Os caminhos percorridos e os lugares visitados na Páscoa criaram-me a vontade de inventar algumas lendas, para nós que somos gente pouco dada a elas.
Os acontecimentos a que me vou referir são velhos de mais de 2000 anos e dizem respeito a um povo e a uma cultura de que descendemos: os Zelas (latim: Zoela/Zoelae). Infelizmente, a quase nula exploração arqueológica do Nordeste Transmontano não permite que se saiba muito acerca dessa comunidade e foi também esse o motivo que me fez inventar "lendas" em vez de escrever um artigo sobre esse tempo da História de Rebordaínhos. Queiram desculpar as notas de rodapé, mas parecem-me necessárias.
Esta "lenda" - ou "lendas" - será contada em três capítulos. Aqui fica o primeiro.
Os acontecimentos a que me vou referir são velhos de mais de 2000 anos e dizem respeito a um povo e a uma cultura de que descendemos: os Zelas (latim: Zoela/Zoelae). Infelizmente, a quase nula exploração arqueológica do Nordeste Transmontano não permite que se saiba muito acerca dessa comunidade e foi também esse o motivo que me fez inventar "lendas" em vez de escrever um artigo sobre esse tempo da História de Rebordaínhos. Queiram desculpar as notas de rodapé, mas parecem-me necessárias.
Esta "lenda" - ou "lendas" - será contada em três capítulos. Aqui fica o primeiro.
1: APRESENTAÇÃO
Para meu tormento, nada do que vivi e testemunhei existe já, mas, porque me pesa a consciência da memória que não quero ver perdida, aqui me tendes a contar-vos. Em chegando a vossa vez de serdes velhos, fareis consoante a consciência vo-lo ditar.
Éramos do mesmo sangue, todos quantos habitávamos lá em cima, naquele cabeço cercado por muros altos de xisto e granito. Pertencíamos a uma comunidade mais vasta – a gente dos Zelas – que se estendia por toda a terra que se avista lá de riba. Os Zelas, juntamente com outras gentes, formávamos o povo dos Ástures cujo território confinava com o vasto oceano(1).
Antes, as terras eram nossas e agora, por as cultivar, temos de pagar tributo a Roma. Roma deve ser a grande deusa deles, porque estão sempre a invocá-la. Há-de ser bem voraz, para consumir quase tudo quanto recolhemos deste chão e, se é verdade aquilo que apregoam, também de todas as terras à volta do grande mar.
Nunca vi pessoas tão feias como esses romanos. São uns sapos, sem pelos no rosto e, em vez de entrançarem o cabelo, tosam-no rente. Foram esses sapos que nos sujeitaram e nos obrigaram a descer lá de cima, onde tínhamos as nossas casas protegidas por muros altos.(2) Eram enxames deles e, dizem, a chefiá-los veio o próprio imperador, de seu nome Octávio. Eu não sei bem o que seja um imperador, mas deve ser uma espécie de deus em corpo de pessoa porque, apesar de ter nome próprio, referem-se a ele como “Augusto”(3). Também deve ter muito poder, pois todos lhe obedecem.
Parece-me muito estranho, isso da obediência a uma só pessoa: entre nós, e desde os tempos dos nossos antepassados, as decisões eram tomadas em conselho, homens e mulheres, orientados pelos feiticeiros que sabiam interpretar a vontade dos deuses. Tínhamos, até, um recinto especial para essas reuniões onde nos sentávamos em círculo, que é como quem diz, em posição de igualdade uns com os outros. Falava quem queria e, no fim, ficava decidido tudo quanto dissesse respeito à vida comum: o tempo da sementeira ou da colheita; os dias de agradecimento aos deuses – ou do pedido de auxílio, se fosse esse o caso –, a assinatura ou o reforço de laços de amizade com os vizinhos.
Levávamos vidas sossegadas. Os pactos de hospitalidade(4) que, desde há muitas gerações, assináramos com os vizinhos, permitiam-nos viver em paz e desfrutar do correr dos dias. Apascentávamos os rebanhos de cabras e ovelhas por este carvalhal que se estende a perder de vista. Recolhíamos bolotas e castanhas que pilávamos e delas fazíamos o pão que os romanos execram, mas a nós sabe-nos bem. Nas encostas mais abrigadas semeávamos linho e cevada. Do linho nos vestíamos e da cevada fazíamos a cerveja que bebíamos enquanto cantávamos e dançávamos nas belas noites de lua cheia. Desdenhosos, os conquistadores dizem que ululamos… melhor fora que desdenhassem também do nosso linho, assim não teríamos que fazer dele tributo! Nada parece saciá-los!
