quinta-feira, 25 de abril de 2013

NEM QUE FOSSE SÓ POR ISTO


Ora amarelos, ora verdes, dobrados em partes, deixavam ver no exterior algumas linhas traçadas a negro. Eram os aerogramas.

Chegavam ao ritmo do possível; aflita a espera se havia demora. Lá dentro, algumas palavras calculadamente riscadas no intuito de impedir a leitura do engano ou da mensagem. E nós sem sabermos se fora o autor ou alguém sem nome nem rosto nem corpo, mas tão presente, tão abafadoramente presente, como o medo da guerra e o temor pelos nossos.










Os aerogramas eram lidos com a avidez de quem sacia longa sede. Primeiro baixo, movendo os lábios. Era assim que a mãe bebia cada palavra dos filhos e os outros presentes ficavam suspensos dos rictos desses lábios e das pausas que faziam. No fim, a mãe dizia para uma das filhas: "lê lá tu, alto." E no fim: "Lê outra vez." E em cada leitura pedia que se repetissem passagens, como se quisesse gravar aquelas palavras para ser capaz de as reproduzir para si própria, imaginando a voz dos filhos. Só o pai assumia comportamento diferente: sentado, cabeça descaída, olhar fixo no chão. As mãos cruzava-as sobre os joelhos, para que ninguém visse quando cravava as unhas na carne, a esconjurar a dor.

Nos aerogramas falava-se da saudade e do carinho, perguntava-se pela família, sendo eloquentes pelo que silenciavam e nós nem nos atrevíamos a supor. Calava-se o medo e iludia-se a morte.

Um dia, de madrugada, duas canções: primeira senha, segunda senha. Começara o fim do medo. Não tardaria, aqueles que escreviam os aerogramas diriam, ao vivo, as misérias que viveram, em catadupa, como se tivessem medo de esquecer e quisessem fazer de nós testemunhas.

Bem-haja quem no-los devolveu.

*****
O aerograma amarelo foi retirado
daqui e o verde daqui.


Texto escrito em  25/04/2008

Hoje, podendo, não deve perder a leitura deste magnífico artigo de F. Fernandes no DN

7 comentários:

Augusta disse...

E porque já lá vão 39 anos, muitos não o sentem porque outros não lhe souberam transmitir esse "SENTIR ABRIL".
"hoje é o 1º que vejo com um cravo", disse a sra da caixa ao meu marido que, como eu, ano após ano persistentemente compramos um ramo de cravos vermelhos. Eu coloco-os numa jarra. Ele ostenta orgulhosamente um na lapela. talvez porque também ele usou os aerogramas em tempo da guerra colonial. E, talvez por isso, o sentir de Abril seja mais sentido.
Abençoadas pessoas que tiveram a ousadia de o sonhar e concretizar.

antonio disse...

Fátima: o teu rexto emocionou-me fazendo-me recuar no tempo, nas atitudes e nos sentimentos... como sempre, uma descrição dos fatos decorridos com os mobilizados para uma gurra de interesses, e um sofrimento atroz, dos que encontravam um pouco de reconforto, nos desabafos censurados, enviados através dos aerogramas, única fonte de comunicação, com os familiares, e madrinhas de guerra. Eu, tive a sorte de não ser mobilizado, mesmo assim desperdiçei 26 meses da minha vida... vivi-os apreensivo, receoso, e revoltado com a imposição governamental... vivi também de perto, aquelas más noticias que deixaram tantas familias a chorar enlutadas, e as outras com o coração "n'um punho" durante longos meses, impotentes, vivendo da fé e esperança do regresso feliz.Bem-hajas pela homenagem prestada com tacto, lucidez, e requinte.
O 25 de Abril não nos trouxe só a liberdade de expressão...
Beijos saudosos e gratos por teres retomado os remos do baco onde tanto gostamos de viajar...

antonio disse...

Volto cá.
Relendo o texto, reparei que tinha aparecido no JN nas datas expressas, o que não altera nada ao meu raciocínio e consideração, pois sei perfeitamente que podia ter sido escrito por ti... e tem mérito quem vai à procura das coisas interessantes sabendo escolhê-las.
As ligações para os aerogramas são astucias que terás de me enssinar um dia...beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

Ontem, como é costume, fui descer a Avenida. Não posso deixar de participar nas festas de Abril, por maior que seja o cansaço.

Também eu tenho sempre cravos em casa. Antes, era o João que me acordava de manhãzinha, para mos oferecer; agora sou eu que os encomendo, para que me não faltem. Este ano até aconteceu uma notazinha de ternura: quando os fui buscar, reparei numas lindas cravelinas que a florista lá tinha. Naturalmente, o pensamento dirigiu-se-me para a nossa mãe e para a memória dos vasos que tinha na varanda. Tirei um dos pés para trazer também, para pôr junto à fotografia dos nossos pais.
"Porque há-de levar o mais pequeno?" perguntou-me a florista, enquanto escolhia o maior. Juntou-o aos outros cravos e não mo deixou pagar.
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Se a lembrança dos aerogramas continua a ser um dos meus maiores pesadelos, nem quero imaginar o que significarão para quem os escrevia do outro lado da guerra!

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Bem-hajas tu, pelas palavras que me diriges.

O texto foi, mesmo, escrito por mim, em 2008 e publicado naquele que, então, era o meu blog. Só por falta de tempo é que não escrevi outro e fui buscar este que os leitores do Rebordainhos não conheciam.

No fim pus a ligação para um artigo que Ferreira Fernandes escreveu no Diário de Notícias (ontem, 25 de Abril de 2013). É um texto extraordinário e quis partilhá-lo como os leitores do blog. Termina assim:

"Hoje é o 25 de Abril. Eu amo-o como se fosse ontem. Sobretudo por pequeninas coisas que me recordam que antes dele foi há mais de um século."

A liberdade de expressão de que falas é apenas uma dessas "pequeninas coisas" a que também aludes.

Bem-hajas

Elvira Carvalho disse...

Emocionei-me com a leitura. Lembro-me bem dos aerogramas e creio que ainda tenho alguns guardados no fundo de uam mala. Em quato anos de namoro recebi muitos "bate-estradas" era assim que lhes chamavam. Depois casei e passei a acompanhar o marido nas comissões. Em Moçambique e Angola. Estava em Luanda no 25 de Abril e estivemos lá até um mês antes da independência. Meu marido estava na altura no comando naval de Angola e eu empregada na secretaria do Colégio Cristo-Rei dos Irmãos Maristas.
Um primo meu morreu numa emboscada no leste de Angola, outro foi gravemente ferido na Guiné e acabou por morrer antes dos 40.
Por tudo isso valeu a pena o 25 de Abril.
Um abraço e bom fim de semana.

Amiga estou com um problema no Sexta que não sei como resolver. Já pedi ajuda a montes de gente no blogue e no FB. Não sei se me sabe ajudar. O feeds do blogue não está a fazer actualizações. Quem me acompanhava pela sala de leitura diz que não há atualizações desde o dia do pai, e quem o faz pelos links da sidebar também não vai ao blogue pela mesma razão. Será que me pode ajudar?
obrigada

Fátima Pereira Stocker disse...

Elvira

Bem-haja pela sua visita e pelo tanto de si que sempre aqui deixa.

Obrigada, ainda, por insistir na caixa de comentários, tendo em conta a dificuldade, mas o spam era tanto que não tive alternativa.

Retribuí a visita. Temo não ter sido de grande ajuda.

Beijos