por: orlando santos martins
parte i
Decorriam aqueles meses estivais, julho e agosto, e a ansiedade na colheita
dos frutos pulverizava os dias numa azáfama invulgarmente estonteante,
contrastando com a aparente calma habitual da aldeia.
Era o caso da colheita dos cereais, o abençoado centeio, que matizava
as encostas da serra agreste transmontana em campos mesclados de searas
doiradas, tal como lençóis estendidos ao sol.
Bom dia Artur, ainda é cedo para andar a pé.
– Exclamou o António.
Bom dia António… madrugar é contigo, isso
sim, mas olha que não falta muito e o sol não tarda a raiar por todo o lado.
Já pareces a minha sogra que, mal se levanta
de manhã, começa logo a gritar: “levantem-se todos que o sol não tarda a raiar
por todo o mundo”! Então? Vais até à serra regar?
Tem que ser, porque às dez já não se pode
com o calor.
Vá lá então, e até logo Artur.
Até logo Respondeu de pronto o Artur, avaliando o
tempo até então perdido com a inesperada conversa matinal.
Estava uma manhã
de bonomia, sem vento nem frio, mas ainda embrulhada numa cor pardacenta e a
primeira claridade do dia, vinda do oriente, parecia querer revelar os picos
mais elevados da serra, acordando-lhes os seus contornos num imensurável
horizonte que rivalizava com muitos mundos de contos de fadas, tanto no estio
como nos dias curtos e escuros de inverno.
Naquela manhã, os profundos vales das terras quentes, situadas a sul, despiam-se
de um tímido nevoeiro matinal, tal como ondas brancas do mar em maré baixa, na
quimera de um oceano longínquo.
Bem… está na hora de acordar a
malta para o trabalho sussurrou o
António, em tom muito baixo e com os lábios semicerrados, com o cuidado de não acordar
qualquer alma que ainda estivesse a dormir.
Meteu a mão ao
bolso do casaco pardo e sujo, que se transformara no seu traje habitual da
Primavera ao Outono, salvo domingos e dias de festa, que não eram assim tantos,
escolheu a chave do ” baixo” da casa, que se situava no piso inferior, da
habitação normal da família, usualmente térreo, e tinha como principal destino
armazenar os bens de toda a colecta anual, sendo que no verão, antes das
colheitas, este, ainda um pouco vazio, servia também de dormitório dos
segadores e alguns vendedores que demandavam tais paragens, às quais chamavam “camaratas”.
Os modos mais usuais
para trancarem as portas destas divisões, bem como a loja dos animais, eram as
fechaduras de metal relativamente fortes e toscas (ferrolhos) ou ancestrais
caravelhos, ou “cravelhos”, de madeira, onde a imaginação e a técnica simples e
funcional se fundiam, e alguns deles já com espigões de segurança em madeira.
Eram as últimas novidades do tio Rafael, um dos últimos carpinteiros da terra
que conheci…
Com leves
pancadas no grande portão de duas folhas, já descoloridas da sua tonalidade
habitual e meias carcomidas pelo passar dos anos suportando grandes variações térmicas
que lentamente as faziam definhar para a arquitectura do seu esqueleto, o
António almejou despertar aquela massa de segadores para um longo e penoso dia
de trabalho.
Já
estão quase todos prontos. Respondeu o
capataz lá de dentro.
Vamos
ao trabalho rapaziada? Perguntou o António.
Vamos a ele, que quanto mais cedo formos,
mais cedo voltamos…
Então despachem-se para o matabicho. Retorquiu
o António, subindo os doze lances da escada de granito para o piso superior, avisando
a Maria para a preparação do frugal matabicho.
