sábado, 21 de janeiro de 2012

OS SALPICÕES DO NHARRO


por
ORLANDO MARTINS


Decorriam aqueles meses estivais, Julho e Agosto, onde a colecta dos frutos semeados ao longo do ano se tornavam a única fonte dos parcos rendimentos de quase todas as famílias.

Era o caso da colheita dos cereais, o abençoado centeio, que nos trazia a branca farinha para o divino pão que enchia as parcas mesas de todas as famílias.
Esse, o pão, não podia faltar.

Pois bem, foi numa dessas colheitas, a dos cereais, mais concretamente a do centeio, que numa das muitas e cansativas malhas nos cruzámos na eira da cabecinha, junto à casa do Armindo Barbeiro.

Era a malha da Delfina, com o astuto Gilberto (Nharro) a tomar conta de todas as devidas operações para que nada faltasse ou corresse de forma irregular.
O “Santacombinha”, maquinista da malhadeira, após o almoço, lá colocou a traquitana a funcionar, porque dizia ele, para malhas pequenas não se devia esperar.

Foi assim que, aqueles que se juntaram para colectar o pouco grão da tia Delfina, se dispuseram nas muitas e árduas tarefas da recolha da palha, dos coanhos do grão, etc….


A eira da cabecinha era um pouco avessa, descia em direcção à conceituada barbearia do Armindo da Eira, seguindo-se umas térreas instalações que serviam de armazém da tia Delfina, e era para esse local improvisado de tulha (local de armazenagem dos cereais) que o grão saído lentamente da malhadeira teria que ser transportado.

Como o transporte do grão de centeio era, parecia-me, uma tarefa mais limpa, sem o nebuloso pó dos coanhos que se entranhava pela alma dentro, ofereci-me para o transporte do mesmo em sacos de ráfia ou sisal que iam dos cinquenta aos oitenta quilos.

Para reduzir viagens, dizia o Nharro, que devíamos levar sacos de oitenta quilos de centeio, parecia razoável para a idade, para a vontade e a força intima de terminar mais um dia de malhas.

E assim, força do voluntariado, lá fomos nós, mais o Guilhermino e o Evaristo, carregando, soterrados, com aquelas sacas eira abaixo e eira acima recuperando o bendito fôlego.

Aí pela terceira paragem na tulha do Nharro, não podendo mais das costas, atirei com o saco das benditas sementes para a arca feita de madeira, e com ele também o meu corpo se estirou, qual banho de mel, em cima do grão dourado a repousar como em cima de um áureo tesouro. Fechei os olhos, e a vontade de uma vida descansada deu-me ganas de não mais acordar. Voltando a mim, sorrateiramente e com o pesar de pálpebras, fui erguendo as sobrancelhas enquanto o meu corpo pedia descanso.
Meu Deus, quando os olhos baços se abriram num estremecer de acordar, vi, e isso garanto, por cima de mim, um cordame repetido de algo que me era familiar, várias carreiras de chouriços divinalmente alinhados de cores róseas a convidarem-me para uma real patuscada.
A ideia ficou, e no saco seguinte, aguardo maliciosamente que todos saíssem da tulha e com um navalha, embora pequena, deu para cortar o baraço (fio) do primeiro e anafado chouriço (salpicão).

Tomado o insano gosto, daí para a frente cada saco de centeio, cada salpicão, que religiosamente e com muita atenção ia guardando debaixo do medeiro vizinho que se situava a dois, três metros do centro das nossas operações.
Finda a malha, toca de colectar todo o espólio nos bolsos das calças e levá-lo em segredo para casa.

Havia então um problema, onde desfrutar tão apetitoso manjar.
A ideia veio de imediato. Pedir à tia Teresa se nos podia arranjar uma mesa para partilhar o lanche tão merecido.
Logo ela acordou afirmando que pão e vinho não iriam faltar.

Como bom anfitrião, lembrei-me de convidar o próprio Nharro para o festim.
Copo de vinho mais copo de vinho, lá ia eu sacando um a um os chouriços do bolso e colocando em cima daquela improvisada mesa, que naquele dia era a nossa alegria.
Após o terceiro ou quarto pitéu, vou ao bolso para repor mais um, calhando um suculento salpicão atado com um baraço de ráfia azul.
Mal o coloco em cima da mesma ouve-se um grito do Nharro, quase como vindo do fundo de catacumbas, que desabafou:
“Caralho marrafodam estes são os meus salpicões, mas este, fodei-vos não o ides comer”.

