quarta-feira, 23 de setembro de 2015

AO JOSÉ AUGUSTO

Pintura de Catherine Blackwell

Só há pouco soube que não nasceste assim, o "Batitá", ou "Batitã", que existe nas nossas memórias.  

Adoeceste, certamente na infância, e teres sobrevivido já foi um milagre. Se a meningite ainda hoje é temível, de tão perniciosa, como seria em Rebordaínhos lá pelos idos da década de 50?! Depois disso, o mundo viu-te crescer o corpo, que se tornou possante. Contudo, a constituição física era a única prova de que o tempo também passara por ti e te tornara homem. Em tudo o resto permaneceste menino – ou regrediste a menino, pois não sei ao certo em que idade a tragédia sobreveio sobre ti.

É penoso descrever-te, por não querer traçar de ti um retrato que caiba na categoria do grotesco. Porém, era assim que parecias, pelo modo como andavas, arrastando os sapatões (flectias pouco os joelhos) e projectando a cabeça para diante, ao mesmo tempo que recolhias o peito para dentro. São consequências psicomotoras da doença.

A tua presença constante junto dos teus pais, o tio Benjamim e a tia Elvira, fazia lembrar uma fidelidade quase canina. Abraçavas a ambos com os gestos descoordenados de uma criança e, quando caminháveis, invariavelmente seguravas a mão da tua mãe, ou ela a tua. Se estavas contente, rias e pulavas à volta deles; se te querias queixar, apontavas para o autor do motivo e balbuciavas um hããã prolongado e choroso.

Eras incapaz de pronunciar uma só palavra que fosse. Apenas "mãe" e "pai" te saíam próximos – "mã"; "pa", sendo tudo o mais balbuceios e esgares, a isso se limitando a tua capacidade de comunicares com o mundo – e de o mundo te entender. Os especialistas chamam a isso afasia: perda da capacidade de falar.

De vez em quando, enrolavas ambos os braços à volta da cabeça, contorcias-te e gritavas tanto que se ouvia longe. Outras vezes, desatavas a correr como um possesso, sem reparar naquilo que se te atravessasse no caminho. Talvez tenha sido daí que nasceu o medo por ti e, quiçá, o teu apodo: Batitã. De “bater” + “hã”?

Quem pudesse, escondia-se à tua passagem, ou desviava caminho se não avistasse a tua mãe por perto. Não havendo alternativa, era certo e sabido que teria de fugir à tua frente, tentando escapar da lapada, sempre certeira, que lhe irias atirar. E, porque acertavam sempre, as tuas pedradas eram guiadas pelo diabo, o único capaz de tamanha pontaria, assim o afirmava convictamente o sr. Carlos Sapateiro. Para quem se aproximasse desprevenido, reservavas o cipó. A minha tia Helena era uma das tuas vítimas de eleição, mas para os anais da nossa terra ficou a resposta do sr. Lopes Direito: “Ó rapaz, ele a malha é a seco ou a comer?”

Tinhas fama de mau e, para aqueles que argumentavam que não sabias o que fazias, vinha a resposta invariável: “ai não, que não sabe! Quando se põe, sentado no altar-mor, a-pu-ti-ti-ti, a apontar para as pernas das mulheres, é de quem não sabe? E não sabe o que faz quando se esconde ao pé da pia da água benta, ali no escuro, a furar com os dedos os olhos de quem entra na igreja?” É verdade que as mulheres não gostavam do a-pu-ti-ti-ti, e aviavam-se a entalar a saia entre as pernas, mas também é verdade que toda a gente se ria à socapa, disso e dos dedos nos olhos dos outros.

Não eras assim para todos. De algum modo, aprendeste a respeitar uns e a tratar mal os outros. Ou seja, alguma coisa do funcionamento do mundo chegou à tua capacidade de o compreenderes e agias, provavelmente, em função dessa compreensão. E é isso que me leva aos prolegómenos que escrevi no artigo anterior: o teu comportamento espelhava aquilo que tu eras, a tua essência (e, nesse caso, serias poucochinho), ou, pelo contrário, o teu corpo era uma prisão intransponível onde vivia enclausurada uma mente semelhante à minha?

Um dia morreste. Na minha lembrança habita um rapaz de camisa branca abotoada até ao colarinho, a roupinha de ver a Deus que a tia Elvira te vestia aos domingos. Nesses dias, sou capaz de jurar, percebias a necessidade do aprumo e, por isso, sorrias mais e andavas mais direito. Alguns dos teus sorrisos eram para mim.

Tenho tanta pena, Zé Augusto, de não saber o tamanho da tua dor!

Anti-retrato, pintura de Adrian Ghenie


6 comentários:

Rebordas disse...

Que sorte Fátima, que és uma enciclopédia viva!
Trazes-me à lembrança algo de que há muito tempo tinha me esquecido e também o conhecimento do que aconteceu com o Zé Augusto.
Obrigado por mais essa.
Bjs.
César

Augusta disse...

Fátima:
Pintaste com uma precisão quase milimétrica o retrato do Zé Augusto. E digo "quase" porque aquele ti-ti-ti, acho que era mais "à putiiii...".
Independentemente de pequenos pormenores, lindo o quadro que pintaste dele.
Beijo

Elvira Carvalho disse...

Ai amiga, que eu não sei comentar este texto. Tive duas pessoas na família que foram atingidas pela meningite. Uma tia em 1926, e um primo em 1950. Em qualquer deles houve estrago, mas nada que se compare com o que relata. Minha tia, casou, teve 18 filhos e faleceu em 2007. Meu primo vive sozinho desde que o pai morreu há dois meses e toma conta de si próprio, embora tenha um jeito esquisito, que levou a garotada a pôr-lhe a alcunha de Victor Choc Choc.
Um abraço

Fátima Pereira Stocker disse...

Rebordas

Não sei qual seria a vida mais triste, se a dele, se a dos pais.

Obrigada pelas tuas palavras

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

Obrigada pelo que dizes e também pelo reparo. Agora que o disseste, lembrei-me o "a-pu-ti-ti. Vou confirmar e, depois, alterar.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Elvira

Provavelmente os seus familiares tiveram menos azar do que o Zé Augusto: acesso a alguma forma de tratamento que, duvido, alguma vez ele tenha tido. Daí as diferenças nas consequências.

Obrigada pelas suas palavras