* * *
A tarde do dia anterior, domingo, tinha sido infernal, com temperaturas
a atingirem os 30 a
35 graus, e grupos de segadores a reuniam-se à sombra dos grossos e altos Olmos,
os dois pilares do prado da aldeia, que nesta altura ainda apresentavam uma
frondosa folhagem verde amarelada, lançando alguma frescura na leve aragem que
os ramos e as folhas abraçavam num rumorejar distante e passageiro, convidando ao
repouso destes ceifeiros que, amiúde, se iam refrescando na fonte do largo, na
qual, de duas torneiras diametralmente colocadas num pedestal central, brotavam
dois fios de água fresca e límpida que, recolhida num poço rectangular em
betão, de aproximadamente dois metros por metro e meio com um metro de altura,
servia também para satisfazer a sofreguidão dos animais. Outros, os mais sociais,
passavam o tempo metendo conversa de circunstância nas duas tabernas do prado,
aproveitando para provarem um ou dois copos de vinho como que a testarem as
suas qualidades, dissertando, por vezes, sobre a sua qualidade e origens.
O António dirigiu-se a um grupo mais compacto que se destacava e
perguntou ao que julgou ser o porta-voz, capataz do grupo:
Já
tendes patrão?
Não
temos, não Senhor, chegámos há pouco tempo e ainda nos estamos a refrescar…
E
quantos sois vós, Senhor…?
Eu
chamo-me Humberto, deu com a pessoa certa porque sou o capataz e somos os dez
grandes homens de que precisa.
Donde
são vossemecês?
Somos
do Brinço, não é longe… Retorquiu o
capataz com algum orgulho das suas origens e num tom timidamente sobranceiro.
E a
jeira… quanto é que estão a pedir este ano, Sr. Humberto?
Este
ano estamos a levar dois e quinhentos (2$50) ao dia, e é pegar ou largar, já
temos alguns patrões também interessados.
Numa aritmética
simples, o António fez mentalmente os cálculos para cinco dias de segada, o que
lhe iria acarretar uma despesa em dinheiro de cento e vinte e cinco escudos,
fora os gastos com a racionada alimentação e a precária dormida.
É
caro, mas mesmo assim aceito a vossa camarata. Venham comigo ver a casa e, logo
à noite, a minha Maria, servir-vos-á a ceia.
Rematou o António todo satisfeito com a
primeira etapa deste hercúleo processo ultrapassada.
Como soldados, numa
fila desalinhada a caminho da messe, lá seguiram todos, atrás do António, até
ao piso térreo da casa.
A primeira tarefa
que os segadores executaram foi o arrumo dos seus pertences, a recolha de um
feixe de palha no que restava dos medeiros do ano anterior, que lhes iria
servir de colchão juntamente com algumas velhas mantas de tiras de farrapos e
alguns cobertores de lã mais usados que havia em casa, preludiando pelo menos uma
boa ceia, dado que não se pode ter tudo do melhor.
* * *
O Artur tinha razão, a cada
momento que passava, os contornos da serra tornavam-se ainda mais definidos e
começavam a aparecer vultos pardos e formas ainda difusas de casas e objectos
indefinidos pelo lusco- fusco.
Foram subindo para
o primeiro andar da casa, cumprimentavam a nova patroa, que os recebia toda
atarefada, de volta com o lume, com um “bom dia” e um simples, mas acolhedor,
“vão-se sentando, enquanto trato dos potes e do lume, ajudada aqui pela amiga Ana”,
que era sempre muito pontual, de modo a não os atrasar para o seu primeiro dia
de segada.
Ana,
ajuda-me aqui, vamos já começar com o cacau e sopas. Lembrou a Maria à sua amiga
Ana.
Claro
– respondeu a Ana – assim ficam mais quentinhos e dá-lhes para acordar melhor.
Por
falar em dormir: dormiram todos bem? Perguntou a Maria.
Maravilhosamente bem – respondeu o capataz
Humberto, secundado por todos os outros, alguns dos quais com um simples e
disfarçado aceno de cabeça.