______
NOTAS
(1)Para os tempos pré-romanos, a historiografia designa por “gentilidade” o conjunto dos habitantes de um povoado. Esses habitantes seriam membros de uma mesma família alargada. A gentilidade integrava-se numa “gente” que, por sua vez, pertencia a um “povo”. No caso que nos importa, os Zelas são uma gente que pertence ao povo Ásture. O centro dos Zelas seria, possivelmente, Castro de Avelãs (Torre Velha) e ocuparia um território que abarca a zona oriental de Trás-os-Montes (pelo menos, desde Mirandela) e que se estende até Zamora. Zela / Zelas é o aportuguesamento do latim Zoela/Zoelae.
Olivares Pedreño, um historiador espanhol que tem estudado os Zelas, defende que estes seriam um grupo cultural diferente dos Ástures e que teriam sido os romanos a uni-los.
(2)Como se depreende, estou a assumir que o Cabeço Cercado possa ser um castro. O romano Avieno refere-se aos castros como sendo "arduos colles": colinas difíceis, ásperas.
(3)O território dos Ástures foi definitivamente conquistado pelos romanos numa campanha chefiada pelo próprio Augusto. Sem datas exactas para cada uma das regiões, assume-se o ano 25 a.C. como a data da conquista efectiva.
(4) A assinatura de pactos de hospitalidade está testemunhada em várias estelas (a maior parte oriunda da região de Bragança). Quem assina um pacto fá-lo em nome da sua gentilidade e assume que daí por diante pertencerá à gentilidade do outro subscritor. Também há pactos de clientela, em que se aceita a protecção do outro em troca de obediência e auxílio.
Éramos do mesmo sangue, todos quantos habitávamos lá em cima, naquele cabeço cercado por muros altos de xisto e granito. Pertencíamos a uma comunidade mais vasta – a gente dos Zelas – que se estendia por toda a terra que se avista lá de riba. Os Zelas, juntamente com outras gentes, formávamos o povo dos Ástures cujo território confinava com o vasto oceano(1).
Antes, as terras eram nossas e agora, por as cultivar, temos de pagar tributo a Roma. Roma deve ser a grande deusa deles, porque estão sempre a invocá-la. Há-de ser bem voraz, para consumir quase tudo quanto recolhemos deste chão e, se é verdade aquilo que apregoam, também de todas as terras à volta do grande mar.
Nunca vi pessoas tão feias como esses romanos. São uns sapos, sem pelos no rosto e, em vez de entrançarem o cabelo, tosam-no rente. Foram esses sapos que nos sujeitaram e nos obrigaram a descer lá de cima, onde tínhamos as nossas casas protegidas por muros altos.(2) Eram enxames deles e, dizem, a chefiá-los veio o próprio imperador, de seu nome Octávio. Eu não sei bem o que seja um imperador, mas deve ser uma espécie de deus em corpo de pessoa porque, apesar de ter nome próprio, referem-se a ele como “Augusto”(3). Também deve ter muito poder, pois todos lhe obedecem.
Parece-me muito estranho, isso da obediência a uma só pessoa: entre nós, e desde os tempos dos nossos antepassados, as decisões eram tomadas em conselho, homens e mulheres, orientados pelos feiticeiros que sabiam interpretar a vontade dos deuses. Tínhamos, até, um recinto especial para essas reuniões onde nos sentávamos em círculo, que é como quem diz, em posição de igualdade uns com os outros. Falava quem queria e, no fim, ficava decidido tudo quanto dissesse respeito à vida comum: o tempo da sementeira ou da colheita; os dias de agradecimento aos deuses – ou do pedido de auxílio, se fosse esse o caso –, a assinatura ou o reforço de laços de amizade com os vizinhos.
Levávamos vidas sossegadas. Os pactos de hospitalidade(4) que, desde há muitas gerações, assináramos com os vizinhos, permitiam-nos viver em paz e desfrutar do correr dos dias. Apascentávamos os rebanhos de cabras e ovelhas por este carvalhal que se estende a perder de vista. Recolhíamos bolotas e castanhas que pilávamos e delas fazíamos o pão que os romanos execram, mas a nós sabe-nos bem. Nas encostas mais abrigadas semeávamos linho e cevada. Do linho nos vestíamos e da cevada fazíamos a cerveja que bebíamos enquanto cantávamos e dançávamos nas belas noites de lua cheia. Desdenhosos, os conquistadores dizem que ululamos… melhor fora que desdenhassem também do nosso linho, assim não teríamos que fazer dele tributo! Nada parece saciá-los!
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NOTAS
(1)Para os tempos pré-romanos, a historiografia designa por “gentilidade” o conjunto dos habitantes de um povoado. Esses habitantes seriam membros de uma mesma família alargada. A gentilidade integrava-se numa “gente” que, por sua vez, pertencia a um “povo”. No caso que nos importa, os Zelas são uma gente que pertence ao povo Ásture. O centro dos Zelas seria, possivelmente, Castro de Avelãs (Torre Velha) e ocuparia um território que abarca a zona oriental de Trás-os-Montes (pelo menos, desde Mirandela) e que se estende até Zamora. Zela / Zelas é o aportuguesamento do latim Zoela/Zoelae.