E, dito isto, agarrou no salpicão, meteu-o no bolso e saiu porta fora praguejando como um animal ferido.
Como a vingança se serve fria, na época de Natal seguinte o Nharro foi convidado para a matança do meu pai. Ele, que ainda não tinha esquecido os salpicões, no momento de “desmanchar” os porcos, ripou de uma faca e cortou um grande pedaço de lombo ao animal exclamando: “este é para pagar os salpicões que me comeram na malha seus caralhos”.
E assim nas travessuras de então terminou mais uma passagem de tempos inesquecíveis e de boa convivência.
Que regressem aos dias de hoje.

9 comentários:

Olímpia disse...

Bem-hajas Orlando, pelo teu regresso.
É com muita alegria que voltamos a ler-te. Desta vez, através da prosa. E que prosa!...
Também eu tive o prazer de saborear esses famosos salpicões,e de soltar agora, estrondosas gargalhadas com este teu texto.
Só agora soube que o autor deste "furto" foste tu, já que, tanto tu como o Evaristo, souberam bem guardar o segredo. Achava que tivesse sido o meu irmão.
Concordo contigo: eram tempos de muito trabalho mas também de muito companheirismo e de diversão.
Que voltem essas diversões e essa convivência!
Ficamos a aguardar o próximo texto!...
Bjo

Olímpia

Fátima Pereira Stocker disse...

"Dizei-me agora, Musas que habitasi o Olimpo..."

Orlando

Que bom que as musas te voltaram a inspirar nesta narrativa épica trazida até nós, quiçá, pelas sandálias aladas de Mercúrio!

Que bem me soube relembrar essa história que contavas enquanto rias até às lágrimas.

Bem-hajas pelo regresso ao nosso convívio.

Um grande beijo

antonio disse...

Ai é? Seu malandreco! E eu que te considerava um Santo! Do pau corunhoso... pesavam mais as sacas!
Orlando, meu amigo... que "inchente" de rir!!! Não conhecia a história, e que bela narração! O Gilberto, um dos tantos "corrécios" de lá, até é, creio eu, afilhado do teu pai... e, também ele, se contasse as que fez, enchiam uma saca das do sal!
Bem-vindo o teu regreço, presenteado com tão rica naração, elustrada à maneira... Abração

Augusta disse...

Ora viva Orlando!!!
Que maneira tão rica e feliz para o teu regresso!
E pensava o Nharro que ele é que era o atraganado do sítio! Estou mesmo a vê-lo, a piscar os olhos enquanto reconhecia o salpicão.
Cá em casa houve gargalhada geral.
Bom regresso Orlando, e que desta fiques por muito mais. E que os tempos de convívio regressem aos dias de hoje.
Beijos
Augusta

Elvira Carvalho disse...

Adorei a história.Muito bem contada, quase me vi lá na eira. Outros tempos em que tudo sempre se resolvia da melhor maneira.
Um abraço e boa semana

António disse...

Olá, Orlando:

Que sejas bem aparecido depois de tão longo silêncio para nos regalares com mais uma das estórias pícaras dos bôs velhos tempos.
Por este andar ainda havemos de "poer en charonica as cousas ca en Rebordainhos antiguamente foron", de tomo a fazer inveja ao próprio Fernão Lopes.
Abraços

António Fernandes

Chanesco disse...

Estas tiradas de humor descritas com tamanho realimo, tanto pelas descriçoes como pela fidelidade do linguajar,arrebitam um moribundo.
Eu que sou transmontano por empréstimo, pareceu-me assistir ao vivo às contas galhofadas por uma transmontana genuina, tia da minha mulher, que me dizia quando comecei a achar-me por essas bandas:
Desculpe senhor Armando. Não leve a mal, mas nós cá falamos assim.

Um abraço para Rebordainhos

Anónimo disse...

Obrigado a todos

Pelas vossas palavras de incentivo.

Orlando Martins

Idanhense sonhadora disse...

É bom recordar os tempos da juventude e as malandrices que fizemos ....Quanto ao linguajar ,também é bom que o conservemos ..Eu e também o meu veginho Chanesco cá vamos tentando manter o nosso beirão . No entanto também eu estou habituada ao transmontano ,pois tenho uma cunhada dessas bandas .
Orlando ,tudo de bom
Com muntas vegitas e recomendaçons desta beirã
Quina