sábado, 2 de outubro de 2010

MEMÓRIAS

Vinha num dos velhos livros de leitura (3.ª classe?) e foi-me dita, de cor e de cabo a rabo, pelo tio Manuel:



........................................Em certa aldeia indigente,
........................................isto em tempos já passados,
........................................viviam muito santamente
........................................dois velhinhos bem casados.

........................................A mulher dizia ao companheiro,
........................................juntos os dois:
........................................- Se tu morreres primeiro,
........................................morrerei logo eu depois!

........................................E num coro afectuoso,
........................................ambos diziam ali:
........................................- Eu só peço ao Deus bondoso
........................................que me leve antes de ti!

........................................Nisto, uma pancada forte
........................................na porta se fez ouvir.
........................................Perguntam: Quem é? - A morte!
........................................Venham abrir!

........................................- Diacho, diz o marido,
........................................como há-de isto agora ser?
........................................Tenho aqui um pé dorido...
........................................Vai lá tu abrir, mulher!

........................................Mas ela logo se queixa:
........................................- Valha-me Nosso Senhor,
........................................este flato não me deixa...
........................................Vai lá tu, faz o favor!

........................................E a morte, enfadada,
........................................investiu pelo postigo:
........................................levou os dois velhos consigo!

7 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Por telefone, ou sempre que lhe faço uma visita, o meu tio Manuel vai-me agraciando com as dádivas da sua memória. Bem-haja!

Joaquina Salgueiro S.C. disse...

Fátima:
Boa memória a do seu tio. Também tenho na lembrança algo de semelhante que a minha avó dizia.Quanto ao texto o problema foi quando a morte chegou !!Ah!,Ah!...mas ele mostra como a hipocrisia já grassava por aí.
Um abraço
Quina

Augusta disse...

vinha no livro da 3ª? Só se no do tio.
Ou então já não me lembro, o que quer dizer que o tio tem melhor memória que eu!
Bolas que amor tinham um ao outro! Abra a porta quem estiver com pressa! Eu por mim, ainda quero andar cá mais uns aninhos...
Beijos, muito especialmente ao tio Manuel

Fátima Pereira Stocker disse...

Quina

Não creio que se trate de hipocrisia. O amor é verdadeiro e tenho a certeza de que aqueles dois velhinhos sentem, mesmo, que não são capazes de viver um sem o outro.

A fábula, porém, lembra-nos a nossa condição de seres vivos e para um ser vivo o primeiro dos valores, aquele que a tudo se sobrepõe, é a própria vida. Só os santos são capazes de pôr a vida dos outros à frente da sua.

Um abraço

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

O tio Manuel deve ter feito a escola no início dos anos 30, numa altura em que, embora existindo livro único (escolhido pelas escolas por entre uma lista aprovada pelo governo, a partir de 1933), o regime salazarista ainda não estava bem firmado. O livro da 3.ª classe que nós conhecemos, com a sua ideologia pura e dura, data, apenas, de 1951 (o da 1.ª é de 1941 e o da 2.ª de 1944). Estes livros seriam revistos a partir dos anos 60, com a mudança de programas (1967 o da 1.ª; 72 o da 2.ª e 73 o da 3.ª). Como vês, é natural que o livro de leitura do tio e dos nossos pais seja diferente do nosso. Aliás, o meu já foi diferente do teu, e lembro-me bem das discussões enervadas das pessoas que se escandalizavam por não poderem aproveitar, para os mais novos, os livros dos filhos mais velhos.

Beijos

Joaquina Salgueiro S.C. disse...

Fátima:
Curvo-me face à sua sapiência .De facto é muito mais generosa e humana que eu ...Estarei a ficar amarga ? Mas não devia eu que até conheci casais de velhinhos que tanto se amaram em vida e para além da partida de um deles , como sucedeu com os meus próprios pais .Eles que me perdoem ...
Grata pela sua chamada de atenção que me vai também meditar sobre o que me anda a acontecer .
Um abraço
Quina

Fátima Pereira Stocker disse...

Quina

A minha é, apenas, mais uma forma de ver as coisas e nem sei ela estaria nas intenções do autor.

Ao ler a fábula lembrei-me de uma frase que se diz muito em Rebordaínhos (não sei se no resto do País): "morrer por morrer, morra o meu pai, que é mais velho!" Ora, não creio que com ela se pretenda demonstrar a falta de afecto dos filhos pelos pais.

Um abraço