“Elas já perceberam. Vejo-lhes a tristeza nos olhos. Sabem que vão ser vendidas!”
Era isto que me confidenciava o tio António Piloto a quem os oitenta anos obrigavam, por já não poder trabalhar, a desfazer-se da junta de vacas. “Elas são como as pessoas, compreendem tudo!”
Induzida, talvez, pelas palavras daquele homem bom e sábio, dei por mim a fitar atentamente as duas vacas, jungidas ao carro, e a confirmar a plangência do seu olhar. Varou-se-me a alma!
Recuei à meninice, ao tempo em que eu e a minha irmã Olímpia éramos os reichequitos da família e, entre nós, decidíramos que a Andorinha era dela e a Novela era minha. Tal posse não queria dizer nada, a não ser horas de discussão sobre qual das vacas era a mais bonita e tinha as melhores prendas. Verdade, verdadinha, a Olímpia calava-me quase sempre, rematando com acinte: “a Novela é espantada como tu!”
Como todas as da aldeia, eram duas vacas mirandesas, brilhantes do bom trato, com a Novela a passear a sua cor de castanha corada e a Andorinha a exibir-se em nobrezas de ouro velho. Era ela a boa criadeira, pois o seu úbere túrgido oferecia-se aos filhos até que os visse saciados e, satisfeitos, se deitassem a ruminar o prazer. Nunca, porém, podia parir sozinha, porque na sua ânsia de ver a cria a mamar, dava-lhe escornadelas até que se erguesse, correndo o risco de a ferir.
As crias da Novela andavam sempre magras, apesar de ser mãe tão solícita como as demais. A primeira vez que pariu foi um desassossego. Cada vez que a vitelinha se acercava dela para mamar, dava-lhe coices e afastava-se sem permitir que lhe tocasse. O meu pai e a minha mãe andavam ralados. Chegavam-lhe a filha, para que a cheirasse, mas ela bramava de tal modo que tinham que lha esconder da vista.
“É preciso defumar a vaca”, sugeriu a tia Vermelha à minha mãe, mas o Fouce, que gostava pouco de coisas que lhe parecessem bruxedo, proibiu-o peremptoriamente.
Como em tudo, a teimosia das mulheres levou a sua avante. Deixaram o meu pai sair para Arufe, juntaram os ramos de oliveira benzidos no último Domingo de Ramos, aspergiram-nos com a água benta, meteram-nos num caldeiro e foram-nos acender à loje. Aquilo é que foi! Mal o fumo lhe chegou às narinas, a Novela levantou-se e, meigamente, foi lamber a cria, convidando-a a mamar. Operara-se o milagre.
A Novela era ciosa da sua dignidade vacaril. E da dignidade de uma vaca faz parte o direito à boca livre para poder saborear os rebentos tenros, mormente quando está a lavrar, jungida à charrua. Por isso, ninguém ousasse aparecer-lhe com a focinheira! Um dia, a Amélia atreveu-se, estando o pai a agradar na Ribeirinha. Mal a avistou, desatou em corrida tamanha, que foi ela, foi grade e foi tudo atrás. Com que custo se deixou apanhar! A raiva às focinheiras era tal, que o meu pai se viu obrigado a tirá-las de detrás da porta da loje, onde costumava pendurá-las, porque, assim que se abria a porta e a luz da rua incidia nelas, a vaca pulava e corria a esconder-se na parte mais funda do curral.
Habituada pelo meu irmão Pedro, a Novela só fazia as coisas se fossem pedidas com bons modos e gesto meigo. Que ninguém lhe tocasse nos cornos! Se lhe aparecessem com a aguilhada, firmava as patas e não havia quem a demovesse. Mas se em vez da aguilhada apanhassem uma palha e lha encostassem atrás da orelha, fazia tudo quanto quisessem. Mansinha!
Os homens antigos só sabiam viver enquanto trabalhavam a terra e, por isso, demoravam tanto a reconhecer que já não podiam mais. O arrastamento do trabalho pelos anos da sua idade era o tempo que se davam para resolver a luta interior em que se opunha o natural desejo de preservar a vida e a constatação de que o fim se aproximava. O apego ao trabalho certificava-lhes a vida. Quando, finalmente, aceitavam que no dia seguinte se não levantariam à mesma hora das outras pessoas, estavam a entregar-se à morte. Mansamente.
“As vacas são muito inteligentes”, dizia-me o tio António, na conversa do início. Percebi, então, que ele queria que eu visse nos olhos delas a dor que era ele que sentia, mas que, por pudor, não traduzia em palavras.
