Ao passar a ribeirinha,
Onde a água sobe e desce,
Dei a mão ao meu amor
Não quis que ninguém soubesse!
E aqui, aqui, aqui,
Aqui é que eu hei-de estar,
Ao pé do meu amor
Toda a noite a namorar.
Toda a noite a namorar,
Toda a noite a dar paleio,
É um regalo andar
....................................................................Com meu amor ao passeio.
....................................................................Com meu amor ao passeio,
....................................................................Com meu amor passear,
....................................................................E aqui, aqui, aqui,
....................................................................Aqui é que eu hei-de estar.
É tão bonito este poema, tão recheado de simbolismo e tão musical devido ao predomínio dos sons vocálicos!
Em alguns poemas há certos pormenores que nos cativam mais. Neste, a rima da primeira quadra enche-me as medidas. Literariamente chama-se rima pobre porque faz rimar duas palavras da mesma classe gramatical – dois verbos, no caso –, mas fazer rimar o presente do Indicativo com o imperfeito do Conjuntivo é de mestre, chamem-lhe lá o que quiserem!
Ao Passar a Ribeirinha é de um lirismo perfeito, embora ingénuo, que se manifesta mais por aquilo que sugere do que por aquilo que diz expressamente. É um discurso directo mas, objectivamente, não sabemos quem fala, se rapaz, se rapariga. Sabemos, no entanto, a quem se refere: a um casal de namorados.
O simbolismo do poema remete para a Idade Média, tempo em que quem cantava sabia o significado exacto daquilo que dizia e, por isso mesmo, não foi por acaso que A Ribeirinha chegou aos nossos dias como um jogo de roda dançado na Páscoa. Na Páscoa, o povo podia folgar porque o calendário litúrgico proibia o trabalho e a nobreza recolhia as armas porque o código da cavalaria assim o impunha. Não havia tempo mais belo e que tanto convidasse aos amores, nisso se igualando os senhores com quem o não era.
Voltemos ao poema. A rapariga (tenho para mim que é a moça quem fala), apesar de ocultar o namoro (“não quis que ninguém soubesse”), mostra-se firme na decisão de amar: “aqui, aqui, aqui, aqui é que eu hei-de estar…”. Ela está na ribeira e, embora não mencione as margens, elas estão subentendidas (“ao passar a ribeirinha”). Os códigos sociais medievais ensinam-nos que a água, podendo simbolizar o feminino, representa também a fecundidade e o rio (a ribeira, no caso) pode ser entendida como uma metáfora para o devir humano. Será um devir incerto porque a água “sobe e desce”, ou será que a rapariga vai disposta a tudo? Ou ainda: a rapariga ia disposta a tudo e tudo aconteceu? Afinal, ela fala no passado (enquanto passava a ribeira deu a mão ao seu amor)! As margens, significando a passagem de um estado para outro, é isso que sugerem, e não será por acaso que tudo se passa à noite ("toda a noite a namorar").
A coreografia do jogo de roda reforça esse entendimento: os pares, depois de uns passos em círculo, abrem a roda. Os da frente desenham arquinhos com os braços e os de trás vão passando por entre eles, tal como os noivos passavam por entre um arquinho florido, colocado à saída da igreja, no dia do casamento. Quem se não lembra de ver?
Curiosamente, a poesia medieval tem uma designação própria para os poemas que falam da manhã – as albas – mas não achou nenhum nome especial para aqueles que aludem à noite, como este nosso, que, sendo nocturno, é intensamente luminoso.
___________
Como o Tonho da tia Lídia deixou claro no comentário, a rima a que me refiro não é uma rima pobre é, antes, rima rara ou preciosa, por ser difícil de alcançar. Obrigada, Tonho (embora só eu me responsabilize pela nova classificação)!
Onde a água sobe e desce,
Dei a mão ao meu amor
Não quis que ninguém soubesse!
E aqui, aqui, aqui,
Aqui é que eu hei-de estar,
Ao pé do meu amor
Toda a noite a namorar.
Toda a noite a namorar,
Toda a noite a dar paleio,
É um regalo andar
....................................................................Com meu amor ao passeio.
....................................................................Com meu amor ao passeio,
....................................................................Com meu amor passear,
....................................................................E aqui, aqui, aqui,
....................................................................Aqui é que eu hei-de estar.
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É tão bonito este poema, tão recheado de simbolismo e tão musical devido ao predomínio dos sons vocálicos!
Em alguns poemas há certos pormenores que nos cativam mais. Neste, a rima da primeira quadra enche-me as medidas. Literariamente chama-se rima pobre porque faz rimar duas palavras da mesma classe gramatical – dois verbos, no caso –, mas fazer rimar o presente do Indicativo com o imperfeito do Conjuntivo é de mestre, chamem-lhe lá o que quiserem!
Ao Passar a Ribeirinha é de um lirismo perfeito, embora ingénuo, que se manifesta mais por aquilo que sugere do que por aquilo que diz expressamente. É um discurso directo mas, objectivamente, não sabemos quem fala, se rapaz, se rapariga. Sabemos, no entanto, a quem se refere: a um casal de namorados.
