sexta-feira, 9 de maio de 2014

AS NOSSAS PALAVRAS

as lojes

Quase sempre havia duas lojes: a das vacas, por debaixo do palheiro, e a dos porcos, normalmente sob o sobrado da casa de habitação, nesse caso dividindo a área com o baixo.
As lojes eram espaços amplos. Na loje das vacas, a manjedoura de madeira constituía o único equipamento e estava colocada a uma altura que permitia aos animais uma posição confortável enquanto comiam. Às vezes, a burra partilhava a guarida com as vacas, sem melindres de vizinhança. Não era assim, no presépio?
Manjedoura é palavra interessante: da família de “manjar”, que actualmente só usamos como substantivo, foi outrora verbo sinónimo de “comer” (Já não tinham que comer/já não tinham que manjar. Lembram-se da Nau Catrineta?). Enquanto substantivo, manjar significa iguaria, alimento requintado, digno da mesa do rei. Não seria pelos condimentos que a refeição das vacas se assemelhava à dos príncipes, mas o perfume que dela emanava superava-a, certamente. As nossas vacas comiam feno no Inverno, ferranha na Primavera e erva fresca no Verão, ora segada à gadanha e servida na loje, ora pascida directamente no lameiro, vigiadas pelos filhos mais novos da casa. As verdes hastes do milho também serviam de alimento a estes animais. Embora em comedouro separado, a burra alimentava-se do mesmo. Os coanhos, enquanto os houvesse, faziam-na ornear de satisfação.
Um prego espetado na parede, ou numa trave,  servia de embarradouro das focinheiras, noutro prego dependurava-se o lampião que se acendia nas visitas nocturnas e, noutro ainda, os chocalhos que não sei que utilidade tinham, a não ser a de encantarem os ouvidos com a melodia do seu tinir. À ombreira da porta encostava-se a vara de tanger as vacas. Nada mais existia na loje destes animais. O jugo, o carro e demais instrumentos de trabalho bovino, assim como a albarda da burra eram, quase sempre, guardados em lugar à parte.
Na loje dos porcos, em vez da manjedoura existiam duas pias, ou mais,  consoante a dimensão delas e o número de comensais. Uma era feita de um toro escavado e servia de bebedouro; a outra era de cantaria e nela se despejava a bianda, cozida num caldeiro ao lume no Inverno, ou servida crua no tempo mais quente. É da sua função de cozer, aquecendo, que vem o nome ao recipiente (assim como ao nosso caldo a que nunca chamámos sopa): de caldus que significa, exactamente, “quente”.
A bianda era variada: se cozida, fazia-se de castanha mamota; de batatas e das cascas daquelas que as pessoas comiam esbulhadas, de couves de penca ou dos toros das couves galegas desperdiçados das que se cortavam para o humano caldo de coubes; de nabos e de maçãs; de restos das refeições da casa, tudo enriquecido com os farelos de peneirar a farinha para o pão. Se crua, porque fornecida em tempo de renobo abundante, a bianda era constituída por patarrabos cuidadosamente limpos e cortados, abóboras também cortadas, que nós alcunhámos de bóbedas folhas de olmo agilmente ripadas por quem sabia engatar às árvores, tudo isso envolvido nos constantes farelos.
Caso não existisse outro espaço disponível, uma trave da loje dos porcos (ou um pequeno sobrado suspenso) servia de galinheiro, somente para as pitas, perus ou parrecos dormirem, porque durante o dia andavam à solta, ciscando de tudo enquanto a dona lhes não servia os farelos amassados com as porretas das cebolas ou com as couves cortadas colhidas da horta. Às vezes, uma mancheia de grão ou de arroz era tudo quanto bastava para as contentar. No ninho feito a um canto deixava-se o indez, para que nenhuma fêmea fosse pôr os seus ovos noutro lugar. Se a fêmea estava choca, os ovos eram metidos num cesto forrado a palha e levados para a cozinha para que não apanhassem frio. A pita, mãe extremosa, não saía de cima deles e bicava mão estranha que se aproximasse – mesmo que os ovos fossem de perua ou de pata.
Podendo ser, a loje dos coelhos ocupava lugar separado, mas não havendo outro, a sua rede de malha fina era montada na loje dos porcos. Atreitos a maleitas, os coelhos exigiam selecção cuidadosa das ervas que comiam, que deviam estar secas ao ser-lhes servidas. Deliciavam-se com mantrastos e giestas floridas.
Dono que se prezasse acomodava os animais da casa antes de ele próprio e a família se sentarem à mesa da refeição. Dono que se prezasse tinha brio em que as suas vacas ostentassem lombo farto e pele luzidia, sem mancha de bosta.  Dono que se prezasse apenas se servia da vara para orientar a cria, jamais usando o aguilhão que maltratava. Dono que se prezasse passava a noite ao lado da vaca e da porca afrutadas, para as acompanhar no momento da parição. Dono que se prezasse poupava a vaca parida, não a jungindoe evitando o espectáculo lamentável de ver o leite a escorrer das tetas da mãe que bramava angustiada enquanto o vitelinho chorava com fome e saudade. Dono que se prezasse estrumava às vacas e aos porcos, basta e frequentemente, e tirava-lhes regularmente o estrume pois, sendo criaturas de Deus ao seu serviço, era justo que lhes agradecesse cuidando do seu bem-estar. Esta é das lições mais importantes que aprendi de meus pais e da gente de bem de Rebordaínhos.

