segunda-feira, 8 de novembro de 2010

BAIRRO DE À CHAVE [2.ª parte]

por

ANTÓNIO BRAZ PEREIRA

Dedico o meu texto aos filhos de Rebordainhos já falecidos, e aos seus entes queridos vivos, que não puderam visitá-los no dia dos Fiéis Defuntos.

O convívio, entre a população, apesar das diferenças sociais e financeiras existentes era, aparentemente, cordial. Só na aparência porque, na realidade, os pobres eram os que sempre vergavam diante dos que possuíam abundância alimentar, bens ou títulos, uns herdados, outros adquiridos pela labuta constante, árdua e ambiciosa.

Se sondássemos os agregados familiares de Rebordainhos, estes poderiam dividir-se em três categorias: abastança, remedeio e necessidade. Nestes, o provérbio, “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”, manifestava-se como uma evidência. Era uma luta constante pela sobrevivência, tendo em conta os magros meios que o destino impunha. Alguns submetiam-se; outros escolhiam o inconformismo; uns eram optimistas e outros pessimistas.

Havia os bons e os maus pais de família, todas elas numerosas devido à falta de meios contraceptivos, sem esquecer a grande influência da religião católica. A concepção de filhos era um automatismo. A submissão da mulher às obrigações de esposa e às exigências incontestáveis dos maridos, muitos deles machistas todo-poderosos, incontroláveis quando à noite, já tarde, voltavam a casa, embriagados e sem um tostão nos bolsos, após longas horas na taberna a jogar e beber copos de vinho, alheios aos sentimentos inerentes ao dever de pais. Revoltados e inconscientes, agrediam os seus: à esposa, fisicamente, com pancada forte; aos filhos, moralmente, pois viam-se chorosos, com fome, e impotentes perante tal besta feroz e capaz de tudo. Estes filhos, por força, haveriam de guardar sequelas e traumatismos para o resto das suas vidas.

Eram essas humildes e dedicadas mulheres que carregavam e transportavam todas as culpas e responsabilidades. Ainda que inocentes, era sobre elas que caíam todas as injustiças e a elas é que era apontado o dedo da vergonha e do desprezo. Muitas foram mães solteiras, com seis, sete ou mais filhos, de variados pais incógnitos, como narravam naquele tempo as certidões do Registo Civil.

Vivia-se num País onde vigorava a lei do mais forte, do mais poderoso; onde os pobres só tinham direito ao silêncio, ao conformismo, à submissão, ao trabalho duro e penoso em troca de um pão de centeio ou de uma cesta de batatas que, à noite, levavam para casa, orgulhosos e felicíssimos por terem algo para matar a fome, pelo menos aquela noite, aos filhos numerosos …

As grandes propriedades pertenciam à classe das casas de “abastança,” que se contavam pelos dedos de uma mão. Vinham por herança, mantinham-se pela persistência no trabalho e acrescentavam-se por compra ou penhoras. Quantas terras penhoradas não puderam ser resgatadas por falta dos 10, 20, 30 ou 50 escudos impossíveis de amealhar! Certas casas, outrora fartíssimas, chamadas “grandes”, arruinaram-se por falta de empenho, zelo e coragem para gerir um trabalho árduo, consistente, embora avassalador. Os pais desleixavam-se, refugiando-se nos jogos e nos copos de vinho bebidos nas tascas, voltando para casa já a noite ia avançada, embriagados e mais endividados ainda, com dívidas que sabiam jamais poder pagar. Esta herança deixada aos filhos contaminou-os, e a maior parte deles seguiram os mesmos caminhos tortuosos de que só se arrependiam nas poucas horas que dedicavam à reflexão. Na sua dependência, o copo de vinho e a batota eram mais apetecíveis, de acesso livre e muito fácil. O choro das esposas e dos filhos já não os comovia, a violência transportava-os ao de lá do auto-controlo emocional, moral e físico, violência sem remorsos, por isso, sem remissão. A questão das dívidas teve, ao longo dos anos da minha lembrança, graves consequências no seio de uma população carenciada e dependente, encaminhada para a delinquência: furtos, assaltos à mão armada e, até, assassínios.

Ser pobre não significava, apenas, não ter nada; era também o desprezo, o abandono, a indiferença, a morte provocada por qualquer doença, ainda que fácil de curar. A doença era pior quando batia à porta daqueles que não tinham um tostão nem conhecimentos nas hostes da saúde pública, como foi o caso daquele miúdo que morreu à mingua, dia após dia, com uma broncopneumonia, por não aparecer no seu caminho uma alma bondosa que o levasse ao hospital, onde a administração de penicilina e dois ou três dias de repouso lhe teriam salvo a vida. Tempos depois, assim já não aconteceu com outro rapaz, com menos dois anos de idade, mas de família privilegiada, que foi salvo. Aos meus ouvidos, e durante toda a minha vida, soarão os gemidos daquele mártir, pedindo socorro! No coração, terei sempre a repugnância pela discriminação social!

