quarta-feira, 2 de julho de 2014

CARTA A UM TIO QUE NÃO CONHECI [parte II ]



Sabe, tio, de vez em quando aparecem na nossa História uns figuros que se esticam todos para aparecerem na fotografia da guerra dos outros. Triste sina a deste povo que tem que obedecer à súcia dos gabinetes! Assim foi com a Grande Guerra, como ficaria conhecida aquela para onde o mandaram a si. Mal se percebeu que ia haver conflito, os nossos governantes decidiram que o mesmo povo que considerava incompetente para votar, por ser analfabeto, era competente bastante para manejar armas que nunca vira e para ser abatido pelas armas mais modernas de que não dispúnhamos, mas que os outros possuíam em abundância. Mesmo assim, no começo da guerra só tivemos umas escaramuças com os alemães, no sul de Angola e no Norte de Moçambique. Quanto à tão desejada intervenção na Europa, a Inglaterra pediu-nos que esperássemos, embora o fizesse por motivos pouco abonatórios do seu respeito para connosco. Mas a ideia da participação não desamparava aquelas cabeças e foi por esse motivo que começaram a organizar expedições para África. Imaginava o senhor a existência de tanta manha por detrás da sua mobilização? É verdade que estava em causa a manutenção das colónias, mas a razão mais funda residia na vaidade de querer que o regime republicano fosse reconhecido pela Europa, quase toda monárquica. Seria uma espécie de “tomai lá, monarquias, amanhai-vos com mais esta república mais radical do que a francesa!”

Folheio os jornais da época e nem acredito. Páginas e páginas dedicadas à guerra na Europa e um silêncio, poucas vezes quebrado, sobre aquilo que se passava em África. Soube, embora não pelos jornais, que a expedição que o tio integrava levava dois objectivos: conquistar Quionga, na foz do Rovuma, posto militar que os alemães ocupavam ilegalmente desde o séc. XIX e, de seguida, conquistar território alemão a Norte do mesmo rio. Talvez o senhor não soubesse mas, nessa altura, a Alemanha não tinha, ainda, declarado guerra a Portugal. Nem nós à Alemanha.

Distribuição dos efectivos portugueses na II expedição (no mapa estão representados os principais lugares do conflito em volta do RovumaO major de Artilharia, José Luís Moura Mendes, chefiava a sua expedição e foi a ele que competiu decidir da distribuição dos efectivos no terreno. Já referi que não pôde contar com informações nenhumas, nem com estradas abertas, nem com telegrafia sem fios (TSF) que assegurasse as comunicações entre os postos. Fez o melhor que soube, certamente: pensou nos quase 900 Km de extensão do rio Rovuma de que, praticamente, só se conhecia a costa, e decidiu-se pela constituição de dois sectores divididos por três locais, embora com maior concentração na região que vai do rio Lugenda até ao Oceano Índico. Entretanto, a soldadesca tinha motivos de sobra para se queixar: a margem Sul do Rovuma é área pantanosa, má de habitar devido às chuvas intensas que caem entre Novembro e Março e ao calor abrasador que se faz sentir em grande parte do ano. A farda que lhes vestiram não contemplava impermeáveis e as botas, de tão mau couro, rompiam-se com facilidade. Não havia saúde que resistisse a tamanha insalubridade e as doenças provocavam muitas baixas. A sede piorava tudo porque a água, que tinha que ser fervida e desinfectada, exalava um cheiro nauseabundo e sabia tão mal  que os soldados recusavam-se a bebê-la. Como lhe devia lembrar a frescura e a pureza da água da Fonte Grande!


Não sei para onde o mandaram a si, nem se participou na tomada de Quionga (11 de Abril de 1916) que os jornais de Lisboa noticiaram como grande façanha, mas que a si o teria feito soltar gargalhadas se não tivesse a alma tão desolada: a grande conquista foi, tão-só, uma ocupação porque os alemães já se tinham retirado, sabe-se lá quando. Se participou dos acontecimentos, significa que foi transportado de barco de Porto Amélia até Palma, sob o comando do major Portugal da Silveira. Se não, talvez tenha integrado o grupo daqueles que foram ocupando a margem Sul do Rovuma cujos maus ares tornaram inaptos mais de 500 homens em pouco tempo. Não sei se alguma vez se terá perguntado se aquilo que viu era a obra civilizadora de Portugal em África… Talvez não, até porque a missão civilizadora precisava de ter começado dentro de casa. O senhor certamente não se apercebeu disso, tais as diferenças entre Lisboa e Rebordaínhos, mas a verdade é que Lisboa era um atraso de vida quando comparada com as capitais europeias.

