terça-feira, 25 de setembro de 2012

ECOS DO MEU SENTIR -VIII-

POR: FILINTO MARTINS



Habituados à civilização deixámos as caminhadas, preferindo o automóvel, mas como os combustíveis estão pela hora da morte e as pernas necessitam de exercício, pois os anos vão pesando e alguma “neve vai na serra”, sacudida pelo vento deixa livre uma autoestrada, tento umas pequenas deambulações. Eis senão quando, olhando bem para o chão, não há por aqui vacas nem bois, mas há cães a mais, deparei na berma do caminho com umas figueiras-do-diabo.
Há quanto tempo as não via!... Há mais de cinquenta anos…

Calor, moscas, monotonia… aragem fresca de vez em quando. Ainda não havia televisão e as bibliotecas estavam à mão de semear, pois meu pai embora analfabeto era uma biblioteca-viva do saber. Como eu gostava de o ouvir contar pequenas histórias da sua infância, do seu saber adquirido pelos anos de trabalho a fio, agarrado a um pau, que servia de bengala, sentado no carro dos bois, com o queixo sobre a mesma, ora enxotando as moscas, ora coçando a barba rara que havia de cair às mãos do Armindo da Eira, semana a semana, me contou:

- Sabes, uma vez havia um patrão muito rico que era cego e disse ao criado:
- Amanhã, bem cedo, quero ir ver um terreno… aparelhas o melhor cavalo.
Logo eu atalhei:
- Se era cego como ia ver o terreno?
- Espera…

Com a mão calejada matou uma mosca que o não deixava livre no seu discurso… “Já foste, carai…”

- A terra era longe, pai?
- Se era… mas o cavalo andava bem. Olha que havia bons cavalos naquele tempo. Depois de muito andarem o criado parou e disse-lhe:
- Meu amo, estamos na terra que queria ver.
- Está bem. Olha: vais contar os passos da terra na largura… o comprimento não interessa.
- Vou começar, mas o meu amo segure a arreata. – Disse o criado.
- Não. Prende-me antes o cavalo a uma figueira-do-diabo.
O criado olhou à volta e disse-lhe:
- Patrão, aqui não há nenhuma figueira-do-diabo!
- Então escusas de contar os passos, vamos embora.

Como o meu pai tentou matar outra mosca e ficou calado, eu perguntei-lhe:
- Porque é que ele já não quis que contasse os passos?
Após um curto silêncio, sorriu, fechou os olhos e acrescentou:

- Ó burrinho, terreno onde não há figueira-do-diabo, não presta… Percebeste tu agora, como é que ele viu o terreno e era cego?


9 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Filinto

Antes de mais, quero agradecer-lhe por ter regressado ao nosso convívio. E com que texto! Relembra-nos o seu pai, o Sr. Adriano, que nos dá grandes lições:

que a arte de bem ensinar passa pela paciência ("espera", disse-lhe ele, em vez de se zangar com a sua pressa, mas sem lhe matar a curiosidade);

que o saber útil se aprende melhor através de uma boa história;

que se pode ser sábio sem ter os sentidos todos, porque o mais importante é saber pensar (o patrão da história);

que se pode ser uma "biblioteca-viva" sem saber ler, pois é a vida que nos ensina o que de mais importante temos para a poder viver. Não foi Pacheco Pereira quem, já no distante séc. XVI, nos disse que "a experiência é a madre de todas as cousas"?

Gostei tanto, Filinto! Bem-haja.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Ainda cá volto, porque me pus a pensar na história (e com que remorsos me lembro da falta de paciência com que dei hoje a última aula...):

De facto, se as figueiras do diabo crescem em todo o sítio, terra onde as não há não pode ser grande coisa. Assim é que é: vivendo e aprendendo a fazer boas deduções!

Augusta disse...

Amigo Filinto:
Como é bom sentir-te mais uma vez entre nós. E como diz a Fátima, com que história! Como foi bom recordar o sr Adriano que, com o seu saber de experiência feito, tão bem o soube transmitir aos filhos. E, através da sua lembrança, recordamos também o nosso, e todos os outros que incutiram nos seus os verdadeiros valores do saber viver em sociedade. Assim saibamos nós eternizar os seus ensinamentos.
E Filinto, nunca é demais passarmos para a escrita aquilo que, como tu dizes, estas bibliotecas nos transmitem. Afinal, de tempos a tempos, vamos ficando com uma a menos.
Desafio-vos assim, a que continueis a dissertar acerca desta e doutas bibliotecas.
Um beijo

Elvira Carvalho disse...

Um texto muito interessante, onde se percebe a sabedoria dos antigos.
Um abraço

M3C disse...

Tio Filinto!

Que bonita a história do avô Adriano. Ele era realmente um contador de histórias...
Deixo aqui também o meu testemunho:
certo dia estava em casa a falar com a minha mãe, já com o saco às costas para ir para Vila Real (estudar), estava a choramingar, já nem sei porquê!!!de repente o meu avô sem saber o que se passava diz-me com voz meiga e chorosa:
"Marta se precisares de alguma coisa escreve-me"
FRASES DO MEU VIVER...
Os nossos avós são realmente pedras preciosas, ainda que velhinhos, fazem-nos tanta falta!
Na hora de me despedir para ir para Vila Real dava-me sempre uma notinha, mas às vezes, ou por esquecimento ou por não a ter a modo não me dava nada, depois lá ficava a matutar e no cimo das escadas lá gritava ele "Marta anda cá" e toda lesta lá ia eu buscar a notinha que em tempos de estudante tanto jeito dava.

Bjs para todos.
M3C

António disse...

Olá Primacho:

Ainda bem que voltaste. Ainda por cima com esta rica história das que o teu pai contava. É uma justa homenagem que tu prestas ao homem sábio que ele era. Para mim, quando me ponho a olhar para os temos idos, é um dos símbolos da sabedoria na nossa terra. Sabedoria que só o tempo e a paciência dão, juntamente com o meu tio Zé Çuca, o sr. Amadeu... e outros. E temos nós que chegar a velhos para percebermos isto com toda a nitidez!
Continua a escrever, rapaz, como tão bem sabes e a matar-nos saudades desses nossos tempos de aprendizagem e traquinices.

Um abração

António F.

Rui disse...

Infelizmente já me não recordo do Sr. Adriano.
Ainda bem que são prestadas estas homenagens às pessoas que já partiram. Agradeço por poder ler estas histórias, que são guardadas por cada um. Obrigado ao Sr. Filinto por tê-la partilhado.
Infelizmente Rebordainhos está perdendo a sabedoria, à medida que vai perdendo as pessoas, restarão por fim as pedras, sem nada para ensinar.

Ribordayn disse...

Uma lição de sabedoria...
Saudades dos tempos que convivi com essas pessoas.
Parabéns Filinto por partilhares um pouco dessa sabedoria connosco.

Abraço

Zeza disse...

Tio Filinto
Realmente o avô, apesar de não ter ido aos bancos da escola era uma biblioteca de sabedoria.
Esta é uma bela lição de que devemos ter paciência (algo que hoje me dia nos é difícil).
Zeza