O simbolismo do poema remete para a Idade Média, tempo em que quem cantava sabia o significado exacto daquilo que dizia e, por isso mesmo, não foi por acaso que A Ribeirinha chegou aos nossos dias como um jogo de roda dançado na Páscoa. Na Páscoa, o povo podia folgar porque o calendário litúrgico proibia o trabalho e a nobreza recolhia as armas porque o código da cavalaria assim o impunha. Não havia tempo mais belo e que tanto convidasse aos amores, nisso se igualando os senhores com quem o não era.
Voltemos ao poema. A rapariga (tenho para mim que é a moça quem fala), apesar de ocultar o namoro (“não quis que ninguém soubesse”), mostra-se firme na decisão de amar: “aqui, aqui, aqui, aqui é que eu hei-de estar…”. Ela está na ribeira e, embora não mencione as margens, elas estão subentendidas (“ao passar a ribeirinha”). Os códigos sociais medievais ensinam-nos que a água, podendo simbolizar o feminino, representa também a fecundidade e o rio (a ribeira, no caso) pode ser entendida como uma metáfora para o devir humano. Será um devir incerto porque a água “sobe e desce”, ou será que a rapariga vai disposta a tudo? Ou ainda: a rapariga ia disposta a tudo e tudo aconteceu? Afinal, ela fala no passado (enquanto passava a ribeira deu a mão ao seu amor)! As margens, significando a passagem de um estado para outro, é isso que sugerem, e não será por acaso que tudo se passa à noite ("toda a noite a namorar").
A coreografia do jogo de roda reforça esse entendimento: os pares, depois de uns passos em círculo, abrem a roda. Os da frente desenham arquinhos com os braços e os de trás vão passando por entre eles, tal como os noivos passavam por entre um arquinho florido, colocado à saída da igreja, no dia do casamento. Quem se não lembra de ver?
Curiosamente, a poesia medieval tem uma designação própria para os poemas que falam da manhã – as albas – mas não achou nenhum nome especial para aqueles que aludem à noite, como este nosso, que, sendo nocturno, é intensamente luminoso.
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Como o Tonho da tia Lídia deixou claro no comentário, a rima a que me refiro não é uma rima pobre é, antes, rima rara ou preciosa, por ser difícil de alcançar. Obrigada, Tonho (embora só eu me responsabilize pela nova classificação)!
13 comentários:
FÁTIMA, adorei o seu poema e todo o
seu conteúdo com a sábia ilustração
que acaba de lhe conferir. O nosso
poema que por altura da Páscoa era
cantado com tanto entusiasmo com um
brilho nos olhos de todos os pares
que bailavam e toda a assistência.
Obrigado por me ter proporcionado
reviver momentos tão felizes.
Um beijo
Américo
Fátima
Sabedoria, sensibilidade e muita poesia na explicação tão terna que aqui nos deixas.
Fizeste reviver momentos de alegria e felicidade dos tempos em que a aldeia em peso se juntava na eira para festejarmos a Páscoa. Bons tempos!
Adorei este "ao passar a ribeirinha", obrigada Fátima.
Beijinhos
Céu
Sr. Américo
Referiu muito bem: o brilho nos olhos de quem dançava e de quem assistia à dança. Aqueles dias de Páscoa eram uma alegria única porque congregavam a mocidade que dançava com os mais velhos (que já tinham dançado as mesmas danças no seu tempo) e também com os mais pequenos que iam aprendendo, em rodas prórias, enquanto imitavam os maiores.
Beijos
Céu
Obrigada eu!
Beijos
Penso que esta quadra também faz parte do poema:
Ao passar a ribeirinha
Pus o pé molhei a meia,
Não casei na minha terra
Fui casar em terra alheia.
Bjs
Olá, Fátima:
Ainda bem que tiveste a feliz ideia da recolha desses cantares da nossa terra. Na minha meninice eu sempre associei essa Ribeirinha da cantiga à Ribeirinha propriamente dita, ou seja aquela que nasce (talvez) na Fonte do Espinheiro e vai, quando a canícula a deixa, por ali abaixo, passa pela Fonte da Vila, desce à Quinta do Sepúlveda e por aí fora.
Em Rebordainhos, ainda que bastante pobre de águas, porque está muito alto, nascem três ribeiras: esta, a da cantiga(?), a dos Pereiros, que nasce no Blagoto (Valagoto?) e a da fotografia, que nasce no Pórto e é a Ribeira propriamente dita.
Claro que isto são opiniões...
Depois fizeste uma linda análise desta neta das Cantigas de Amigo medievais (decerto cantiga feminina pela discrição e pudor apaixonado) tão entranhadas na poética popular.
Já agora uma outra opinião: aquela rima que tanto te encanta, (e com razão) desce/soubesse, não é propriamente uma rima pobre: essas são as fáceis de encontrar, verbos no infinito ou particípio passado,(o que não é o caso) nomes terminados em ão. A definição dos manuais para rima pobre peca por simplista. A propósito há um soneto do Pessoa (cf. "Soneto já antigo") em que ele faz rimar duas formas verbais - hás-de / irás de, que é das coisas mais impressionantes que já vi.
