sábado, 7 de junho de 2014

AS NOSSAS PALAVRAS

os baixos

1: objectos

Quando decidi escrever sobre os baixos, a primeira coisa que me veio à lembrança foi o cabaz de minha mãe dependurado de um prego da trave grande de um dos baixos da casa. É uma presença insignificante, se comparada com o resto que lá se guardava, contudo, foi disso que me lembrei. O apelo do amor é muito grande. Era um daqueles cabazes de palha, percorrido ao través por uma lista vermelha que o enfeitava com desenhos que, não o sendo, a mim me pareciam flores. Como associar outra imagem à pessoa da mãe? Havia outros cabazes, de verga, rígidos, que assentavam sobre quatro pezinhos e que tinham duas abas laterais que se abriam e fechavam. Aos meus olhos de criança assemelhavam-se a castelos e pareciam-me muito mal jeitosos para serem transportados. O cabaz era a malinha de mão das mulheres da aldeia. Usavam-no quando iam à cidade e nele guardavam as compras que tivessem feito. O cabaz era por isso,  sinal indicativo da origem de quem o transportava.

Quando nos decidimos a pensar nisso, damo-nos conta da enorme variedade de objectos que povoavam os nossos dias e que guardávamos nos baixos:

- o cesto grande e redondo de verga branca, arrematado por uma fiada de um palmo da mesma verga, entretecida de forma artística, e que usávamos para recolher a roupa à espera de ser passada a ferro ou para transportar a comida que alimentaria os segadores na segada. Este cesto, caso não existisse alternativa, era carregado pelas mulheres que o punham à cabeça sobre um rodilho previamente enroscado em torno dos dedos estendidos de uma mão aberta em leque. A canastra de verga larga, de forma rectangular, servia o mesmo propósito. Se a casa possuísse burro, o cesto ou a canastra eram transportados no seu lombo e, conforme as horas, na mão de uma mulher seguia a lata do caldo ou do café, de esmalte azul ou branco debruado a azul escuro. Dentro dos alforges, nas bolsas que pendiam de cada um dos lados, metia-se o garrafão de vinho e outras coisas necessárias ao bom trato devido a quem trabalha;

- Outro cesto de verga, também redondo mas muito mais pequeno que, forrado de palha, servia de ninho para as pitas chocarem os ovos;
- As cestas de verga, com alça, serviam para tudo. Havia-as escuras, porque feitas de verga por descascar e havia-as brancas, porque feitas de verga descascada. As escuras eram levadas para a terra. Com elas se apanhavam as batatas e as castanhas antes de as meter na saca; nelas se metiam os produtos que fossem pequenos e que era preciso levar para casa, por exemplo, as batatas que seriam esbulhadas para o caldo. Às cestas brancas tentávamos mantê-las imaculadas pois era nelas que, embrulhado num rodilho, levávamos o almoço ao pai para que não estivesse só com o mata-bicho até ser meio-dia. Nelas também se punham os novelos de lã para fazer meia.

Ao longo das paredes distribuíam-se os instrumentos de trabalho: enxadas, sachos, pás, espalhadouras de ferro para arrancar o estrume ou de pau para içar a palha para o medeiro, gãechas (1), engaços com dentes de ferro ou com dentes de pau (para juntar a palha na eira ou o feno no lameiro), o ferro que se usava como alavanca para levantar pedras quando era preciso limpar as poças em dia de concelho, o maço, o malho e as cunhas de rachar lenha, a machada de a cortar e a serra grande de serrar as árvores e que exigia o pulso de dois homens, ou o serrote das podas que também serrava o piceperno. Era com a serra grande que a rapaziada, montada num carro das vacas, serrava um caldeiro quando, a meio da Quaresma, se divertia a “serrar as velhas”, porta a porta das mulheres que fossem avós. A seitoura, a fouce e a gadanha, por serem perigosas, eram aconchegadas a um canto com todo o cuidado, não fosse algum raparigo ferir-se nelas. “Depois da segada feita, e ao lado da seitoura, era também pendurado o gadanho (primo ou irmão da seitoura) e os dedais do segador. Também era guardado o estojo completo para picar a gadanha: pedra, corno, safra e martelo.(2) Por ser perigoso embarrava-se, igualmente fora do alcance das crianças, o pulverizador de cobre com que se sulfatavam as batatas por causa da praga do escaravelho americano. Como não faltam traves nos baixos, nelas se suspendiam os crivos para crivar o trigo e o serôdio, não fosse alguma semente imprópria estragar a farinha, assim como as peneiras de  a peneirar sobre a masseira para fazer pão mais branco e guardar os farelos, tempero essencial da bianda dos porcos.


