a mosca
por antónio augusto fernandes
Mais mês, menos mês, o pai metia-nos (quer dizer, a mim, o
menos desastrado) cinco c’roas na mão e: ─ Ala, cortar essas repas!
Era uma caminhada toda cheia de peripécias e de largos
rodeios ─ seguindo o preceito de Eça de Queirós que diz que a distância mais curta entre dois pontos é uma curva vadia ─ desde
o Prado até à Cabecinha, onde se situava o estabelecimento do Fígaro da aldeia.
Subíamos até à Fonte Grande, onde, por desfastio se molhavam os beiços e
reciprocamente nos encharcávamos. A corrida, passando pela Fonte do Espinheiro,
com o seu belo arco de pedra lavrada, ia dar nuns saltos aos ramos mais baixos
da amoreira do Sr. Lopes Direito, saltos mais que inúteis, pois os ramos baixos
estavam mais colhidos que ramo de cerejeira no mês de Janeiro. Outra corrida à
poça do Covelo, onde os parrecos da tia Ana Costa levantavam grasnido de
esparvoar o povo inteiro. Passávamos em deslado da casita da avó Tonha (hoje
totalmente refeita pelo Gilberto, e já estávamos na Eira da Cabecinha. Antes do
corte ainda íamos bisbilhotar o que acontecia lá em baixo, em Rossas, se
adregava de passar o misto espirrando novelos de fumaça ou quantos carros se
avistavam na estrada de Bragança... Por fim, lá subíamos a escada que conduzia
ao suplício.
─ Boa gente, esses da Cabecinha! ─ dizia-se pela aldeia.
E eram-no de facto. Desde os pais, o
tio António da Eira e a tia Laurinda até aos três manos: o Horácio que ainda
apanhei na escola, a Aninhas a nossa amorável catequista e o Armindo, babeiro
em chefe. Ao que recordo, todos eles cordatos e mansos como a terra.
Lá íamos para o quartinho onde o
Armindo executava a sua arte: máquina, tesoura, navalha e a malguinha de
alumínio onde repousava o pincel com a codeazinha de sabão azul.
Primeiro entrava o mano, o mais
insofrido. E não havia maneira de parar quieto o raio do miúdo, a coçar a nuca,
a sacudir-se por causa dos pelos que lhe entravam pelas costas e que mais
entravam quanto mais se sacudia.
─ Está quieto, Zé, que inda te corto uma orelha! ─ acudia o
Armindo com toda a paciência deste mundo.
Estava lá agora!
Ora a saleta tinha um janeleco virado
a norte, que dava para um horteco do tio Alfredo Guerra. E era aí que me colava
em contemplação: colados na vidraça havia três ou quatro desenhos a lápis cujo
tema já não recordo. Mas, entre eles, salientava-se uma mosca desenhada na
perfeição, distinguindo-se os dois olhos enormes, as patecas peludas e até as nervuras
das asas. E tal mosca nunca mais me saiu do entendimento. Alguém me disse, ou
sonhei, que a mosca era da autoria do Horácio. E eu longamente invejei a arte
do Horácio, esse rudimento de um Miguel Ângelo a vir.
Já lá vão mais de sessenta anos e
ainda hoje vejo a mosca do Horácio com a nitidez da Mona Lisa.
Ó Horácio, se leres estas linhas,
tira-me lá desta dúvida. Sempre foste tu quem desenhou a dita mosca? Se sim,
palavra que devias ter ido para Belas Artes e não para a GNR que, tanto quanto
sei, é mais dada à arte da multa que à arte do desenho.
_____Imagem daqui
15 comentários:
Tonho
Ficas nomeado salvador oficial da página de Rebordaínhos.
Não quero abusar da interpretação do Evangelho, mas este teu escrito calha mesmo bem com a leitura do dia de hoje, em que Jesus lembra aos justos: "tive fome e vós destes-Me de comer, tive sede e vós destes-Me de beber (...)"
Deus te pague pela partilha.
Um grande beijo
Confesso que já tinha saudades da movimentação nesta página. Abençoadas palavras do Tonho que lhe deram vida. Abençoada também tu, Fátima, que teimas em mantê-la viva.
Beijos
Um texto muito interessante.
Bom que o blogue ganhou vida.
Já pensava que alguma coisa tinha acontecido.
Um abraço e Uma boa semana para todos.
Obrigado António por me tirares da madorna em que vivia nos últimos dias.
Adorei essa narrativa que deu nova vida para o blog e mais conhecimento para aqueles que lerem.
Lembro-me muito bem da Aninhas e do Armindo, mas não consigo me lembrar dos outros que foram citados. A barbearia do Armindo depois acabou passando para uma salinha no rés-do-chão, se a minha memória não me atraiçoa.