17 comentários:

Elvira Carvalho disse...

Um excelente texto que me levou a conhecer uma casa rural, do norte.
Fez-me lembrar da casa da avó Carmo.
Um abraço e bom fim de semana

antonio disse...

Boa-tarde Fátima.

Belas lembranças que alimentam o ego de cada um de nós… as coisas mais simples e consideradas insignificantes tem o seu valor mesmo que seja sentimental. Os animais que durante décadas fizeram parte integral do nosso dia-a-dia, nas diversas tarefas, trabalho e companhia, apesar de isentas de alma, são seres vivos que merecem a nossa consideração, respeitando, a amálgama no sentido figurado…
A ornamentação do teu texto, faz-nos voltar atrás no tempo, em que dois grandes homens, lutadores, honestos, e sempre dispostos a ajudar o próximo, sem chichis nem pretensões que fazem das pessoas hipócritas, e intransparentes, víboras que picam e matam pelo prazer, pessoas excecionais.
Os estábulos,( loges) que descreves tão bem, eram as casas de animais, estrumadas com palha nova, como para recompensar os esforços diários, e os sacrifícios engendrados em tempos frios ou quentes.
Bem-haja por mais um bonito texto. Beijos

Américo Pereira disse...

Olá Fátima, os meus cumprimentos. Mais uma vez o texto que apresenta
faz com que a pessoa, ao mesmo tempo que lê, recorda o trabalho
da infância. Não têm conta a erva,
milho, ferranha e grelos que os
meus ombros suportaram até chegar
à manjedoura. Também, embora mais
suave, a palha que era necessário
ripar dos medeiros e o feno dos
palheiros. E quando se tratava de
sacos de nabos que para arrancar,
em certas ocasiões, estacam como
que colados à terra com o gelo.
E os serões passados a retirar a
casca das castanhas para a ração
dos porcos. Recordações que me
fazem sorrir de saudade.

Fátima Pereira Stocker disse...

Elvira

Apesar das diferenças regionais, deve haver muitas semelhanças entre as terras do nosso País.

Obrigada

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Antes de mais, bem-hajas pelo modo como te referiste ao meu pai e ao tio António.

Aquilo que disseste sobre os animais secunda aquilo que escrevi e que via praticado pela maior parte das pessoas. No entanto, havia excepções que eram sempre alvo de reparo pela gente de bem.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Sr. Américo

Fico-lhe sempre muito grata. Com efeito, tal como o senhor, era essa a vida dura da gente de Rebordaínhos: transportar às costas a carga porque nem sempre era possível contar com o carro de bois ou com a burra. A apanha dos nabos devia ser das mais dolorosas, conforme descreveu por causa do gelo que endurecia a terra, ou por causa da neve que era preciso arredar para poder puxar pelas folhas.
Lembrou-me do milho que as vacas comiam. Vou já acrescentar.

Beijos

Anónimo disse...

