quinta-feira, 4 de novembro de 2010

BAIRRO DE À CHAVE


por

ANTÓNIO BRAZ PEREIRA


Sempre que nos ocorrem recordações dos tempos vividos, e à medida que o tempo vai passando (veloz a partir dos cinquenta anos, paciente entre os vinte e os quarenta, lento, muito lento, até chegarmos aos dezoito anos), elas actuam em nós de modo contraditório: ora assumimos conduta reticente à divulgação de um passado, feliz ou então amargurado, ora falamos orgulhosamente das coisas aprazíveis, enquanto tentamos, com manto de veludo, ocultar ou ignorar outras que a realidade dos tempos nos impôs, e que actualmente nos envergonham tendencialmente.

Conheci uma aldeia, a minha Aldeia, onde nasci e vivi e sempre carreguei no meu coração pelos muitos caminhos percorridos. Narrações diversas, divergentes, dissociações, tornaram-se lentamente, profundamente, uma realidade fictícia, que a imaginação pessoal e fértil arrasta pouco a pouco, como um pesado sentimento de culpa, de tolerância comprimida, misturando-se um remorso, saliência de vaidade orgulhosa, da completa realização imortalizadora dos sonhos.

Quando a minha avó (a quem chamávamos mãe Lana) faleceu, teria eu seis ou sete anos. Nessa altura viemos morar para sua casa, situada no bairro de baixo, na à Chave. Era a terceira casita, à esquerda de quem entra em Rebordainhos, vindo de Rossas. Por essa altura a Igreja tinha caído e, por causa das obras necessárias, procedeu-se à transferência, para o Cemitério, dos restos mortais das pessoas aí sepultadas sob o soalho de madeira apodrecida. Também o Cemitério fica no bairro de à Chave.

A primeira casa, caiada e baixa, com umas escadinhas de cimento transversais à rua e uma pequenina varanda que dava acesso à porta da cozinha, era a do tio Benjamim. Uma janelita que, voltada para a rua principal, deixava que a luz penetrasse na sala através dos vidros sujos, era o seu único luxo. Esta família, a quem a má sorte marcou com uma doença visual hereditária, teve, ainda, a desdita de ver um dos filhos, que tinha a minha idade, ser vítima de meningite que lhe trouxe gravíssimas sequelas. O José Augusto viria a falecer com uns vinte e poucos anos, por acidente, numa agueira de um lameiro, lá para os lados da Teixeira.

Montados num burro velho, com uma redução visual de 80%, o tio Benjamim, a tia Elvira e o Zé Augusto lá iam todos os dias, não importa se chovia e nevava ou se fazia sol, levar e trazer o correio, pelo caminho acidentado que era o carreirão de Arufe, num percurso de 4km até à Estação de Rossas. Abrigavam-se do frio e da chuva, ou esperavam a chegada da camioneta que trazia o correio, na tasca do “azeiteiro” junto à estrada nacional, tasca quase sempre cheia de homens jogando às cartas e bebendo uns copitos de vinho tinto. Depois da espera voltavam para Rebordaínhos, ensopados em água ou neve, gelados pelo vento forte e cortante que lhes dificultava o passo e tornava desgastante o caminho, exigindo tudo isso uma coragem extrema e um levar das forças ao limite. Cristão muito praticante, o tio Benjamim, quando em mortórios ou mesas de reza, rezava pelos santos, alguns com nomes um tanto estrambólicos, e até houve uma vez em que, não se lembrando de mais ninguém por quem rezar… rezou pelo “parreco”!

Encostada à do tio Benjamim (com parede meeira), de construção antiga, de pedra rija faseada para o alinhamento e telhado de caleira, ficava outra casa. Uma porta grande e velha dava acesso à cozinha térrea, e na outra extremidade, outra porta com dois degraus para se entrar na grande sala, pelo menos em comprimento, onde se realizaram numerosos bailes e outras reuniões. Essa casa, após a venda, era a casa do Fernando e família, ciganos muito estimados pela população, educados e trabalhadores cujos dois filhos eram amigos da rapaziada com quem conviviam sem complexos nem restrições.

A casa da “mãe-Lana” – a casa de meus pais – também era geminada com outra, que viria a ser doada às duas filhas menores da Assunção, em compensação pela morte do pai no trágico acidente ocorrido na curva dos roubões. Tinha umas escaditas de cantaria (que serviam as duas casas) e uma varanda onde era costume abrigar a lenha da chuva no Inverno.