Nos baixos amontoavam-se os cobertores velhos onde se tinham secado os feijões e empilhavam-se as sacas de estopa, de cinquenta quilos, para encher do (pouco) trigo malhado, que os homens carregavam da eira até à tulha. Nestas sacas, à medida que fosse preciso, também se levava o grão até ao moinho ou à moagem, para dele ser feita a farinha que se tornaria o pão dos nossos dias. As sacas de serapilheira, mais grosseiras e maiores (90 quilos ou cem), eram usadas para levar à tulha o centeio malhado e para transportar da terra a colheita das batatas ou das castanhas. Umas e outras sacas eram previamente observadas pelas mulheres e cerzidas se tivessem algum buraco. As de serapilheira, dobradas canto com canto, desenhavam um capuz que os homens enfiavam na cabeça para se protegerem da chuva forte. A um canto, a balança decimal com os seus pesos estava sempre preparada para pesar aquilo que se pudesse vender ou que fosse preciso pagar. Os pesos também serviam para a diversão masculina, variante nossa do desporto tão olímpico como o da Grécia Antiga que é o lançamento do peso. Perto da balança, a carreta tanto servia para meter ou pendurar coisas como para a função de transportar.

Na altura das malhas, depois de entretecidos em trança com palha demolhada na poça, era no baixo que se guardavam os bencelhos com que se atariam os feixes que as mulheres levariam à cabeça até ao medeiro. Junto a estas cordas de palha punha-se o bassouro de carqueja com que se varria a eira. Enroscadas num oito do tamanho de uma braça, as grandes cordas de sisal sossegavam à espera do tempo do feno ou das acarrejas em que seriam desdobradas e atadas em volta do carro para protegerem a bendita carga de erva seca ou de moios de pão. Quer no tempo do feno, quer no das segadas, o pipo era tirado do baixo e levado para o campo e, do seu interior, por um buraco da largura de um dedo mèdinho, os homens sorviam o vinho que amaciava a dureza da labuta. O pipo, por ser de madeira, podia ser enterrado para manter a frescura da pinga, ao contrário da bota espanhola, usada para o mesmo efeito de saciar a sede e dar ânimo a quem trabalha.

Os moradores mais recentes dos baixos são os motores de rega e as respectivas correias, recolhidos mal terminasse o tempo do renovo. De acordo com a lembrança da nossa comentadora "Serrana", os motores substituiram os garabanos e, com eles, veio a necessidade do petróleo que iria substituir o azeite nas candeias e nos candeeiros de alumiar a família. Numa casa rural todos os espaços são afins.
 ______

NOTAS: 
1) Os dicionários registam a palavra “ganchas”, mas dizem que é o mesmo que ancinho (o nosso engaço), o que não corresponde àquilo que nós conhecemos. Por ter significado tão diferente e por me parecer que não responde integralmente à forma como a pronunciamos, preferi grafar a palavra como puderam ler.

2) O texto entre aspas corresponde ao excelente contributo de uma comentadora que assina com o pseudónimo "Serrana" (comentários do dia 16/06/2014, às 14h 26 min e às 15h 52 min) a quem agradeço essas e outras informações.

34 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Nota de edição

O cesto de chocar os ovos que a primeira fotografia mostra está envolvido na película do tempo que parou que é a teia de aranha. Enchi-me de carinho por ele há alguns anos, encontrado que foi no baixo de quem já não estava entre nós nem tinha ninguém que lhe preservasse a memória.

A segunda fotografia foi recolhida ao acaso na internet: muitas vezes só nos damos conta das imagens que não registámos quando precisamos delas e não as temos.

Américo Pereira disse...