Olivares Pedreño, um historiador espanhol que tem estudado os Zelas, defende que estes seriam um grupo cultural diferente dos Ástures e que teriam sido os romanos a uni-los.
(2)Como se depreende, estou a assumir que o Cabeço Cercado possa ser um castro. O romano Avieno refere-se aos castros como sendo "arduos colles": colinas difíceis, ásperas.
(3)O território dos Ástures foi definitivamente conquistado pelos romanos numa campanha chefiada pelo próprio Augusto. Sem datas exactas para cada uma das regiões, assume-se o ano 25 a.C. como a data da conquista efectiva.
(4) A assinatura de pactos de hospitalidade está testemunhada em várias estelas (a maior parte oriunda da região de Bragança). Quem assina um pacto fá-lo em nome da sua gentilidade e assume que daí por diante pertencerá à gentilidade do outro subscritor. Também há pactos de clientela, em que se aceita a protecção do outro em troca de obediência e auxílio.
13 comentários:
Uma verdadeira lição de história.
Um abraço e bom fim de semana
Olá Fátima,
Bem visto, há muitas semelhanças com o hoje. Repara que nos nossos dias,ainda pagamos de diversas formas, por simplesmente... ser.
Um beijo
Eduarda
Fátima: impressionou-me o facto de já haver a planta e a flor que depois de fermentada era extraída a cerveja! Na minha mente, a cerveja, só teria aparecido no Nordeste nos anos 60?
És um poço inesgotável de sabedoria, que orgulha qualquer amigo ou familiar!
Obrigada pela dedicação e gentileza. Beijos
Fátima:
Obrigado por vires desbastando a nossa ignorância crassa no que à nossa terra e às nossas gentes diz respeito. E que interessante é a hipótese de Rebordainhos ter origem nesse (indiscutível) castro que foi o Cabeço Cercado.
Bjs
A. Fernandes
permite-me que te exprima a minha ignorância acerca de tudo o que escreves neste 1º capítulo da tua lenda. O mesmo acontecerá, certamente, nos restantes capítulos. Mas sabe-me bem ler aquilo que nos escreves e ensinas, decorrente certamente de longas horas de estudo.
Parabéns mana. Razão tenho eu em dizer-te que deverias ir mais longe!
Bj
Elvira
Será mais história do que História, mas bem-haja pela gentileza.
Beijos
Eduarda
Parece que sim... mutatis mutandis!
Beijos
Tonho [Braz]
A cerveja é das bebidas mais antigas criadas pelo engenho humano. Mais velha que a Sé de Braga!
Beijos e obrigada pela tua constante gentileza
Tonho
Enquanto historiadora não posso afirmar que o Cabeço Cercado é um castro no sentido de espaço urbano habitado por uma comunidade. Do que não restam dúvidas é que se trata de um espaço fortificado, mas isso não o localiza, necessariamente, no tempo em que me interessa colocá-lo. São muitas as dúvidas para poder dizer essas coisas sem ser na versão lendária.
Beijos e bem-hajas pela ajuda que me tens dado.
Augusta
Muitas horas de estudo, sim, como quem pesca à linha: um bocadinho aqui, um bocadinho ali e lá vão nascendo as ideias.
A ignorância é de nós todos, porque quase nada sabemos desse povo extraordinário que foram os Zelas. Sobre eles está praticamente tudo por fazer, a começar pelas campanhas arqueológicas no distrito de Bragança. Creio que está a decorrer uma em Macedo, mas pouco mais (ou nada). Quase tudo o que temos resulta de achados ao ar livre: pedras zelas que foram aproveitadas para pôr num muro, numa casa, no mosteiro de Castro de Avelãs...
Mas a História também se faz de reflexão e de levantamento de hipóteses sobre o que existe disponível.
Beijos
Olá,
Gostei de ler (como sempre) e aguardo ansiosamente pelos próximos capítulos.
Partilho dessa tristeza de ver o Nordeste Transmontano tão pouco explorado arqueologicamente (e não só...). Vamos esperar("vir para a rua gritar") que os ventos mudem um dia...
Beijos
Rui
Já lá está. Espero não desiludir.
Beijos
Não é assim tão pouco o que se conhece de ciência certa. Mas claramente insuficiente para o que se almeja numa sociedade culta e respeitadora da sua identidade. Ficaria mais claro o ponto em que se encontram os conhecimentos se fossem aqui apresentadas as referências bibliográficas utilizadas, bem como referências a outros créditos, como mandam as boas práticas da História e da Comunicação.
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