 Enquanto e não, as coisas tinham mudado: a pedido de Inglaterra, Portugal aprisionara os navios alemães ancorados na nossa costa. A 9 de Março seguinte, a Alemanha declarou-nos guerra e Portugal decidiu enviar soldados para a Flandres. Em África, a Alemanha tomou a iniciativa, partindo ao ataque. Se a mim me pesa o voluntarismo da decisão e a inconsciência daqueles que saíram à rua para a festejar (como em Bragança, por exemplo), para si foi o pico da tragédia. Que saudarão aquelas pessoas que vemos nas fotografias? Nunca conseguirei compreender tamanha insanidade.

Apesar das poucas comunicações, é provável que o tio tenha sabido da incompetência (procuro palavra mais adequada, mas não me ocorre) da actuação do cruzador Adamastor, chegado em Maio, integrando a terceira expedição. Não sei se pensaram que bastaria o nome para afugentar os alemães, ou que raio terá passado pela cabeça daquela gente do comando: como se estivessem a atracar no Tejo em tempo de paz, procuravam as embocaduras mais acessíveis sem cuidar de saber se, do lado de lá, havia alemães. Claro que havia! Isto aconteceu uma vez e muitas mais, sempre com o mesmo resultado: os nossos soldados eram mortos. Para que se há-de maçar quem manda, com manobras de cautela, se não falta carne para canhão?
  
Se sobreviveu à incúria das chefias e ao paludismo, apesar de enganado pelos comprimidos de farinha que a corrupção criminosa substituíra ao quinino, é provável que tenha participado dos avanços até Nevala e se tenha questionado sobre a razoabilidade de tudo aquilo. Ninguém lhe confidenciou que estavam a cumprir o segundo objectivo da expedição, mas a consciência forte de que as acções devem ter uma finalidade útil, tão presente nos transmontanos, há-de tê-lo posto a matutar: que sentido faz entrar na terra dos outros, desgastar os homens e fazê-los correr perigo, se os lugares tomados são para abandonar? Para quê o sacrifício? O desconchavo das ordens é desconsideração para com as pessoas. Imagino que sentisse muita raiva. Eu teria sentido. Se escreveu para casa a falar desses assuntos, é provável que as suas palavras tenham sido rasuradas, para que não pudessem ler-se, mas o mais certo é que a carta nunca tenha chegado ao destino.
 
Os alemães avançavam, chefiados pelo mítico Von Lettow que nunca sofreria derrotas porque sempre foi cuidadoso. Ele conhecia as forças e as fraquezas do adversário e tomava precauções. A confluência do rio Lugenda com o Rovuma serviu-lhe de ponto de partida para os ataques, traduzidos em surtidas rápidas porque, da guerra contra os portugueses, ele só queria não perder território e abastecer-se de alimentos e de armas. A guerra a sério travava-a contra as forças inglesas, bastante mais a Norte. Fomos, sistematicamente, desbaratados e Von Lettow, segundo o próprio afirma, dava sepultura aos que morriam. Àqueles que se rendiam em vez de fugirem em debandada, oficiais incluídos, desarmava-os e soltava-os sob a promessa de não voltarem a combater contra ele. À saída das povoações, semeava a cizânia contra os portugueses, convencendo a população indígena de que a Alemanha protegia o islamismo.

De Lisboa e do Governo-geral não cessavam as pressões. Queriam lá saber que as tropas estivessem famintas, exaustas e doentes. Ignoravam a realidade e eram indiferentes às necessidades dos soldados. Sei que o senhor, tio Honorato, tombou algures em Moçambique. Repugna-me pensar que o seu pudesse ser um daqueles corpos espalhados pela praia de Porto Amélia, mortos por falta de assistência médica, por entre os quais tiveram de escolher caminho, ao desembarcar, os homens da terceira expedição. Tenho, contudo, quase absoluta certeza de que, nem o senhor, nem os seus camaradas receberam o amparo espiritual de um sacerdote por causa das proibições que a República impôs à intervenção da Igreja nos assuntos do Estado. Os primeiros capelães só seriam enviados em 1918, já no fim da guerra. À frente do seu nome está aquela cruz alta da vida ceifada: 1915-1916. Leio e fere-me que nem sequer haja registo do lugar nem do modo como a sua juventude foi roubada. Nada sobre si, a não ser a inscrição do seu nome sobre o obelisco de mármore que a cidade de Bragança dedicou aos que tombaram na Grande Guerra (em desagravo pela euforia?) e a que chama “Principal”.

Às vezes, dou por mim a fazer um exercício esdrúxulo: olho as escassas fotografias que existem e procuro por si, como se pudesse identificá-lo! Exercício vão, mas que não contrario. E vou persistindo na quimera, porque as tragédias são mais reais quando lhes pomos rostos em cima.
  