Olá Fátima, os meus cumprimentos.
É giro e muito divertido o artigo
que acaba de publicar. Creio que
o melhor sedativo, neste momento,
foi ler o seu texto porque além de
começar a imaginar tudo quanto
descreve, serviu também para que
as dores da operação às hernias
fossem esquecidas. Sim é verdade,
fui operado no dia 3 às 18,30 e
no dia 4 voltei para casa.
Sei avaliar todo o trabalho que
tem para nos proporcionar estes
momentos tão valiosos.
Bjs. Américo

Augusta disse...

Fátima:
Do que tu te lembras! Mas olha, eu não me lembro da canastra em cima da albarda da burra. Lembro-me, isso sim, dela em cima da cabeça das mulheres. Quando a comida ia de burro parece-me que as panelas iam enfiadas nas alforges. As mulheres com uma das mãos seguravam a canastra e, na outra levavam a lata do caldo. Esta lata era habitualmente de esmalte azul. Mas também as havia de esmalte branco com um debrum azul escuro. E tinham tampa. Não te quero contradizer dado que, como sabes, a minha experiência nestas coisas é muito pouca. Mas independentemente da canastra ir em cima da burra ou na cabeça das mulheres, o teu texto está, como de costume, muito bonito.
Já agora, fico muito contente com o nº de visitantes no post anterior.
Beijinho

Fátima Pereira Stocker disse...

Sr Américo

Antes de mais, espero que as dores o estejam a abandonar: há companhias que dispensaríamos com gosto... Se teve alta tão depressa é sinal de que tudo correu bem; fico feliz por isso.

Muito obrigada pela sua sempre grande gentileza.

Beijos e as melhoras.

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

A tua experiência é igual à minha - quase nula, por isso acredito que a canastra fosse à cabeça, embora me lembre de que seja o cesto - imagem que sempre associo à tia Helena que, de rodilho na cabeça, dizia à mãe: "bá, bota cá!" E era um exercício duríssimo. Vou-me inteirar melhor.

Quando começo a escrever um texto tenho uma ideia genérica na cabeça. À medida que começo a escrever, as palavras vão ganhando uma autonomia tal que são elas próprias a estabelecer o rumo do texto. Tinha pensado escrever um artigo sobre os baixos e, na minha cabeça, iria falar essencialmente sobre a tulha. Como vês, falei de muita coisa, mas disso não e em vez de um artigo terei de escrever dois.

Ainda bem que te lembraste da panela de levar o caldo, que nem pela cabeça me passou.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

Acabei de ter uma lição que, não sei quando, há-de dar assunto para outro artigo.

Resumindo aquilo que aprendi com a Amélia: canastra ou cesto tinham a mesma função, embora a canastra, por ser maior, fosse usada quando havia mais segadores ou mais coisas para transportar. Uma e outro tanto podiam ir no lombo da burra como à cabeça das mulheres.

Nos alforges só se metia comida se não tivesse molho e não fosse quente, por exemplo, a salada de bacalhau. A lata do caldo é que, pelos vistos, ia sempre na mão.

Quem sabe, sabe. Já corrigi aquilo que não sabia e que me ajudaste a emendar.

Beijos e obrigada

Elvira Carvalho disse...

Um texto muito interessante mas fiquei com uma dúvida. Se bem percebi chamam engaços aos ancinhos.
Meu pai chamava engaço aos pés e cascas da uva depois de pisada para o vinho. Lembro-me que ele tinha um
"Sincho" ele chamava-lhe assim, mas nem sei mesmo como se escreve. Então ele espremia o engaço no sincho e depois mandava para um alambique onde lhe faziam a aguardente com ele.
Um abraço e uma boa semana

Anónimo disse...