O pão de centeio já
estava partido em pedaços e distribuído pela longa mesa que acompanhava o
escano escurecido de fuligem depositada pelo fumo denso da lareira em dias de
invernia que, nessas alturas, mais parecia um nevoeiro. Nele, ainda assim,
notavam-se duas manchas em forma de lágrimas, ainda mais negras e lustrosas, encimadas
por dois pregos que serviam de suporte às candeias de azeite e lampiões a
petróleo que serviam de iluminação.
Havia dois bancos
corridos, um de cada lado da mesa rectangular e, caso não bastassem,
recorria-se a uma cadeira ou a um banco solitário.
Um dos segadores
mais jovens, o Ramiro, chegou a alvitrar que por ele até comia de pé.
A mesa foi-se
compondo e, aos poucos, foram chegando o queijo, meticulosamente partido,
alguns rojões acabados de fazer, marmelada caseira, ovos mexidos com ervilhas,
pescada frita envolta em ovo e pão ralado, peixe transportado numa mula por um
vendedor que no dia anterior trocara quatro quilos de pescada por cesta e meia
de batatas, e, por fim, cacau quentinho feito à base de chocolate culinário.
Quem precisasse de
alguma ajuda para o caminho ou acordar da noite mal dormida por estranhar os
aposentos, podia ainda deleitar-se com um ou dois copos de aguardente, que acabava
por lhes fazer subir a adrenalina e a passageira vontade de trabalhar.
O sol ainda estava a
espreguiçar-se para afastar o sono, o caminho estava envolto na penumbra
matinal e os segadores, já mais retemperados, regressaram ao piso térreo do
baixo onde tinham pernoitado, para se equiparem com os seus chapéus de palha, o
colete de variados bolsos, a seitoura – foice
–, com a respectiva pedra de afiar pendurada numa pequena bolsa de cabedal
presa à cintura e os dedais, também chamados dedaleiras.
As dedaleiras, ou dedais, pendurados numa tira mais longa de cabedal, a
qual se enrolava ao pulso para efeitos de segurança, normalmente usadas na mão
esquerda, dado a maioria dos segadores ser destro, serviam para evitar cortes
nos três dedos da mão que mais perto da linha de corte trabalhavam, ficando o
indicador e o polegar livres para arrebanhar pequenos tufos de centeio.
Estes tufos, separados da seara, seriam degolados rasteiros contribuindo
assim, aos poucos e com repetidas garfadas, para a constituição dos molhos
finais que eram amarrados com uma cinta de palha mais comprida, que no seu
enlace final era torcida, ficando a parte mais grossa, devido às espigas, a
funcionar como uma presilha em forma de botão floral.
11 comentários:
Orlando
Já te disse a alegria que senti por teres retomado a escrita, aquela que nos dedicas a nós que, aqui, podemos ler-te.
As tuas palavras vêm com o carimbo da saudade e o selo do amor por aqueles de nós que desejamos ver perdurar - forma de, através deles, perdurarmos nós também.
Obrigada e um grande beijo
Nota de edição
Esta é a primeira parte de um texto do Orlando que, por por ser extenso, publicarei em três partes.
As fotografias que ilustram esta parte e as restantes foram enviadas pelo Orlando, a quem agradeço que me tenha facilitado o trabalho.
O mundo rural, com o bucolismo, mas também com as dificuldades que a religião procurava suavizar, primorosamente descrito pelo doutor Orlando Martins, já não existe, acabou!
As jeiras que o lavrador pagava não podem competir com os salários da indústria, pelo que atualmente já estamos na fase final do êxodo rural que deixou desertas as nossas aldeias.
Hoje, ganha mais um doutorzeco jornalista a encher chouriços num programa de televisão, ou um camponês emigrado em França a encher salsichas numa fabriqueta em Champigny-Sur-Marne, do que o lavrador português, que nos enche a mesa de batatas novas, nabiças, grelos, alheiras, azeite, bifes de vitela, hortelã, salsa, rosmaninho, manjericão, pimento queimão, centeio e muitos outros alimentos gostosos e saudáveis.