Neste bairro bem povoado, havia uma encosta enlameada que, de curva tão apertada, foi sempre o cabo dos trabalhos para quem a queria subir com carro de bois ou a motor. Quantas vezes foi necessário rebocar os que ali chegavam e que se ficavam pelo meio da encosta, expostos aos olhares curiosos do Sr. Joaquim “Malino” do Emídio “Corrécio” e do tio “Cachulas” que espreitavam através de uma guarita feita na cantaria (talvez para esse efeito, já que a entrada da casa era por cima, assim como a do tio Carlos Sapateiro), ou nas escadas do tio César!

No pátio do tio Aníbal “Fuseiro”, dividido com outros herdeiros (tia Aninhas e D. Lurdes), raramente nos era permitido brincar, mas, logo por cima da encosta medonha, havia um pequeno largo ocupado em parte pelo sequeiro do tio Francisco “Moreno” onde nos juntávamos para dar ao tagarelo com seus numerosos filhos, ocupando o tempo com jogos tradicionais: Rou-Rou, pedrisca, bilharda, palmada, cepo, roça, pingue, pião, fito, etc. Outros, por precisarem de mais espaço, jogavam-se no Adro da Igreja, cerca de 100m mais adiante, ou na eira frente às casas da tia Gaudência e do tio Júlio “Jarrete”. Do outro lado da rua morava o Tio João “Picarete” com a família. As suas escadas e varandinha de granito, paralelas à rua, deixavam que se subisse por um lado e descesse pelo outro e eram um brinquedo para os garotos que, quando por ali passavam, se divertiam a subir e descer, mas que fugiam apressados assim que, atrás deles, surgia a dona da casa, danada e ameaçadora, com uma vassoura na mão, a dar valente reprimenda por lhe sujarem as escaleiras. Várias vezes entrei nesta casa e me quedei tempos infindos a ouvir o tio João contar histórias da França, da linguagem francesa que tanto amava, escapando-se-lhe uma frase para aqui, outra para ali, mas sobretudo da Guerra de 1914 na qual participara activa e orgulhosamente. Os seus dois filhos nascidos em França guardaram sempre o sotaque. Um deles, o Joaquim, tinha por nomeada o “Malino”, alcunha que lhe assentava como uma luva, como se pode confirmar pela história que se segue:

Certo dia, estava um grupo de rapazes na tasca a conversar sobre as festas e bailes que estava a haver nas aldeias vizinhas. Naquele tempo, todos nos lembramos, fora os próprios pés, quase ninguém tinha outro meio de transporte. Mas o “Malino” tinha já o seu automóvel e, não querendo fazer o caminho a pé, os mais atrevidos arriscaram-se a pedir-lhe:

– Podia-nos levar-nos à festa?
Olhou para eles de soslaio e, sem reflectir, respondeu:
– Levo! Claro que levo!!! Ide-vos lá a vestir…

Os moços não se fizeram rogados. Correram para suas casas, lavaram-se e assearam-se segundo as possibilidades de cada um, enquanto na tasca os mais velhos, vendo que o “Malino” continuava ali descontraído e com roupa de trabalho, suspeitando da malandrice, perguntaram:

– Tu vais assim, rapaz?...
Com um sorriso malicioso, palavras arrastadas e carregadas no rrrr, respondeu:
– Calma ainda não chegarrram…
Dizendo isto, saiu porta fora em direcção à sua residência. Os rapazes voltaram momentos depois e, não o vendo, tomaram a mesma direcção. Chegados à porta da sua casa, como não ouviam qualquer rumor, resolveram esperar. A espera foi longa e, como já começavam a desesperar, bateram à porta. De dentro respondeu uma voz masculina:

– ide-vos à cama que eu já cá estou!