Nós, enquanto comunidades ou pessoas individuais, somos, em larga medida, feitos de memórias. Quando um indivíduo perde as suas memórias, devido a um trauma qualquer, deixa de ser a mesma pessoa de sempre, tanto aos seus próprios olhos como aos olhos dos outros.
Algo semelhante poderia vir a ocorrer com Rebordainhos, se não houvesse gente com a têmpera de uma Fátima Stocker, ou de todos os seus ilustres colaboradores, incluindo nesse rol os humildes e anónimos comentadores dos artigos, que, quantas e quantas vezes, roubando muitas horas a um sono reconfortante e merecido, enchem as páginas da web com textos que vão muito para além do frio documentário histórico, dando-nos a ver autênticos quadros vivos da aldeia de antigamente, desenhados com a cadência dos batimentos que partem do coração e vão até ao teclado procurar as letras que formam as palavras de que tanto gostamos.
Atualmente, há uma variedade enorme de objetos de uso quotidiano com as mais diversas formas e utilidades, desde os saquinhos dos “hiperes” até às coberturas transparentes das estufas agrícolas, passando pelos televisores LED e pelas fibras óticas, feitos de plástico, um produto barato da indústria petroquímica que está a entulhar o planeta azul. Mas, o que é de mais é moléstia, e muitos solos aráveis, rios, lagos, mares e ares acabaram por ficar inquinados com tanta tralha. As vaquinhas, os pobres peixes e as avezinhas do céu acabam por ingerir os milhões de toneladas de porcaria que vamos lançando continuamente no meio ambiente, só que, por acaso, nós também fazemos parte desse ambiente, pelo que não é preciso mais do que a velha lógica aristotélica para compreender que o lixo tóxico, que agora fazemos, acabará, mais tarde ou mais cedo, por cair dentro do pote onde fumega o nosso caldo!

Filinto disse...

Parabéns, Fátima. Belo texto que me ajudou a recordar os meus tempos de infância. Ainda neste fim de semana fui a Rebordainhos e pude "cheirar" essas lembranças. Com o meu irmão e o meu padrinho, sr. Carlos Chiote, recordámos o jogo do fito e lançamento de peso e relha. Recordámos os falecidos Aniceto e Patinge. Com este último vim uma vez da Senhora da Serra, a pé, donde ele trouxe uma pedra para jogar ao fito no prado. Ele segredava: "com esta ninguém me ganha..." Sempre que ele batia no pino (vinte) olhava para trás. Belos tempos, como o teu texto.
Filinto

Fátima Pereira Stocker disse...

Elvira

Como em Rebordaínhos não há vinha, aquilo que vou dizer provém do confronto de dicionários.

O seu pai, com toda a propriedade, chama engaço aos restos dos cachos de uvas, embora eu conhecesse isso como "cangaço". Também ao cincho o conhecia da produção de queijo mas, pelo que percebi, existe objecto com o mesmo nome (caixa cilíndrica perfurada)para outras funções, nomeadamente, as de espremer o bagaço que, parece-me, tanto pode ser da uva como da azeitona.

Isto é tudo muito engraçado, e o que a gente aprende por conversar!

Beijos e obrigada

Fátima Pereira Stocker disse...

Anónimo

Encerrou com uma grande verdade: tudo quanto fazemos, mais tarde ou mais cedo se reflectirá em nós. Quanto a Rebordaínhos vou tendo esperanças, porque as suas carvalheiras continuam revestidas de tufos de líquenes, sinal de ar sem poluição.

Muito obrigada pelas suas palavras.
Cumprimentos

Fátima Pereira Stocker disse...

Filinto

Obrigada pela partilha dessas memórias. Quer o sr. Aniceto, quer o "Patinge" (para mim, tio Amâncio, por ser primo de minha mãe) bem merecem artigo próprio. Desculpa-me o desafio público, mas isso cairia muito bem num dos "Ecos do meu sentir"...

Beijos e muito obrigada

Anónimo disse...