Com muito carinho da sua sobrinha

Fátima


P.S. Cinquenta anos depois, embora com outro desfecho, felizmente, três sobrinhos seus, meus irmãos, viveriam situações semelhantes. O motivo era o mesmo, defender a Pátria, defendendo as colónias. “Malhas que o Império tece”, diria um poeta pouco mais velho do que o senhor...

12 comentários:

antonio disse...

Olá! Sou eu... como dizem os Franceses_ " il n'y a que les imbeciles qui ne chgangent pasdavis!"
Dois textos extraordinários de homenagem e sabedoria que devem ter requerido imenso trabalho nas pesquisas, dado o tempo...
Uma narrativa 5 ***** que me emocionou, instruiu, e mexeu comigo. É com imensa gratidão que felicito quem tanto se esforça pelo bem humano desinteresadamente.
Beijos

Elvira Carvalho disse...

Mais uma lição de história. Quem viveu como eu no final da década de 60 e inicio de 70 no norte de Moçambique, sabe bem como as condições podiam ser adversas especialmente em anos de seca. Imagino que 60 anos antes as condições seriam bem piores, não só pelas condições locais como ainda, porque não era a mesma coisa lutar contra os alemães bem armados e treinados, ou lutar contra os indígenas na guerra colonial.
Um abraço

A. Fernandes disse...

Cá me vou instruindo com os teus imensos e múltiplos saberes. Não sei o que mais admire, se a tua cultura, se o teu espírito crítico, se o teu esforço parta manteres o alto nível deste blog que traz o nome da nossa terra.
Muito obrigado, Fátima.
Abraços

A. Fernandes

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho [Brás]

Obrigada pelas tuas palavras (aqui e em tua casa). Se aquilo que escrevi tocou, nem que seja só uma pessoa, então já valeu a pena o esforço. Mas agradeço-te muito que mo tenhas dito.
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O nosso Mário Soares traduziu assim esse dito: "Só os burros não mudam de opinião."

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Elvira

Bem-haja pelo contributo, a sublinhar aquilo que escrevi.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho [Fernandes]

Obrigada por teres gostado.

Beijos

Chanesco disse...

Fátima

Estou a preparar um post sobre este tema em que o protagonista é o meu avô materno. Também estve mobilizado para Moçambique, com a especialidade de sapador feita à pressa, mas acabou por ir para França em 2 de junho de 1916 como soldado de cavalaria.
Esta carta sentida mas tão realista, que conta brilhantemente uma história com 100 anos, é para mim uma fonte de inspiração.
Obrigado por ela.

Abraço

Fátima Pereira Stocker disse...

Chanesco

O seu avô livrou-se de um inferno e foi para outro. Vou gostar muito de ler o artigo que escrever, e já estou à espera.

Um grande abraço

Chanesco disse...

Fátima

O artigo que tenho em preparação ainda carece de algumas certezas. Talvez o publique depois das férias.
Entretanto corrijo a data referenciada no meu comentário:
2 de Junho de 1917

Abraço

Fátima Pereira Stocker disse...

Chanesco

Não precisava de corrigir a data que, obviamente, era uma gralha, porque porque Portugal só enviou tropas para a Europa após a declaração de guerra da Alemanha, em 1917.

Cá fico a aguardar. Cumprimentos

Anónimo disse...

Boa tarde Fátima

Chamo-me Graça Andrade Ramos e sou jornalista da RTP.
Não sei se já viu algum, mas a RTP tem estado a transmitir às segundas feiras no final do J2 os Postais da Grande Guerra, que tentam levantar o véu do que se passava em Portugal há 100 anos, sob muitos e variados aspectos.

Esses 'postais' (cada um um vídeo de 2 a 3 minutos) têm estado a ser feitos por mim e pela minha colega Silvia Alves. Ambas temos formas diferentes de os trabalhar e a minha aproxima-se muito do tipo de certa que escreveu ao seu tio.

Ao pesquisar para fazer alguns Postais precisamente sobre a guerra em África, encontrei o seu texto e fiquei entusiasmada para basear nele um dos postais sobre Moçambique.

Autoriza-me?
A autoria será de qualquer modo referida no artigo que acompanha cada Postal, no online da RTP. Os que já foram feitos podem ser encontrados neste link http://www.rtp.pt/noticias/portugal-na-1-grande-guerra/postal-da-grande-guerra_i916529 caso queira ver o nosso trabalho.

Antecipadamente agradecida,

Graça Andrade Ramos,
RTP
graca.ramos@rtp.pt

Fátima Pereira Stocker disse...

Graça

Já lhe escrevi para o e-mail dando-lhe total liberdade para se servir do texto.

Aqui, acrescento que fiquei sensibilizada com o seu pedido e que, apesar da economia de palavras que a brevidade dos "Postais" impõe, eles são muito interessantes.

Cumprimentos