Um outro conto da montanha
por
António Carloto e Ilda correia
Chegados à aldeia, não foi muito fácil ver a festa
dos Reis como se fôssemos dois estranhos vindos da cidade; desde o início todos
os vizinhos nos abriram as portas de suas casas e partilharam connosco a mesa
que estava posta, aguardando a chegada do careto e dos cantadores. Tornaram-nos
parte da comunidade.
O primeiro momento que nos fez realmente abrir os olhos foi a paragem à porta do cemitério, efetuando-se as orações. Pareceu-nos um momento mágico em que o careto assume, mais do que nunca, a sua ancestral ligação entre os que agora rezam e aqueles que já partiram.
O primeiro momento que nos fez realmente abrir os olhos foi a paragem à porta do cemitério, efetuando-se as orações. Pareceu-nos um momento mágico em que o careto assume, mais do que nunca, a sua ancestral ligação entre os que agora rezam e aqueles que já partiram.
Pudemos verificar que a maioria dos lares pediu para rezarem; o nível etário da população não será estranho a este facto, mas confere à visita uma dimensão religiosa que só terá equivalente no compasso pascal.
A população da aldeia pareceu-nos muito recetiva,
creio não ter havido casas que recusassem a festa. Em algumas delas, o telefone
estendido a enviar o canto dos Reis para o estrangeiro deixou-nos um pouco sem
palavras, imaginando como seria estar do outro lado da linha; ainda alguns
pequenos gestos, como uma neta que abraça a avó enquanto se canta, diz bem do
alcance simbólico do momento.
Surpreendeu-nos o cantar polifónico das quadras, com os cantadores em cruz, à semelhança do que se fazia até à década de 60, em algumas zonas do país, nos cânticos das almas. As quadras sobre os reis magos, Cristo Redentor, ou mesmo a do raminho, pareciam vindas de um passado que só conhecíamos dos livros de história.
E o careto?
Diabo cristianizado e, talvez por isso,
sobrevivente até aos nossos dias (como em Bemposta – Mogadouro e Montamarta –
Zamora) foi sempre o primeiro a entrar dentro das casas. É um caso único em que
um mascarado é coprotagonista de uma festa religiosa como o cantar dos Reis.
Muitos contribuíram com uma moeda de esmola, mas a maçã que transporta é mais
do que um mealheiro, é um símbolo de fertilidade nas suas mãos, a quem fazemos
um pedido para um bom ano agrícola ou de saúde. O enterrar da moeda no fruto
como uma enxada entra na terra. Que o portador dos nossos desejos tenha também
um bom ano.
Pensando nas coisas alguns dias mais tarde, a nossa
passagem por aí pareceu mergulhar-nos num conto de Miguel Torga, feito de terra
e pessoas com uma dimensão da paisagem que se vê das vossas janelas.
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António Carloto e Ilda Correia são o gentil casal de Coimbra que nos visitou no dia de Reis. Ambos tiveram a generosidade de escrever para nós o belo texto lá de cima e, perante o meu "Deus vos pague", responderam à maneira mirandesa: "Ya stá pago."
4 comentários:
António e Ilda
Tenho a certeza de que todos os nossos leitores vão sentir uma profunda gratidão por aquilo que escreveram e pelo modo carinhoso com que o fizeram. Por mim, ainda tenho que agradecer as fotografias que ilustram o artigo, que também são vossas.
Muitos parabéns para os reporters, que contam com tanta getileza e verecicidade, os acontecimentos simbólicos de um cantar de reis que já faz parte integral das nossa lindas tradições.
Bem-hajam António e Ilda, afinal é o meu nome e o da minha mãe! Abraço fraterno
EMOCIONANTE.
UM ABRAÇO E BOM FIM DE SEMANA
Obrigada Ilda e António pelo precioso contributo e singular descrição dos nossos reis.
Ficamos gratos pela vossa simpática e amável visita e, como costumamos dizer por cá, voltem sempre. Recebê-los-emos de braços abertos. E, já agora, como dizia Zeca Afonso, "venham mais cinco", e "traz outro amigo também".
Um abraço para os dois
Augusta
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