das pedras e Outeiro.

Da nossa Freguesia fazem parte integrante os lindos Vales, um pequeno aglomerado de casas, mas com gente de grande franqueza e bondade, não esquecendo a coragem, tanto dos mais novos, para virem à escola, como dos mais velhos, que se deslocavam quando a necessidade se fazia sentir. Os Pereiros ficam mais perto e têm maior número de habitantes do que os Vales. A sua festa grande é dedicada ao Santo Amaro, no mês de Janeiro, creio, e fazia o orgulho dos que lá moravam. Porque Pombares também fazia parte da paróquia, realizávamos a Romaria ao S. Frutuoso em Teixedo, local magnífico para repouso, com a sua paisagem esplendorosa, parques em estado selvagem, onde à sombra de numerosas e diversas árvores, junto da corredia e silenciosa ribeira, se comiam copiosas merendas, partilhadas entre amigos e familiares, vindos com fé, assistir à missa anual, mas igualmente para relaxar, conviver, admirar e saborear, numa harmonia de paz e amor. Arufe também tem a sua Capela e o seu encanto, tanto na localização como na terra fértil, sabendo os seus moradores explorar e partilhar o que lá havia de melhor. A Quinta do “ Sepúlveda” rica, airosa e de grandes dimensões, dava muito trabalho, "jeiras" para a subsistência de algumas famílias.

Nesse tempo não existia na Aldeia, nem alcatrão nem calcetamentos No Inverno, pelas ruas cheias de lama e águas, espalhava-se palha ou folhas de carvalho, para melhor se passar, e essa mistura serviria, mais tarde, para estrume. Também não havia energia eléctrica, pelo que as candeias a petróleo, com sua torcidinha, faziam a felicidade dos da boa vista. Outra fonte de energia, a do carvão por exemplo, era feita directamente no monte. Primeiro arrancavam-se os “cepos” (toros, ou o que se lhe queira chamar), raiz da urze. Depois, cavava-se uma poça em circunferência com um diâmetro de um metro e a profundidade de trinta centímetros, onde se metia a urze. Chegava-se-lhe fogo e ficava a arder noite e dia, mais ou menos durante quarenta e oito horas. Quando o carvão estava em ponto, para que se apagasse lentamente, punham-se-lhe em cima bocados de terra com erva, cortados com uma enxada.
Regularmente, realizavam-se os "dias de concelho", ordenados pelo Presidente de Freguesia, para arranjos de caminhos, limpeza das poças de rega e o demais respeitante à comunidade.

Também não havia automóveis. As pessoas deslocavam-se a pé ou a cavalo e, para irem à cidade, apanhavam o comboio a carvão na estação de Rossas. No regresso de Bragança havia um túnel onde os putos costumavam fazer apostas, para ver quem tinha coragem de o percorrer; outras vezes, punham sebo e pregos nos carris, para que o vagaroso comboio não fosse capaz de subir a encosta próxima.

Nas noites rudes e bravias de Inverno, ia-se velar para casa do vizinho ou amigo, onde se contavam histórias, umas verdadeiras outras imaginárias, e as de “ficção científica”, que incluíam bruxas, lobos, ladrões etc. Em casa do meu avô paternal, pegava ele num cajado, com o qual jogava o” Rectemol “ indo de cabeça em cabeça, e só parava quando acabava a cantilena. Na da tia Aninhas, na Portela, podia-se ouvir até bem tarde, cantar desgarradas e fados, obra do Octávio das Cabanas, irmão da tia Ester, que tinha maravilhoso timbre de voz. O povo entretinha-se do modo que podia. Às vezes, junto das tascas, os homens mediam forças entre si. Contavam que o tio António Trocho levantava do chão, a braços, uma pedra redonda, junto da sua taberna, que pesaria por volta dos duzentos quilos. Eu vi o Ramiro dos Pereiros pegar em dois sacos de centeio, debaixo de cada braço, e transportá-los numa distância de duzentos metros.

Por estes tempos, costumavam visitar a Aldeia algumas "troupes" de circo mas, sobretudo, de teatro. Da minha lembrança foram representados A Rosa do Adro, o Amor de Perdição e o Zé do Telhado. As sessões realizavam-se no palheiro do tio João Santo, frente à casa do tio Jaime, e também no cabanal do tio Alfredo Guerra, junto da casa. A mocidade dos seus vinte e mais anos aterrorizava os mais pequenos, com o "bate-cu" (de onde veio a alcunha do Orlando, quando uma vez foi apanhado, e como do outro lado o rapaz era mais pequeno, então diziam que ele dava “pinotes”). Grande mocidade, em quantidade e qualidade! Pôncio, Ricarte, Víctor, Chico, Fernando, Zequinhas, Cândido, Corrécio, Frederico, Carlos e Duarte Chicheiro, Manuel e Américo Pereira, Mário Couceiro, Nuno e Manuel Caminha, Hermenegildo e Brotas, Manuel e Rafael e outros que não cito por me não lembrar, mas que davam vida e ser à nossa terra. Todos estes galafates se reuniam quando qualquer estranho, vindo das aldeias vizinhas, tentava namorar com moças da terra, fazendo-lhe pagar o vinho. Caso recusasse, era atirado para dentro de um tanque ou agredido. Pedir uma moça em casamento não era tarefa fácil, sobretudo se os seus familiares discordavam de tal casamento. Aliás, a maior parte dos casamentos realizavam-se por conveniência, sendo os pais a escolher e organizar tudo. Os que realmente se amavam, mas que infelizmente encontravam barreiras pelo caminho, aguardavam a maioridade para se casarem, mas eram desprezados pelo agregado familiar, sofrendo graves consequências afectivas e financeiras.