Estou farto, até às pontas dos cabelos, de um anónimo forasteiro que anda para aí a arrotar postas de pescada a propósito de tudo e de nada.
Os de Rebordainhos conhecem-me bem, eu gosto de pôr tudo em pratos limpos, comigo é pão pão, queijo queijo!
Nasci no Zoio, chamo-me Florindo Pinhão, tenho 98 anos de idade, e amanhã, 13 de junho, dia de Santo António, completam-se cinco lustros desde que, ainda no meu juizinho perfeito, decidi deixar para trás os meus parcos haveres, que foram distribuídos equitativamente pelos pobres da freguesia (não fosse o Tribunal Constitucional pegar por falta de equanimidade), para me vir instalar num ermo, conhecido por Cabeço Cercado, onde até hoje tenho vivido muito feliz.
Não sou dos que fizeram um exame da 4.ª classe bem feito, como o povo dizia no tempo do grande Presidente do Conselho, Professor Doutor António de Oliveira Salazar, mas instrução de alto gabarito é o que não me falta, porque um meu tio-avô, o senhor padre Alexandre Pinhão, fez de mim, este pobre ignorante que ainda sou, um verdadeiro doutor em Antiguidade Clássica, com um perfeito domínio das línguas e literaturas gregas e romanas.
A outra vertente da minha formação, de igual qualidade e valor, ganhei-a aos pulos no meio das searas de centeio e, menos frequentemente, no meio das searas de trigo, sempre a pular, mas também a correr atrás das cabras que me fugiam para cima das fragas e por todos esses caminhos da serra ladeados por carvalheiras completamente recobertas de frágeis líquenes, tal era a pureza dos ares, onde aprendi a dizer as formas das folhas das árvores, como as lanceoladas, as cordiformes ou as sagitadas, e os nomes dos pássaros que com os seus gorjeios aqueciam a alma do caminhante, como os tentilhões, os pintarroxos, os noitibós, os melros, os cucos, as carriças, as toutinegras, as andorinhas, os andorinhões e tantos e tantos outros; durante as noites cálidas do mês de agosto de 1975, em pleno Verão Quente, deitei-me ao relento, em cima de uns fardos de palha e, de papo para o ar, fiz um mapa da abóboda celeste, que depois mandei encadernar em Macedo de Cavaleiros, com todas as constelações das estrelas, desde a da Ursa Maior até à da Ursa Menor, que ainda hoje é uma referência nos Anais de Astronomia da Faculdade de Cosmologia e Aeronáutica Espacial da Universidade de Bragança, sendo unanimemente considerado um dos mapas astrais mais completos e rigorosos até hoje concebidos e realizados pelo engenho humano, continuando a ser muito consultado por astrofísicos de todo o mundo, quando atravessam fases mais críticas de incerteza quanto ao rumo que pretendem dar ao resto das suas vidas, ou quando arriscam o confronto entre as suas teorias periclitantes e, as mais das vezes, feitas de castelos no ar, com a verdade dos meus indeléveis registos experimentais, obtidos in loco, onde quase sempre vão esbarrar as hipóteses dos sábios, porque os seus argumentos capciosos são facilmente reduzidos a pó pelos dados factuais que recolhi diretamente da Mãe Natureza.
Muito mais haveria para dizer sobre minha alta sapiência, mas a petulância deste vosso criado tem limites, pelo que acho melhor que avancemos para a frente.
A autoridade com que me preparo para responder torto ao anónimo da pescada apoia-se assim, pelo que atrás ficou exposto, numa elegante coluna coríntia, com fuste rematado por um capitel muito bem folheado, e na minha proveta idade de ermitão:
-Saiba Vossa Excelência que, cá por cima, todas as terças e quintas-feiras, temos a carrinha do peixeiro à porta, se nos apetecer comer peixinho, e, por outro lado, entrando no âmbito propriamente dito das postas, também por cá temos a suculenta maronesa, temperada só com umas areiinhas de sal grosso, que vai a grelhar na chapa e é de comer e chorar por mais!
Nós por cá todos bem!
Florindo Pinhão,
Ermitão

Fátima Pereira Stocker disse...

Florindo Pinhão

Vossemecê, para ermitão, gosta bem de se chegar ao povo...

Vai-me desculpar a sinceridade: escrever aquelas coisas uma vez poderá ter graça, mas insistir no mesmo torna a situação penosa - de anódina transforma-se em maçadora. Além do mais, glosar (ou gozar?) o/a autor/a do artigo já me soa a impertinência. Sendo assim, subscrevo as suas ilustres palavras aconselhando "avancemos para a frente".

Cumprimentos

Anónimo disse...

Ex.ma Senhora Doutora Fátima Stocker,

Estou disposto a seguir o conselho que me dá na sua última missiva, mas, como também acho mal pôr o carro à frente dos bois, permita-me a ousadia de, com todo o respeito, vir, por este meio, requerer junto de Vossa Excelência a aclaração do sentido que o leitor médio, sem qualquer formação jurídica e que vive neste país do obscurantismo, onde um cidadão pode fazer todo o seu percurso no ensino básico e secundário sem ter qualquer contacto com as normas do direito civil, cujo conhecimento em idade precoce constituiria uma salvaguarda que impediria os esbulhos dos salários perpetrados por governos fora da lei, deve dar à palavra "anódina", no contexto em que Vossa Excelência a emprega.