Há muitos citadinos peneirentos que desprezam a agricultura, não se dando conta de que a atividade agrícola é a maior conquista de sempre da Cultura da Humanidade. São textos como este que contribuem para a elevação cultural do nosso povo.
Deixem-me também atirar ao ar estas quinhentas e sessenta e três pérolas, para quem as queira apanhar:
Na época de 1939/1940 o Futebol Clube do Porto foi campeão nacional. Enquanto decorriam pelas ruas e praças da cidade festejos populares que incluíram bailes, fogueiras para saltar, sardinhas assadas- com pimentos-, praxes académicas- com caloiros a espojarem-se no chão - e lançamento de fogo-de-artifício sobre o rio Douro, todas as noites, sem parar, durante mais de dois meses, começou a germinar, na cabeça de um visionário que então dirigia o clube, a ideia de erigir, numa zona nobre da cidade, um monumento à glória eterna do FCP. Não demorou muito até que contratasse um famoso escultor inglês, sem cuidar de saber se o artista estava a par do campeonato português de futebol. Ora, acontece que o inglês não percebia patavina de futebol e, por outro lado, gostava de beber vinho do Porto “à canada”, mas, perante uma proposta tão tentadora, fechou-se em copas. Como conhecia uma praça na cidade onde existia uma fonte muito bonita, de bronze, com leões a deitarem água pelas bocas, deduziu, apressadamente, que o símbolo do Porto era o leão. Com as suas convicções erradas, deitou imediatamente mãos à obra e o triste resultado de tanta boa vontade é o que hoje se pode ver, no centro do jardim da Praça Mouzinho de Albuquerque, a encimar um alto pedestal de pedra: uma escultura de bronze em que um possante leão pisa orgulhosamente as asas de uma grande águia derrotada e exangue. O escândalo rebentou no próprio dia da inauguração, mas como o artista era célebre e estrangeiro, as autoridades- civis, religiosas e militares- reuniram-se para, em concerto sinfónico, abafarem tudo, perante o povo indignado que via um leão onde devia estar um dragão. Contudo, todos sabiam que o símbolo do dragão fazia parte das próprias armas da cidade, até há poucos anos atrás, e desde sempre pertencia ao emblema do FCP. Os sábios atabalhoaram-se nas explicações, mas lá foram dizendo que não, que não, aquilo afinal não passava de uma cena vulgar da vida selvagem, os animais esculpidos não tinham nada de simbólico e, muito menos, representavam o Benfica, o Sporting ou o Porto… A populaça não se deixou enganar, mas, como havia medo da PIDE, nunca mais se falou do monumento que, assim, foi votado ao mais completo desprezo…
Eu também não gosto do monumento, pelo acho que ninguém me leva a mal se me servir deste fórum para lançar um simples apelo à Associação Sociocultural do Lobão (ASCL):
Caros lobões,
Porque não fazem uma campanha de angariação de fundos, dirigida às populações da União de Freguesias do Lobão, Gião, Louredo e Guisande e da Cidade do Porto, com vista à reabilitação do monumento da Rotunda da Boavista?
Como quem teve a ideia fui eu, aceito que deve recair sobre mim a incumbência espinhosa de redigir o guião das obras de beneficiação. Ei-lo:
Contratem uma grua, subam ao monumento, tirem o leão de cima da águia, tragam-no cá para baixo, mandem-no fundir e verter em moldes, de onde, posteriormente, saia um dragão de patas fortes, que deverá ser içado para cima da ave benfiquista e apetrechado com alta tecnologia, de modo a que, a cada trinta minutos, cuspa, pela boca e narinas, labaredas de fogo para cima das penas da águia que acabará por ficar mais negra do que um tição!
PS: O texto está truncado porque a computador impediu-me de enviar um maior número de carateres.

Fátima Pereira Stocker disse...

Para os mais distraídos ou que não conheçam o Porto

O monumento referido pelo anónimo, na Rotunda da Boavista, é dedicado às guerras contra o invasor Napoleão (costumamos chamar-lhes Guerras Peninsulares, embora eu não goste da designação). O conjunto inspira-se nas colunas triunfais mandadas erigir pelos imperadores romanos, em que mandavam que se contasse a história das suas vitórias. No caso portuense narra-se, através de alguns conjuntos escultóricos, a vitória dos portugueses sobre os franceses. No topo da coluna, um leão representa a Inglaterra que nos auxiliou a derrotar Napoleão, simbolizado pela águia imperial. É por isso que o leão crava as garras na águia que está mortalmente ferida.

