segunda-feira, 28 de maio de 2012

MEMÓRIAS DE UMA ZELA [III]



EPÍLOGO EM PENACANE


Não sou ingénua – sei que destruíram o altar de Nabia para nos dar uma lição: ou nos submetíamos ou seríamos destruídos. Pior: poderíamos ser vendidos como escravos!
***

Parecia que a terra se tinha aberto e lhe saíam das entranhas. Eram enxames deles, semelhantes a escaravelhos em pé, de tão protegidos que vinham atrás dos seus longos escudos. Formavam fileiras intermináveis mas moviam-se como se de um só corpo se tratasse. Apareciam de todos os lados e adentravam pela nossa terra, galgando a distância num assalto organizado, obediente e eficaz.

Decidimos invocar o auxílio dos deuses, enviando os feiticeiros à sagrada fraga do berrão e pedimos-lhes que se não esquecessem de passar pela anta, pois tão notável sepultura deveria guardar o corpo de algum guerreiro valente ou poderoso sacerdote. Enquanto isso, com os parcos meios de que dispúnhamos, organizaríamos a defesa do nosso povoado.

De início tentámos uma defesa frontal, mas, como as nossas lanças e dardos se mostrassem inúteis perante a carapaça dos escudos deles, mudámos de táctica. Usámos a nosso favor o facto de estarmos em ponto alto, o que nos permitia arremessar pedregulhos que os faziam tombar, atrapalhando-lhes a marcha. Compensámos a desvantagem numérica pela organização em pequenos grupos emboscados que atacavam de surpresa, pelos flancos, e se escondiam velozes para atacarem de seguida noutro lugar. Assim nos aguentámos até que o Sol se escondeu. A noite não tardaria e os feiticeiros já deviam ter regressado. Mediante a resposta que trouxessem dos deuses, assim organizaríamos os dias seguintes.

Os feiticeiros, porém, não tinham regressado. Mesmo assim, montámos vigias e aquilo que observámos deixou-nos mais preocupados: o breu nocturno era quebrado pelos fogachos das fogueiras que os invasores acendiam para se aquecerem e prepararem as refeições. Luziam por todos os vales em redor. Estávamos cercados!

Era tão grande a inquietação que nem as crianças conseguiam dormir. Deambulávamos ao acaso por dentro da cerca, tentando entreter o tempo até que amanhecesse e retomássemos o combate. Subitamente, o silêncio da noite foi rasgado por enorme vozearia vinda do lado de onde nasce o Sol e todos subimos às muralhas para perceber o que se passava.

Oh! visão horrenda! Oh! filhos das trevas, que abominação tão grande cometestes! Sobre um enorme cadafalso iluminado pela luz de muitos fachos, erguestes cruzes bem altas. Presos a elas, atados de pés e mãos, agonizavam os nossos feiticeiros. Num crime de soberba sem limites, ornastes-lhes todo o corpo com os sagrados ramos do teixo!

Quase todos consideraram esta visão como um sinal dos deuses para que aceitássemos pacificamente a chegada do novo povo. Não me incluo entre esses, mas tive que me sujeitar como os demais.

Fizeram tudo rápida e ordenadamente como só eles sabem. Obrigaram-nos a abandonar o nosso povoado e a descer para esta terra mais abaixo, proibindo-nos de a cercar de muralhas. Comparando com aquilo que, contam, fizeram a outros (gabam-se especialmente dos lusitanos), connosco nem foram muito cruéis: permitiram que ficássemos por aqui e “deram-nos” terras, embora tenham vendido os mais aguerridos como escravos. Os que agora somos velhos, no entanto, guardámos para sempre a mágoa imensa de termos perdido o nosso modo de vida. E foi por isso que, quando nos perguntaram que nome dávamos àquele chão onde tinham erguido o patíbulo, lhes respondemos que era o cabeço dos cães(1). Iludidos pela semelhança com a sua palavra “pinna(2)” e, crendo que ali tivesse existido alguma fraga onde os cães se juntassem para uivar à Lua, aceitaram que assim ficasse: Penacane(3). Mas os cães do nome são eles, por causa do mal que lá cometeram!

Quem vos fala, para que de tudo saibais, é esta velha Zela, da comunidade dos Reburrinus(4).


___
(1)Cão, em latim, diz-se "cane"

(2) Pinna: rochedo, fraga

(3)Cito a entrada “Pena” do "Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa", de José Pedro Machado:
“Em alguns casos, pena, e seus compostos e derivados, pode representar o céltico penn, pen, «cabeça», «cabeço», «extremidade» (…).
Foi daqui que deduzi a possível confusão com pinna.


(4)De todos, este é o maior atrevimento que cometo. Quase nada sabemos dos nomes dos lugares dos Zelas: que Curunda é a sua sede e pouco mais. Reburrinus é nome próprio masculino e seduz-me muito a sua semelhança com o nosso Rebordaínhos, que em português arcaico vemos grafado "Rebordinos", "Rebordino" ou "Rebordayo". Reburrus, Riburra e Burrali são outros nomes próprios dos Zelas.

Não deixa de ser interessante uma outra perspectiva que poderá ter a ver com semelhanças fonéticas. Leia-se o verbete “Burro” no Vocabulário Portuguez e Latino de Bluteau (clicar na imagem para ampliar: "Diz Festo Grammatico, que os Antigos dizião Burrus em lugar de Rusus [Ruço], Ruivo, Burrum dicebant Antiqui quod nunc dicimus Rusum (...)


8 comentários:

Elvira Carvalho disse...

Gostei de ler. Mais um "relato" do espirito duma Zela.
Na verdade embora não saibamos a verdade podia muito bem ter sido assim.
Um abraço

Anónimo disse...

Fátima
O que eu aprendo contigo!
De "Zela", honestamente só conhecia o Toyota.
Belíssimo trabalho! Obrigada por dispores desta forma os teus conhecimentos, mostrando-nos como é importante sabermos de onde viémos, para melhor sabermos para onde ir.
Agora depois destes três posts, fiquei bem mais rica.
Beijinho
Eduarda

Anónimo disse...

Penacane, fica em direçâo Rebordainhos Covas.
A fraga da Anta,sita-se aproximadamente a 1km das fragas do
Berrão.

Fátima Pereira Stocker disse...

Elvira

Eduarda

Obrigada!

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Anónimo

Não percebi. Acha que eu não sei onde ficam os sítios, é isso? Se é isso, está bem enganado.

Idanhense sonhadora disse...

Olá Fátima , perdida entre muito trabalho ,ia também perdendo esta bela lição de História que nos chega da "lonjura dos tempos " . A preservação de tudo o que se prende com o nosso passado longínquo é igualmente uma das minhas preocupações . Foi bom ter podido ler tudo de "carreirinha " e penetrar na vida desses nossos antepassados . Bem haja....
Beijinhos

Lurdes disse...

Fátima,
E que bem que tu inventaste estas lendas. Gostei muito de ler! Parabéns!!!
Beijos
Lurdes

Fátima Pereira Stocker disse...

Quina

Lurdes

Bem-hajam.

Desculpem-me a demora na resposta, mas ando afogada em trabalho.

Beijos