No mês de Setembro era a grande festa da Aldeia, cuja animação e entusiasmo se via retratada, mesmo, nos rostos mais pacatos e silenciosos. Dois ou três foguetes, (lançados pelo fogueteiro da Aldeia, se faz favor!) anunciavam o início das festividades, seguidos da Banda, (quase sempre a de Pinela) que, depois de dar a volta ao povoado, parava no largo do Prado debaixo dos famosos freixo e olmo. Os músicos já tinham patrões determinados para o almoço, esperando apenas pela hora da missa e procissão. As doceiras faziam o encanto dos mais jovens que se contentavam com umas amêndoas caseiras, doces económicos, ou uns rebuçaditos, porque o dinheiro também não abundava. Pela tarde, já findo o almoço melhorado, dançava-se ao toque do “auto-falante” saboreando os momentos felizes e harmoniosos dedicados a Nossa Senhora do Rosário.

10 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho [Braz]

Creio que já te disse - e repito -que és um exemplo para todas as outras pessoas que nos visitam e se acanham em contar o tanto que sabem.

Obrigada por esta partilha.

Já agora, aproveito para informar que, sob o título genérico de Terra Amada, o Tonho escreveu um longo texto que será publicado por partes. Esta foi apenas a primeira.

Obrigada, Tonho, e beijos

Augusta disse...

Depois de ler, saborear e reviver alguns dos momentos descritos,resta-me felicitar o Tonho do tio Arnaldo...e esperar por mais porque esta primeira parte fez-me crescer água na boca.
Beijos

Carlos disse...

Sim senhor !.. Esta e de se lhe tirar ochapeu . Pois eu sentime feliz , ao ler e recordar todos estes tempos vividos em terra a mada como dizes , desde a luta de toiros aos pregos na linha do tunel de aruf. Parabens Antonio Braz,se me permites deixo um abraco ao teu sobrinho Victor , se me permites o inesquecivel ca-ga-dou-ro .Abraços Carlos

Olímpia disse...

António,
Só quem muito ama a sua terra e as suas gentes poderá escrever dessa maneira tão saudosa e sentida.
Valorizaste a nossa terra e valorizaste-nos a nós.
Obrigada
Olímpia

Manuel Pereira disse...

António;Grande António creio que já foi tudo dito pela Fátima, Augusta, Olimpia e Carlos, eu só lhe acrescento que no final do texto já tinha lágrimas nos olhos, foi tão bom recordar tanta coisa que o tempo já havia diluído e só um narrador como tu consegue trazer-nos de volta, com o stresse da vida e o barburinho da cidade até nos esquecemos que ainda existem paraísos como os que acabas de descrever. Obrigado pelo bem que nos dás com as tuas lembranças e nos manteres vivos desse tempo de crianças.
Auqele abraço terno e afectivo Manuel Pereira

Anónimo disse...

Tonho,

Obrigado por estas recordações, que grande memória ainda tens.

Não pares de escrever porque recordar é viver.

Um abraço e até um dia.

Orlando Martins

Lurdes disse...

Muito bem António.
Já dizia Tolstoi: "Só seremos universais se conhecermos e amarmos nossa aldeia."
Um beijo Lurdes

Américo Amadeu Pereira disse...

ANTÓNIO B. PEREIRA, os meus parabéns pelo texto (lª parte como
está indicado pela Fátima). São
descrições que prendem a atenção
de quem não esquece o lugar onde
nasceu e viveu a sua infância. Os
pormenores aplicados mexem com os
setimentos das pessoas que, como eu, estou sempre à espera de novidades da terra.
ANTÓNIO, eu tenho especiais recordações do teu pai, não só
porque era um homem que também
media forças ao ferro, à relha e
à pedra, para quantos assistiam
no largo do Prado, mas também
poque era afilhado do meu pai, e
como tal frequentava a nossa casa
para ajudar em várias actividades
principalmente na sega dos fenos.
Todos estes pormenores fazem a
união das pessoas e daí vem à
memória toda a comunidade de
Rebordainhos, graças a ti, entre
outros, que têm a coragem de
passar para o papel tudo quanto
se recordam, e assim perpetuar as
memórias do que foi e continuará
a ser a comunidade de Rebordainhos.
ANTÓNIO, o meu bem hajas pelos
moomentos felizes que nos dás.
Um abraço.
Américo

António B. Pereira disse...

Sr. Américo:as suas simpáticas palavras,selecionadas com tanta minuciosidade,sempre presente e em primeiro lugar, para comentar, incentivar, encorajar etc.é a garantia formal de uma pessoa de bom senso, de quem possui valores fora do normal, enfim.. das pessoas que este blog. necessita.
quanto ao seu pai e o meu, paz para a alma dos dois, apesar de serem padrinho e afilhado, tenho informações de que ainda eram familiares afastados. A sua família é das mais respeitadas e amadas da nossa terra. Um grande Abraço.
Aproveito para agradecer os elogios,à Fátima em especial, pela coordenação e orientação, pena ser um texto tão grande que já não deu para acrescentar os jogos tradicionais, mas sugiro que mais tarde se faça uma lista e um concurso de como eram jogados, acrescentando os de mulheres.
Como estou a ser longo, :obrigsdo Augusta, Olimpia,Carlos, Manuel e o meu pinote preferido, e Lurdesum muito obrigado especial. Abraços: António B. Pereira

Manuel Pereira disse...

António; Não és tu que tens que nos agradecer nada porque nós nada te demos, em cotrapartida tu tens dado tanto que o mínimo que podemos fazer é não só agradecer-te como incentivar-te para que continues a deleitarnos com as tuas excelentes memórias.
Da minha parte um grande abraço com o afecto que tanto mereces. Manuel