Pede deferimento,

Florindo Pinhão,

Ermitão

Anónimo disse...

Presunção e água benta, todos tomam a que querem! Tu pensas que as pessoas são toinos, não? És o maior! Já disse, que a formação académica de vossa senhoria, é igual á minha Sr. Astrónomo dos astros cadentes!
Acredito mais na tua formação académica atrás das cabras por cima das fragas
Primeiro, nasceste em Lanção, agora foi no Zoio, daqui a nada é em Santa Comba Dão!
Se te instalaste no Cabeço Cercado, como é que o carro do peixe vai até lá?! Deixa cá pensar! Como estudas os astros, se calhar são os extra terrestres!
Também eu, no meu juizinho perfeito, decidi deixar para trás os meus parcos haveres. Também eles, foram distribuídos equitativamente pelos pobres da freguesia. A Quinta de Arufe e a de Vilas Boas são exemplo disso.

Simplesmente Maria

Anónimo disse...

D. Fátima,

Depois da segada feita, e ao lado da seitoura, era também pendurado o gadanho (primo ou irmão da seitoura) e os dedais do segador. Também era guardado o martelo e ferro com que se picava a gadanha.
Os sacos de estopa, não eram de 90Kg mas sim de 50 e, neles se guardava o trigo. Este, era malhado logo no início da malha, para não correr o risco de haver centeio á mistura. Também, nestes sacos, era transportado o grão para a moagem. As sacas de serapilheira eram mais usadas para o transporte do grão, centeio, para as tulhas, e também para as batatas.

bjs.

A Serrana

Chanesco disse...

Fátima

Há textos que contam mais do aquilo que se pode ler neles.
Estas descrições temáticas (incluindo as publicadas anteriormente) do que a uma antiga casa de lavoura diz respeito, chamando os utensílios pelos próprios nomes, bem podem ser documentos a guardar para memória futura.

Um abraço para Rebordainhos

Anónimo disse...

D. Fátima desculpe, mas ainda cá volto.
O estojo completo para picar a gadanha é: Pedra, corno, safra e martelo. Também existiam pendurados os crivos para crivar o trigo e o serôdio, para depois moer. Crivar o trigo, significa livra-lo de qualquer outra semente e não estragar a farinha.

bjs.

Serrana

Fátima Pereira Stocker disse...

Serrana

Bendita seja pela sua intervenção, a acrescentar coisas de que me tinha esquecido. Hoje estou tão cansada que já não tenho coragem de voltar a mexer no texto, mas amanhã cá estarei a fazer as modificações necessárias e, além das suas indicações, a acrescentar a peneira de peneirar a farinha.

Bem-haja pela sua participação tão enriquecedora.

Cumprimentos

Fátima Pereira Stocker disse...

Chanesco

Obrigada pelo seu regresso e pelas gentis palavras.

Beijos

Petrus Monte Real disse...

Fátima:

O texto é rico e admirável.
Admirável é também a forma esclarecida e serena
como reage aos comentários.

Sou beirão.Desconhecia a designação
que se dava aos pisos térreos da casa rural.
Na minha terra natal chamavam-se lojas.

Muito grato pela partilha.
Cumprimentos

Anónimo disse...

Fátima,

Permita-me que lhe acrescente mais algumas coisas.
Ao lado dos bancelhos, depois de varrerem a eira, também eram guardados os vassouros de carqueja.
O vinho também era transportado numa bota, que para beberem apertavam-na em baixo fazendo um esguicho que ia direitinho para a boca.
Nos baixos, nas traves de madeira, havia também,os espetos com uma lata por cima para pendurar os presuntos e a chicha gorda. O efeito da lata, era para os leirões e ratos não irem á chicha.
Também havia a arca grande, onde se guardavam as fornadas do pão cozido, e, os grandes pipos que levavam uns bons almudes de vinho.
Beijocas
Rebordainhense

Fátima Pereira Stocker disse...

Serrana

Já fiz os acrescentos e as emendas que fez o favor de me indicar. Espero que esteja do seu agrado.