No bairro de à Chave não havia ricos e, entre os moradores, existia uma cumplicidade de entreajuda e solidariedade. Também eles se contavam entre os jeireiros, contratados segundo as suas competências: coragem, fortaleza e dedicação para segar os fenos ou o centeios, arrancar batatas, etc., enchendo os palheiros, tulhas, cilos ou adegas daqueles que, tendo mais, poderiam vender o que lhes sobrasse.



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frases de Ben Zoma (04:01 Pirkei Avot)

" Quem é sábio?" - A pessoa que aprende a partir de todas as pessoas...

" Quem é poderoso?" - Aquele que domina a inclinação para o Mal...

" Quem é rico?"- O que se alegra em sua Parte...

" Quem é honrado?"- Aquele que honra os outros seres humanos...

7 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho [Braz]

É bom que saibamos falar de tudo, que saibamos dizer tudo quanto vivemos e sabemos, porque a memória quere-se inteira.

Hoje falaste-nos de uma parte menos boa de nós. confesso-te que não tinha noção das três classes que identificaste para Rebordaínhos. Para mim éramos todos pobres, uns um pouco menos do que os outros.

Noção da violência sobre mulheres e filhos tinha alguma, mas jamais lhe conferia a acuidade com que tu a desenhaste.

Do que não fazia a menor ideia era dos assaltos à mão armada e da outra violência maior que referiste.

Para todos os efeitos, o teu artigo de hoje foi uma grande lição para mim. Obrigada por ela, embora me pareça que, mais do que ao bairro de à Chave, ele fala sobre o nosso povo inteiro.

Beijos

Augusta disse...

Tonho:
Ao contrário da minha irmã (não admira, ela é a mais novinha), neste teu retrato escrito,consigo reconhecer com clareza pessoas e factos.
Os gemidos que ainda hoje ouves, são também ouvidos por muitas outras famílias, a quem a doença, sem bater à porta, entrou e exerceu a sua função devastadora.
De facto, a pobreza constitui um importante determinate da saúde, reconhecido já no séc. XIX por Chadwick, em estudos acerca da população inglesa. Demonstrou que a falta de saúde e a pobreza têm uma relação directa, afirmando que "quanto mais pobre mais doente e quanto mais doente mais pobre" .
Um beijo, e por favor não deixes de continuar a brindar-nos com estes teus registos. Assim, é possivel mantermos a nossa memória viva.

Anónimo disse...

António
Grande texto, imensa memória!
Apesar dos tempos serem hoje bem diferentes no modo de estar, continuo a encontrar na classe que define como "abastados" muitos com os bolsos a abarrotar de notas, e nem por isso deixam de ser necessitados.
Há porém a outra classe, os "pobres", que apesar da pouca abastança, possuem um caudal de valores, que dividem com tão boa vontade, sem que por isso se sintam sofredores, ou afastados por qualquer divindade em que acreditam.
Acha que existe hoje, uma grande alteração?
Um abraço
Eduarda

antonio disse...

Eduarda: a diferença existe na evoluição dos tempos, porque a mentalidade continua: cada qual para si, independentemente dos meios usados... Não há transparencia, nem abdicação a certas formas de subsistência, mas... quem sou eu para julgar? Limito-me a lamentar o paradoxo do presente com o relato do passado...
Obrigado pelo seu comentário. receba também um abraço amigo.

Joaquina Salgueiro S .C. disse...

Sou da Beira Baixa e ,no entanto , a sua descrição poderia perfeitamente ser sobre a minha terra até aos finais dos anos 60 . Nesse período a emigração veio, a pouco e pouco , atenuar essas diferenças e a mau gestão também ajudou a afundar alguns dos grandes latifundiários ...Como vê a análise da Fátima creio que deve estar certa , não era só a sua aldeia ou mesmo Trás -os -Montes ,eram várias regiões do país . Esperemos que a História não se repita... Bem haja pelo belo texto
Quina Salgueiro

Olímpia disse...

António:

Também eu me lembro bem dessas três classes, embora duma forma bem menos acentuada da que tu descreves.
Foram realidades destas(e que tu narras tão bem) que contribuiram para o molde daquilo que hoje somos.

Parabéns, pelo belo texto.

Um beijo

Olímpia

Anónimo disse...

naaltura sabinse quem eram os ricos e os pobres,agora sao todos ricospobres.inda e pior