Penso que não nos conhecemos, pois nasci nos Pereiros, mudei para Rebordainhos em 1959 com cinco anos e aos onze já parti para outras plagas à procura de novas aventuras, o que faz com que lembre de pouquíssimas pessoas.
César
As arengas constantes com que os arautos do Homem Novo nos enchem a cabeça a toda a hora, através dos jornais, do rádio, da televisão, da internet, e até de alguma literatura barata, apregoando a necessidade urgente de trazermos para debaixo dos holofotes mediáticos a temática da cidadania consciente e assumida, que não se esgota no ato solene de “de quatro em quatro anos irmos lá descarregar o voto”, não podem cair em saco roto. O que nestes dias se exige de todos e de cada um são pensamentos assertivos virados para uma ação imediata de cidadania proativa.
O povo unido jamais será vencido. Na verdade, o poder dos políticos, o dinheiro dos banqueiros e a jurisprudência dos juízes pertencem ao povo que, no fundo, sou eu e todos aqueles que comungam das minhas ideias de construção de uma sociedade horizontal, quer dizer aquela que é aplainada com o nível de bolha de água do pedreiro (maçom) e em que a exploração do Homem pelo Homem termine para sempre!
O Senhor Engenheiro José Sócrates, Bacharel pelo Instituto Superior de Engenharia de Coimbra e Licenciado pela Universidade Independente, foi traiçoeiramente apanhado por trás nas malhas da justiça.
Apelo a todos os rebordainhenses, e restantes homens e mulheres de bem do nosso Portugal espalhado pelo mundo, para que se financiem mutuamente de modo a juntarem o pecúlio suficiente para pagar os honorários ao advogado mais caro da nossa praça, que ficará incumbido de redigir uma petição à Assembleia da República e ao Supremo Tribunal de Justiça, como manda a lei, exigindo a libertação imediata e incondicional do pobre cidadão José Sócrates que, acima de tudo, é um grande filho do povo!
Lembrem-se de José Sócrates como o grande estadista que teve a coragem de pôr o freio nos dentes dos Docentes da Carreira Única-onde se incluem babás mais bem pagas do que professores de Matemática, que ensinam números complexos e trigonometria, ou professores de Português, que ensinam o novo acordo ortográfico-, e assim, com os cortes nos salários destes paxás, salvou Portugal da bancarrota!
Fátima
Obrigado pela tua nomeação, mas olha que eu sou só António e não Santo António. Bem sabes que eu tenho todo o gosto de escrever acerca de Rebordainhos, mas falece-me muitas vezes o assunto,já que saí muito novo.
Mas não deixes que o blog acabe. Há por aí muito maduro a cuja porta podes ir bater. Eles sabem bem de quem falo, não é Filinto? não é Evaristo? etc....
Bjs
A. Fernandes
Tenho dito.
A bem da Nação!
O Chefe do Governo,
António Oliveira Salazar
(Defensor de José Sócrates)
Elvira
Não tenho o prazer de a conhecer, mas obrigado pela atenção com que segue Rebordainhos e pelas palavras amáveis que sempre nos dedica.
A. Fernandes
Rebordas
Dado que deixei Rebordainhos 3 anos antes de lá chegares, é possível que não nos tenhamos encontrado por lá. Mas parece que ambos sofremos da mesma saudade daqueles montes.
Abraços
A. Fernandes
Anónimo
Para esse peditório já dei. Por isso seria enorme favor desamparar-nos a loja.
A. Fernandes
Augusta
Ontem, com a trapalhada dos hieróglifos com que a Fátima nos defende dos intrusos, nem consegui agradecer as bondosas palavras com que mimaste a minha pobre mosca. Obrigado
Tonho da tia Lídia
Tonho
Eu não sei o que se passa com o blogger, porque desactivei o reconhecimento de palavras nos comentários há já uns meses. Fui verificar e, de facto, está desactivada. Verifico, no entanto, que continua a ser exigida... Vais ver que aconteceu ao sistema do blogger o mesmo que aconteceu ao da colocação de professores...
Beijos
A exemplo de ELVIRA CARVALHO, ainda
bem que o blog ganhou vida. Já havia
uns dias que não visitava a página
depois de tantas visitas e nada que
passei para outra. Em primeiro lugar
os meus cumprimentos ao Tonho,também
o meu obrigado pelo belo texto. Como
sempre a descrição é perfeita.Também
não faltou um anónimo com as ironias
de costume, aí concordo com o Tonho,
desaparece. Um grande abraço.
Américo
#anoninimorico
Texto muito bonito, que me fez recordar a minha infância feliz numa aldeia transmontana. Nasci no Tó, mas atualmente vivo em Südbrookmerland, na Alemanha.
Mando muitos abraços para todo o Portugal que trago no coração.
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