Muito obrigada mais uma vez
Cumprimentos

Fátima Pereira Stocker disse...

Rebordainhense

Deus lhe pague também a si. Já acrescentei a bota e o vassouro de carqueja.

Quanto às restantes sugestões, agradeço-as também (sobretudo à da lata de proteger a carne, de que me não lembrava)e vou contar com elas. Se reparou, indiquei no título que este era o primeiro artigo dedicado ao baixo, precisamente, por ter sentido necessidade de escrever outro em que referisse a sua valência de armazém de víveres para o ano inteiro. A ideia inicial era elaborar só um artigo, mas ao escrever dei-me conta de que ficaria excessivamente grande, daí a necessidade de dividir o assunto.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Petrus Monte Real

Seja muito bem-vindo a esta casa que, como as beirãs, gosta de acolher quem nela queira entrar.

O piso térreo das casas transmontanas divise-se em dois: os baixos (caso presente) e as lojes, (neste caso, para os animais e já escrevi sobre elas). Na sua terra a "loja" corresponde a ambos ou só a um dos nossos significados?

Bem-haja pelas suas palavras.

Cumprimentos

Petrus Monte Real disse...

Fátima

Muito obrigado pelas suas palavras. Terei muito gosto,
se assim o entender,
que visite a minha casa.

"Lojas" corresponde a ambos os significados. Devo contudo acrescentar que a casa rural beirã pode incluir também o pátio e o alpendre.
Por exemplo, a casa do meu avô tinha pátio e alpendre, onde se guardava o carro de bois, a lenha, o pasto para os animais, etc..
As arcas dos cereais, a salgadeira e alfaias agrícolas ficavam numa loja por baixo da cozinha.

A casa dos meus pais não era tipicamente rural. A actividade principal do meu pai era a exploração de resina, que constituiu a base de sustento da família e da formação dos filhos.

Cumprimentos

Anónimo disse...

A Esse alpendre, na nossa terra, chamamos cabanal e ao pátio damos o nome quintal.
Tenho dado voltas á cabeça, para ver se recordo o nome de um recipiente, que era utilizado para tirar a água dos poços e tanques, antes de haver os motores de rega. Era um regador de cabo longo, e tinha um nome típico mas, não me vem à cabeça nem por nada!

Cumprimentos,

Serrana

Anónimo disse...

D. Fátima,

Acabei de me lembrar do nome,(que também era guardado nos nossos baixos antes de haver os motores de rega) que dávamos a um recipiente de lata com um grande cabo de madeira. GARABANO!
bjs.

Serrana

Fátima Pereira Stocker disse...

Petrus

A Serrana já estabeleceu as devidas correspondências: os nomes serão diferentes, mas as necessidades de quem trabalha a terra serão as mesmas em qualquer sítio.

Um dia destes terei muito gosto em bater-lhe à porta.

Cumprimentos

Fátima Pereira Stocker disse...

Serrana

Eis aí um objecto de que me não lembraria, porque não tenho ideia de o ver lá por casa. Só com a sua descrição é que o consegui visualizar e lembrar-me dele. Veja lá, por favor se é aquele que indiquei no link que incluí no artigo. Este:

http://www.santavalha.com/museururalfotografico/slides/288-Garabano,%20Ganchas%20e%20Gadanha.html

Fico-lhe muito grata.

Beijos

Anónimo disse...

É sim D. Fátima! Eram feitos pelo latoeiro. Eram usados para regar os feijões,erbanços,melancias etc. tudo o que era semeado da parte de cima da poça. O que ficava por baixo, a rega era pelo bocal. Este era destapado (tapado com torrões ou então com um pau feito á medida do bocal) e a água era conduzida pela agueira até aos sulcos.
A D. Fátima, quando fizer a II parte não se esqueça de por lá também o sedeiro, o espadelador, o cortiço e a dobadoura.

bjs.

Serrana

Elvira Carvalho disse...

Eu é que agradeço a explicação Fátima. E a visita ao Sexta.
Um abraço e bom fim de semana

Fátima Pereira Stocker disse...

Serrana

Não esqueço não, que integram algumas das mais gratas memórias da minha infância. Obrigada, no entanto, por mo lembrar. Mas há uma coisa: o objecto para espadar o linho não se chamava espadela?

Bijos