A Novela e a Andorinha foram a última junta de vacas do meu pai. Por isso se me varou mais a alma!
Era isto que me confidenciava o tio António Piloto a quem os oitenta anos obrigavam, por já não poder trabalhar, a desfazer-se da junta de vacas. “Elas são como as pessoas, compreendem tudo!”
Induzida, talvez, pelas palavras daquele homem bom e sábio, dei por mim a fitar atentamente as duas vacas, jungidas ao carro, e a confirmar a plangência do seu olhar. Varou-se-me a alma!
Recuei à meninice, ao tempo em que eu e a minha irmã Olímpia éramos os reichequitos da família e, entre nós, decidíramos que a Andorinha era dela e a Novela era minha. Tal posse não queria dizer nada, a não ser horas de discussão sobre qual das vacas era a mais bonita e tinha as melhores prendas. Verdade, verdadinha, a Olímpia calava-me quase sempre, rematando com acinte: “a Novela é espantada como tu!”
Como todas as da aldeia, eram duas vacas mirandesas, brilhantes do bom trato, com a Novela a passear a sua cor de castanha corada e a Andorinha a exibir-se em nobrezas de ouro velho. Era ela a boa criadeira, pois o seu úbere túrgido oferecia-se aos filhos até que os visse saciados e, satisfeitos, se deitassem a ruminar o prazer. Nunca, porém, podia parir sozinha, porque na sua ânsia de ver a cria a mamar, dava-lhe escornadelas até que se erguesse, correndo o risco de a ferir.
As crias da Novela andavam sempre magras, apesar de ser mãe tão solícita como as demais. A primeira vez que pariu foi um desassossego. Cada vez que a vitelinha se acercava dela para mamar, dava-lhe coices e afastava-se sem permitir que lhe tocasse. O meu pai e a minha mãe andavam ralados. Chegavam-lhe a filha, para que a cheirasse, mas ela bramava de tal modo que tinham que lha esconder da vista.
“É preciso defumar a vaca”, sugeriu a tia Vermelha à minha mãe, mas o Fouce, que gostava pouco de coisas que lhe parecessem bruxedo, proibiu-o peremptoriamente.
Como em tudo, a teimosia das mulheres levou a sua avante. Deixaram o meu pai sair para Arufe, juntaram os ramos de oliveira benzidos no último Domingo de Ramos, aspergiram-nos com a água benta, meteram-nos num caldeiro e foram-nos acender à loje. Aquilo é que foi! Mal o fumo lhe chegou às narinas, a Novela levantou-se e, meigamente, foi lamber a cria, convidando-a a mamar. Operara-se o milagre.
A Novela era ciosa da sua dignidade vacaril. E da dignidade de uma vaca faz parte o direito à boca livre para poder saborear os rebentos tenros, mormente quando está a lavrar, jungida à charrua. Por isso, ninguém ousasse aparecer-lhe com a focinheira! Um dia, a Amélia atreveu-se, estando o pai a agradar na Ribeirinha. Mal a avistou, desatou em corrida tamanha, que foi ela, foi grade e foi tudo atrás. Com que custo se deixou apanhar! A raiva às focinheiras era tal, que o meu pai se viu obrigado a tirá-las de detrás da porta da loje, onde costumava pendurá-las, porque, assim que se abria a porta e a luz da rua incidia nelas, a vaca pulava e corria a esconder-se na parte mais funda do curral.
Habituada pelo meu irmão Pedro, a Novela só fazia as coisas se fossem pedidas com bons modos e gesto meigo. Que ninguém lhe tocasse nos cornos! Se lhe aparecessem com a aguilhada, firmava as patas e não havia quem a demovesse. Mas se em vez da aguilhada apanhassem uma palha e lha encostassem atrás da orelha, fazia tudo quanto quisessem. Mansinha!
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Os homens antigos só sabiam viver enquanto trabalhavam a terra e, por isso, demoravam tanto a reconhecer que já não podiam mais. O arrastamento do trabalho pelos anos da sua idade era o tempo que se davam para resolver a luta interior em que se opunha o natural desejo de preservar a vida e a constatação de que o fim se aproximava. O apego ao trabalho certificava-lhes a vida. Quando, finalmente, aceitavam que no dia seguinte se não levantariam à mesma hora das outras pessoas, estavam a entregar-se à morte. Mansamente.
“As vacas são muito inteligentes”, dizia-me o tio António, na conversa do início. Percebi, então, que ele queria que eu visse nos olhos delas a dor que era ele que sentia, mas que, por pudor, não traduzia em palavras.