O Emídio “Corrécio” era um dos residentes de Rebordainhos a quem eu, como garoto, mais temia. Também os cães e gatos o conheciam à légua, pelas suas atraganices, bem como o Cesário, seu padrasto, que era pastor dos fidalgos da Quinta. Com o Cesário, o “Corrécio” tem uma história que ficou gravada nos anais da terra. Certo dia, a mãe mandou-o levar-lhe o almoço. O Cesário, tendo já comido as magras batatas acompanhadas de umas cangas e peles de bacalhau, aprestava-se para atacar a malga do caldo de couves, quentinho e saboroso, que a “Magrila”, sua esposa, sempre fazia. Mexia o caldo com vagar e, à medida que ia mexendo, ia ficando perplexo com a cor avermelhada que via. Não tirava os olhos do caldo, mas o seu rosto ia ficando tenso e o gesto trémulo. Decidiu-se pela pergunta:

– A tua mãe cozeu chouriça no caldo?
– Cozeu, cozeu! Respondeu o rapaz, enquanto se ia afastando, não fosse o padrasto dar pela marosca.

O Cesário que, enquanto perguntava, levou a colher ao fundo da malga, viu aparecer à tona uma grande e gorda vaca-loura, como se fosse um camarão cozido.

– Ah ladrão que me querias matar! …
O moço não quis palha nem grão, desatou a correr e fugiu. O casal já dormia quando, muito tarde, o Corrécio se atreveu a entrar em casa.

Continua...

18 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Nota de edição

O Tonho, além de escrever o texto, deu-se ao trabalho, que muito lhe agradeço, de recolher e tirar fotografias dos lugares e pessoas referidos. Os lugares ilustram esta primeira parte. As imagens das pessoas reservei-as para a segunda, que publicarei proximamente.

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho [Braz]

Comoveste-me profundamente com este teu belíssimo texto, pelas palavras que usaste e porque me recordaste de pessoas cuja memória conservo com muito carinho. Todas merecem bem a homenagem que lhes prestas e, por causa daquilo que escreveste, o seu nome será perpetuado. Bem-hajas por elas e pelo tanto que acrescentaste a cada um de nós.

Este teu regresso ao nosso convívio, enquanto colaborador do blog, foi particularmente feliz. Deus te pague.

Beijos

Olímpia disse...

Tonho:
É com um enorme prazer que leio os teus textos.Desde já agradeço o teu regresso.
A bonita descrição que tu fazes deste bairro e as histórias que tu narras,descrevem bem uma determinada época.
Agradeço-te por nos dares o privilégio de partilhares connosco.

Bjos

Olímpia

Anónimo disse...

Para ti António!... Muitos e muitos parabéns...Linda memoria que tu tens!... Bjs

mena disse...

Parati António!... Muitos e muitos parabéns...Linda memoria que tu tens!... Bjs
Mena

Baptista disse...

Parabéns, Tonho.
Também eu fico muito feliz de ler e relembrar essas histórias daquela época. Algumas delas ainda pairam na minha lembrança, outras eu não conhecia.
Continua nos deliciando com tuas narrativas tão antigas, mas sempre tão atuais. Pena que hoje já não tem mais.
Um grande abraço
César

Augusta disse...

Tonho:
E é com água na boca que fico à espera da continuação desta tua bela narrativa. Obrigada por nos avivares a memória, ou então dares-nos a conhecer histórias que desconhecíamos até agora. Para mim foi novidade a meningite do Zé Augusto. Eu imaginava que era oligofrénico. Enfim... Desculpa, mas foi de quem mais gostei de ler. Tens de escrever mais acerca dele e das "atraguinices" que nos pregava a todos.
Mais uma vez, obrigada e, acredita que fiquei boquiaberta! Ainda tens tempo para escrever, apesar das dores resultantes da apanha da castanha?
Beijos

antonio disse...

Augusta: é realmente uma ideia desenvolver as atraganices do Zé Augusto em termos humoristícos, pois não me sentiria bem se as pesoas julgassem como "moquerie"
Quanto às castanhas, já lhe roguei mais pragas que não imaginas, e a minha esposa trocista faz o papagaio...Pobres das minhas costas!!! felismente ta quase....
Olha estive a conversar com o Carlos Agueda, e ele tem várias miniatura de malhadeiras, trctor do Nelseira e carro do burro e macho da ti Emília, "ferreira" é preciso arranjarmos um texto correspondente e trazer estas maravilhas para o Blog. era para mandar um e-mail à Fátima, mas diz-lhe tu.. A casa está a tomar o aspecto BELÌSSIMO1 beijos e obrigado

Anónimo disse...