O leão, que é horrendo, talvez signifique, nessa fealdade, a antipatia do escultor pelos ingleses (o escultor era Alves de Sousa) Nada me autoriza a dar este palpite, a não ser o facto de esta ter sido uma obra de iniciativa republicana e, na memória de todos, estava bem presente a humilhação que foi o Ultimatum britânico a Portugal em 1890. Apesar de a iniciativa ser republicana, a obra só foi concluída durante o Estado Novo - tal como o monumento homónimo de Lisboa.

Fátima Pereira Stocker disse...

Anónimo

Eu espero que não esteja a comparar os meus conhecimentos da vida quotidiana de Rebordaínhos com os do "escultor inglês" sobre o futebol português!

Entrando na brincadeira, porque não se trata de outra coisa: Salazar mandou concluir dois conjuntos escultóricos (o do Porto por si referido e o do Marquês de Pombal em Lisboa)em que os leões surgem rugindo a sua força; ao mesmo tempo, mandou concluir também o monumento aos heróis da guerra peninsular em Lisboa em que, tal como no do Porto, a águia surge agonizante. Agora pergunto eu: e ainda dizem que o Salazar protegia o Benfica???

Sobre o texto truncado por excesso de caracteres: é sempre possível continuar o comentário abrindo nova caixa de diálogo.

Receba cumprimentos desta benfiquista (pouco praticante, como deviam ser todos os clubismos, para que se evitassem discussões soezes)

Augusta disse...

Fátima:
Mais uma bela descrição que nos apresentas. Desta vez não acrescento mais nada. Vou apenas referir-me à felicidade que a cara do nosso pai parece irradiar. E com que alegria e orgulho ele se referia às suas vacas. Depois, quando já não as tinha, era com ua enorme nostalgia que nos contava aventuras e trabalhos que havia tido anteriormente.
Agradeço, pois ao Tonho as palavras que escreveu relativas ao nosso pai e também ao tio António.
Depois...ele há cada um!! A propósito do quê é que o FCP foi para aqui chamado? É caso para perguntar: o que é que o "sim senhor" tem a ver com as calças?
Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

Tens razão. Da cara do pai transparece satisfação: a do dever cumprido, a da honra de sustentar a família e de ajudar quem precisasse do seu trabalho. Como lhe brilhavam os olhos, um brilho que nunca esmoreceu nem com a idade nem com a doença.

Beijos

Rebordainhense disse...

Obrigado dona Fátima por nos esclarecer á cerca do monumento na Rotunda da Boavista no Porto.
Este anónimo alem de ser aloulado é do Porto, Poçaaaa.
Bem,uma coisa não podemos negar! É que tem uma imaginação fertil! inverter o simbulismo da estatua é obra! Das guerras invasoras, para as glórias do FCP! Que mente brilhante! Os alucinantes fazem-te efeito!

Rebordainhense

Anónimo disse...

Vai dar uma volta à cerca!

Anónimo disse...

Senhora Dona Fátima Stocker,
Os seus conhecimentos são muito superiores aos de qualquer escultor.
Não gosto do monumento porque o horrível leão em cima da grande águia
transmite a ideia de que a Inglaterra teve uma grande vitória sobre a França, postergando os portugueses para um papel completamente secundário de vítimas mortais, na base do pedestal, de uma guerra em que as duas grandes potências reduziram Portugal a um campo de batalha. Este monumento ficava bem em Southampton, ou em Trafalgar Square, em Londres. Essa guerra teve consequências trágicas para Portugal.
O meu texto também é uma comparação irónica entre a cultura das gentes do campo e a falta de cultura de muita gente da cidade.
Cumprimentos.

Anónimo disse...

Recordar é viver como diz a canção.Recordo estes grandes homens de quem era amigo,apesar da diferença de idades. Se bem me lembro, a vaca do lado esquerdo foi por nós comprada ao teu pai.

Fátima, cumprimentos para ti e família

Duarte Pires

Fátima Pereira Stocker disse...

Anónimo

Desta vez estamos de acordo: devia ser o povoléu a figurar no cimo do pedestal.

Cumprimentos

Fátima Pereira Stocker disse...

Duarte

Obrigada pelas tuas palavras, de bom amigo. Nesse caso, vós ficastes com a Andorinha, que passou das mãos de gente boa para as mãos de boa gente.

Beijos para ti e tua família