Um amigo de Trás-os-Montes contou-me que as terras da sua aldeia eram tão difíceis de cultivar que os homens precisavam de ser amarrados pela barriga com cordas resistentes enquanto arroteavam à força de enxada encostas tão íngremes e pedregosas que, muitas vezes, a jeira tinha de acabar antes do pôr-do-sol por causa dos corpos esfolados e das roupas rasgadas.
Um abraço
Bem,-hajas, Orlando!
É com muita alegria que voltamos a ter-te aqui.
Neste teu texto repleto de carinho, homenageias bem a memória do teu pai e de todos os homens que, como ele,tiveram uma vida de trabalho árduo.Condecoras a tua mãe e todas as mulheres que, como ela, para além de cuidarem dos filhos, tinham a lida da casa e ainda, o trabalho do campo.
Emocionei-me com o teu texto. Lembrei esses tempos que, apesar de muito trabalho, havia muita solidariedade, companheirismo e alegria.
Beijos
Olímpia
Orlando,
Que linda narração! Foi um prazer lê-la e, venham de lá as outras duas partes.
Um abraço e um muito obrigada
Serrana
Boa tarde Sr. António Pires
Desde já queria agradecer-lhe as suas palavras perante esta modesta narração, no entanto quero dizer-lhe que não sou doutor nenhum, gostava que me tratasse apenas por Orlando Martins.
Desculpe a correção.
Ah! E já que calha em conversa, tenho a dizer-lhe que fui quase DOUTOR a cavar batatas.
Um abraço e não leve a mal.
Orlando Martins
Orlando Martins,
Vossa Excelência ao rejeitar o tratamento de doutor só prova que é um homem de grande caráter. Agradeço a correção e peço desculpa pela ofensa. Deixei-me levar pelo entusiasmo com que aderi ao projeto de construção da nova sociedade portuguesa pós-cristã, na qual o antigo modelo em que somos todos irmãos será substituído pelo modelo em que somos todos doutores. Pode acusar-me de sonhador, mas em minha defesa posso garantir-lhe que, só em Supervisão Pedagógica, já há mais doutores em Portugal do que o número de batatas canabec contidas em duas sacas de 50 quilos!
Um abraço
Não é Senhor Doutor mas é Senhor Engenheiro!
Graças a Deus, que hoje em Portugal, existem muitos doutores! É sinal de que os tempos mudaram e todos têm o direito ao ensino. O Sr. António, gostava mais do modelo da irmandade dos analfabetos para ter quem lhe cultivasse as batatas canabec, sobressair sobre eles e lhe prestassem todas as obsequias.
Bom dia,Orlando. Enganaste-te na profissão... engenheiro? Devias ser outro Tonho que mora lá para as terras de Viriato.
Linda narração. Um pormenor: o homem da mula que trazia o peixe era o Eurico, que nos presenteava com as sardinhas, vendia pimentão e comprava peles de ovelha e "cornichoulos". Belos tempos.
Encontrei há 3 anos um dos últimos capatases em Vila Flor, já com 85 anos me dizia: "Rebordainhos? Boa gente muitas cegadas lá fizemos.Mostrou-me a ceitoura e um gadanho que guardava religiosamente.
Estou ansioso por ver se chegas à malha.
Parabéns.
Filinto
Orlando
(Senhor Engenheiro)
Desculpa por não me ter pronunciado sobre o teu belo texto. Descreveste e, muito bem, a vida árdua da nossa gente. Escreve mais vezes porque o fazes muito bem.
Um abraço e obrigado
George Afonso
Tio Filinto,
Os meus rabiscos não chegam aos calcanhares dos seus e dos do Tonho.
Recordo-me do homem que trazia o peixe, não me lembrava do nome.
Também paravam em casa do meu pai o António Tendeiro, a mulher e os filhos. Vendiam roupa que não seria da Zara com certeza.
Quem devia estar aqui a ensinar-me deviam ser vocês. Mande-nos as histórias que sabe, que conta tão bem e que não serão poucas.
O sobrinho
Orlando Martins
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