Adeus, que a conversa já vai longa e desculpa a impertinência das minhas asserçõe, mas é para despertar o contraditório.
Bjs
António
Senhor anónimo:
Peço desculpa por discordar da sua opinião, mas penso que essa quadra não pertence à cantiga em questão, nem pela melodia que a acompanha(va), nem sequer pela métrica. De facto, a quadra que cita e a cantiga a que pertence e se canta por todo o Portugal, está em correcta redondilha maior; as estrofes da cantiga de Rebordainhos, para melhor ou para pior, apresentam uma métrica irregular (redondilha ora maior ora menor), e a música que a acompanhava nos ditos bailes de roda das férias da Páscoa era totalmente outra.
Com toda a consideração
António
Anónimo
Obrigada pelo interesse, mas o Tonho tem razão: essa quadra é de uma cantiga que aprendi como sendo alentejana, mas que já vi apresentada como sendo açoriana.
Beijos
Tonho
Muito obrigada pelas achegas com que concordo, tendo em conta as minhas reminiscências de infância porque, também eu, fazia a associação da cantiga com a Ribeirinha propriamente dita.
Ao pensar na cantiga, no entanto, surgiram-me algumas dúvidas e uma necessidade. A necessidade, está bom de ver, era a de ilustrar o texto, e mostrar a Ribeirinha sem ribeira à vista não ficava lá muito bem.
Agora as dúvidas: nascidas, seguramente, da minha ignorância, vêm do facto de não conseguir imaginar em que lugar poderia ter decorrido a acção: a ribeirinha desce canada abaixo mas, na canada, não vislumbro onde ela pudesse ser transposta. Se bem me lembro da meninice, tínhamos que caminhar rente aos muros, sobre as pedras, para não nos molharmos.Quanto à Ribeirinha propriamente dita, quando a água é abundante, tudo aquilo se transforma num lodaçal nada propício aos amores. Onde, então, situar os acontecimentos? Serei eu, certamente, que não estou a ver bem todo o percurso da ribeirinha.
Quanto à rima, muito obrigada pela correcção de um erro que nasceu da preguiça de ir consultar os cartapácios. Não foi difícil encontrar o Lindley Cintra a dar-te razão e a permitir-me o atrevimento de a classificar, agora, como "rara ou preciosa" porque, diz ele: Denominam-se RARAS ou PRECIOSAS as rimas excepcionais, difíceis de encontrar. Tal como aquela de Pessoa que indicaste!
Vou já fazer acrescentar um PS de correcção!
Hoje foi dia de consultas (Deo gratias!) e encontro: Valagoto: vala pequena; valeta.
Valagote: vale pequeno, pouco profundo, mas situado, no geral, a grande altitude. (J.P.Machado, Grande Dicionário da L. Portuguesa)
Ou seja: pela evolução, Blagoto parece vir da primeira, mas pelo significado mais parece vir da segunda.
Que tal o meu contributo para o contraditório?
Beijos
A meter a colher onde não fui chamado:
Essa mais um pouco acima, eu ouvi-a uma única vez na voz do Duarte "Chicheiro", mas deste jeito:
Ao passar na ribeirinha
Pus o pé molhei a meia
Não casei em terra minha
Fui casar em terra alheia
E lembro muito bem porque isso ele cantou se referindo a mim, que na época namorava com alguém que não era de Rebordainhos.
Eumesmo
Parabéns, Fátima.
Aqui está uma iniciativa bem interessante.
Analisaste o texto com sensibilidade e sabedoria.
Tb eu imaginava que a canção dizia respeito à "Ribeirinha" canada. Ao mesmo tempo, também não conseguia imaginar a água a "subir" e a "descer". Então,por exclusão de partes, só poderia ser uma ribeira.
Quanto à quadra sugerida pelo Sr. Anónimo,também eu tenho a certeza de que ela não é parte integrante da cantiga.Ela faz parte, isso sim, duma canção alentejana.
Provavelmente em determinadas ocasiões, alguém a tivesse adapatado à situação.
Tb tenho a certeza de que, se a tentarem cantar, não lhes vai soar bem. Eu, quando o tentei fazer, imediatamente cantarolei a música alentejana .
Bjos
Olímpia
EuMesmo
Quem quer conversas privadas tem-nas em recato. Assim sendo, meta todas as colheradas que quiser porque é sempre para cá chamado!
Conforme a Olímpia lhe disse e o tonho e eu própria já tínhamos dito ao anónimo lá de cima, essa quadra é de uma cantiga que (penso) é alentejana, com melodia completamente diferente da nossa. Da alentejana ainda conheço as seguintes quadras:
Fui casar em terra alheia
mui distante dos meus pais;
Ao passar a ribeirinha,
Minha vida são só ais!
Fui casar em terra alheia,
Minha mãe não me ralhou;
Minha mãe já não se lembra
Do tempo que já passou!
Do tempo que já passou,
Do tempo que já lá vai,
Minha mãe já não se lembra
Quando namorou meu pai!
Como vê, nada tem a ver com a nossa ribeirinha.
Beijos
Olímpia
Parece, então, que tínhamos as mesmas dúvidas!
Beijos
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