A Novela e a Andorinha foram a última junta de vacas do meu pai. Por isso se me varou mais a alma!
14 comentários:
Comovente este relato de que aqui nos deixa. Hoje como ontem estas pessoas sentem que a vida lhes foge quando deixam de trabalhar. Fiquei emocionada.
Um abraço e bom fim de semana
Mais um texto com a qualidade a que nos habituaste, Fátima! Comovi-me e, com franqueza, os olhos marejaram-se-me de lágrimas. Conheci muitas vidas assim e ainda conheço. Tenho um vizinho que diz que não é só o aprender que se faz até morrer. O trabalho também. A caminho dos oitenta, sai para o amanho das terras, montado no tractor, mal o dia amanhece, leva farnel e regressa à tardinha. Acabou agora o varejo das alfarrobas e já está no varejo das azeitonas. Regressa ao fim da tarde carregado de sacos, cansado de um dia de trabalho mas alegre. A sua única ajuda é a mulher porque o trabalho não rende para trazer trabalhadores.
E diz-me muitas vezes que quando parar é para morrer.
Aqui lavrava-se a terra com machos ou mulas, já poucos o fazem, mas quando vendeu os animais os seus olhos andavam carregados de tristeza.
Bem-hajas, por, mais uma vez, me teres permitido "degustar" um texto primoroso.
Beijos
Esta passagem do quotidiano da vida das nossas gentes,quebrou-me as asas do coração,mas mesmo assim consegui voar para tempos distantes onde as emoções dum povo eram também feitas á custa do amor aos seus animais.
Eles faziam parte da familia,eram o braço direito,trabalhador esforçado duma casa e ninguem se podia dar ao luxo de menosprezar os seus animais.No fim duma faina,antes do lavrador se sentar á mesa já tinha "pensado"os seu animais.
Beijos.
E, tal como o tio António, também o nosso pai ficou triste "como a noite" com a venda da sua junta de vacas. A vontade de trabalhar era tal que, como não tinha as dele, trabalhava com as dos outros. E, nos últimos tempos da sua vida, com a mente já um pouco perturbada, ainda assim pensava em ir "acomodar" as suas vacas.Tal como o nosso pai, também o tio António e outrs tantos homens da nossa terra, tinham na sua junta de vacas, mais dois elementos da família. Afinal, era com elas que passavam o correr dos dias de labuta.
Homens valentes estes de Rebordainhos.
Parabéns mana, por nos transportares mais uma vez a outros tempos. E que bem o fizeste!
Beijos
Augusta
Elvira
É mesmo assim.
Um beijo e bom domingo
Isabel
Eu às vezes penso que as pessoas que trabalham a terra e vivem dela a amam como se fosse sua mãe. Assim, porque se não abandona a mãe, também se não larga a terra e só assim é que as coisas fazem sentido.
Bem-haja.
Beijos
Fátima
Em Vila Flor, percebi, "pensar" significa o mesmo que o nosso "acomodar".
Disse muito bem: eram os animais que recebiam o alimento em primeiro lugar, fosse de manhã, ao meio-dia ou à noitinha. Vacas, porcos, bicharada de capoeira, todos tinham a primazia, numa demonstração de respeito e agradecimento pelo bem que nos fazem.
Beijos
Augusta
Confirmando aquilo que dizes, penso que as vacas que estão na fotografia são as do Rafael. Também tens razão naquilo que afirmas: os animais eram membros da família, tratados com respeito e carinho.
Beijos e obrigada
O termo "penso" sim refere-se a alimento,refeição em relação aos animais e muito usado ainda na minha região por gente da lavoura especialmente os que nunca se ausentaram de lá e a quem a televisão não adulterou o léxico.
Nos nossos escritores,do que eu li,só encontrei este termo,escrito pelo Aquilino Ribeiro.
Beijos
Revivi momentos em muito semelhantes à minha infância, não com o meu pai, mas com o avô.
Obrigada.
Muito bem escrito, uma verdadeira pérola.
Parabéns.
Beijinho
Ana Sofia
Olá Fátima:
Que coisas lindas tu sabes dizer sobre as nossas coisas! E os bichos nossos irmãos, quase gente como nós.
Parabéns pela tua bossa literária e pelo prazer que nos trazes pela evocação daquilo que dentro de pouco não será mais que memoria.
António
Fátima
E eu devo tê-lo lido, inferido o sentido e não o fixei.
Bem-haja
Beijos
Ana Sofia
Quanta gentileza. Bem-haja!
Beijos
Tonho
Verdade mesmo: memória que teimamos em preservar por aquilo que de nós fez.
Beijos e muito obrigada
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