É embebecida de vaidade, de carinho e admiração que leio os textos deste meu tio poeta/escrtor, que só não é uma pessoa mais importante, porque o seu destino assim não quis.É incrível a sua memória e a sua capacidade de passar para a escrita episódios da sua dura infância, mas que ele relembra com tanto carinho e que mais parencem serem retirados de um conto de Miguel Torga.Sou uma leitora atenta do blog, mas estous sempre à espera dos textos do meu querido tio. que põe sempre tanto sentimento quando se trata de falar da sua terra. tenho muito orgulho de ti.

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

Verdade, verdadinha, o Tonho já tinha escrito este texto há uns tempos. Foi culpa minha reservar a sua publicação para agora. No entanto, como poderás ver pelo seu final, quadra muito bem na época.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Porque li aqui, a Augusta já não precisa de me dizer nada.

Como te deves recordar, já publiquei imagens do trabalho do Carlos, a ilustrar outro escrito teu, precisamente.

Será com muito gosto que publicarei outros trabalho dele. O Carlos, tal como fez da primeira vez, pode mandar as fotografias directamente para mim, ou proceder do modo como entender melhor. Para mim está tudo bem e agradeço sempre de todo o coração.

Com que então, as castenhas trazem-te derreado? Mas sabem bem!!!

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Anónima sobrinha do Tonho

Calculo que sejas ou a Sónia ou a Cecília

O teu tio merece bem o orgulho que tens dele. Permite-me, no entanto, que discorde de ti: pessoa importante é pessoa de mérito e, nesse caso, o Tonho tem-no em abundância. Tal como o teu pai de quem, confesso, espero vir a receber contributos. Podias dar uma ajudazinha a convencê-lo!

Beijos

Anónimo disse...

De facto estes meus tios têm muito mérito. Mas não foram nem a Sónia nem a Cecília que enviaram a mensagem, embora de certeza elas pensem como eu relativamente ao António. Sou a Lena e fico à espera do próximo trabalho dele.
Parabéns pelo blog, ao visitá-lo sempre dá para matar saudades.

Fátima Pereira Stocker disse...

Lena

Sê bem-vinda a esta casa e desculpa-me a pressa com que tirei conclusões.

Não te sei dizer quando publicarei a segunda parte do texto, porque estou à espera de umas coisinhas para a ilustração, mas será muito em breve.

Obrigada pelas tuas palavras.

Beijos para ti e para a tua mãe

Lurdes disse...

António

Muitos parabéns lindo texto gostei muito de ler e fico à espera do próximo, para me deliciar novamente... lembro-me vagamente do Zé Augusto e como a Augusta também eu gostava que partilhasses connosco mais recordações que tenhas dele e de outras aventuras na nossa aldeia.
Beijos
Lurdes

antonio disse...

PARA TODOS OS COMENTADORES:agradeço a todos, do coração, as vossas amáveis e carinhosas palavras, que considero estimulantes e até compensatórias, para quem benévolamente escreve,memórias ou ficção,colabora de qualquer forma que seja,com esforços e dedicação, participa na manutenção desenvolvimento do Blog.,utilizando todos os meios necessários para agradar, levando até vós,um pouco de nostalgía misturada com agradáveis recordações,em detrimento, por vezes, da sua vida pessoal.Um bem-haja às irmãs incansáveis, especialmente para a Fátima redactora dos meus rascunhos, e também para os que me contactaram pessoalmente, muito grato.
PS: Beijos para ti Maria Helena e familiares.Reconheci-te no anonimato do 1º comentário, pelo facto da Sónia e Cecília me tratarem por: padrinho. Obrigado aos que me facultaram fotos e autorizações nos relatos pessoais. Um abração para todos os Rebordainhenses e visitantes.

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Agradeço a tua referência, mas é importante que as pessoas não fiquem com ideias erradas: mudar umas vírgulas daqui para ali não faz de mim redactora dos teus textos. Quanto muito, serei revisora. Todo o mérito é teu.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Lurdes

As fotografias que tens publicado no Faceboock são excelentes. Estas últimas, além de grande sentido estético, tiveram o condão de me fazer crescer água na boca. Que saudade de roquelhos!

Já agora: o Carlos Águeda é natural de Rebordaínhos, sim e tem belas mãos - forma diferente de ser artista. Se te não lembras, podes visitar este artigo publicado há já algum tempo:

http://rebordainhos.blogspot.com/2009/10/terra-amada_15.html

Beijos