Pintura de Catherine Blackwell
Só há pouco soube que não nasceste assim, o "Batitá", ou "Batitã", que existe nas nossas memórias.
Adoeceste, certamente na infância, e teres sobrevivido já
foi um milagre. Se a meningite ainda hoje é temível, de tão perniciosa, como
seria em Rebordaínhos lá pelos idos da década de 50?! Depois disso, o mundo viu-te
crescer o corpo, que se tornou possante. Contudo, a constituição física era a única
prova de que o tempo também passara por ti e te tornara homem. Em tudo o resto
permaneceste menino – ou regrediste a menino, pois não sei ao certo em que
idade a tragédia sobreveio sobre ti.
É penoso descrever-te, por não querer traçar de ti um
retrato que caiba na categoria do grotesco. Porém, era assim que parecias, pelo
modo como andavas, arrastando os sapatões (flectias pouco os joelhos) e
projectando a cabeça para diante, ao mesmo tempo que recolhias o peito para
dentro. São consequências psicomotoras da doença.
A tua presença constante junto dos teus pais, o tio
Benjamim e a tia Elvira, fazia lembrar uma fidelidade quase canina. Abraçavas a
ambos com os gestos descoordenados de uma criança e, quando caminháveis, invariavelmente
seguravas a mão da tua mãe, ou ela a tua. Se estavas contente, rias e pulavas à
volta deles; se te querias queixar, apontavas para o autor do motivo e
balbuciavas um hããã prolongado e
choroso.
Eras incapaz de pronunciar uma só palavra que fosse. Apenas
"mãe" e "pai" te saíam próximos – "mã";
"pa", sendo tudo o mais balbuceios e esgares, a isso se limitando a
tua capacidade de comunicares com o mundo – e de o mundo te entender. Os
especialistas chamam a isso afasia: perda da capacidade de falar.
De vez em quando, enrolavas ambos os braços à volta da
cabeça, contorcias-te e gritavas tanto que se ouvia longe. Outras vezes,
desatavas a correr como um possesso, sem reparar naquilo que se te atravessasse
no caminho. Talvez tenha sido daí que nasceu o medo por ti e, quiçá, o teu
apodo: Batitã. De “bater” + “hã”?
Quem pudesse, escondia-se à tua passagem, ou desviava
caminho se não avistasse a tua mãe por perto. Não havendo alternativa, era
certo e sabido que teria de fugir à tua frente, tentando escapar da lapada,
sempre certeira, que lhe irias atirar. E, porque acertavam sempre, as tuas
pedradas eram guiadas pelo diabo, o único capaz de tamanha pontaria, assim o
afirmava convictamente o sr. Carlos Sapateiro. Para quem se aproximasse
desprevenido, reservavas o cipó. A minha tia Helena era uma das tuas vítimas de
eleição, mas para os anais da nossa terra ficou a resposta do sr. Lopes Direito:
“Ó rapaz, ele a malha é a seco ou a comer?”
Tinhas fama de mau e, para aqueles que argumentavam que não
sabias o que fazias, vinha a resposta invariável: “ai não, que não sabe! Quando
se põe, sentado no altar-mor, a-pu-ti-ti-ti,
a apontar para as pernas das mulheres, é de quem não sabe? E não sabe o que faz
quando se esconde ao pé da pia da água benta, ali no escuro, a furar com os
dedos os olhos de quem entra na igreja?” É verdade que as mulheres não gostavam
do a-pu-ti-ti-ti, e aviavam-se a entalar
a saia entre as pernas, mas também é verdade que toda a gente se ria à socapa,
disso e dos dedos nos olhos dos outros.
Não eras assim para todos. De algum modo, aprendeste a
respeitar uns e a tratar mal os outros. Ou seja, alguma coisa do funcionamento
do mundo chegou à tua capacidade de o compreenderes e agias, provavelmente, em
função dessa compreensão. E é isso que me leva aos prolegómenos que escrevi no
artigo anterior: o teu comportamento espelhava aquilo que tu eras, a tua essência
(e, nesse caso, serias poucochinho), ou, pelo contrário, o teu corpo era uma
prisão intransponível onde vivia enclausurada uma mente semelhante à minha?
Um dia morreste. Na minha lembrança habita um rapaz de
camisa branca abotoada até ao colarinho, a roupinha de ver a Deus que a tia
Elvira te vestia aos domingos. Nesses dias, sou capaz de jurar, percebias a
necessidade do aprumo e, por isso, sorrias mais e andavas mais direito. Alguns
dos teus sorrisos eram para mim.
Tenho tanta pena, Zé Augusto, de não saber o tamanho da tua
dor!
Anti-retrato, pintura de Adrian Ghenie
6 comentários:
Que sorte Fátima, que és uma enciclopédia viva!
Trazes-me à lembrança algo de que há muito tempo tinha me esquecido e também o conhecimento do que aconteceu com o Zé Augusto.
Obrigado por mais essa.
Bjs.
César
Fátima:
Pintaste com uma precisão quase milimétrica o retrato do Zé Augusto. E digo "quase" porque aquele ti-ti-ti, acho que era mais "à putiiii...".
Independentemente de pequenos pormenores, lindo o quadro que pintaste dele.
Beijo
Ai amiga, que eu não sei comentar este texto. Tive duas pessoas na família que foram atingidas pela meningite. Uma tia em 1926, e um primo em 1950. Em qualquer deles houve estrago, mas nada que se compare com o que relata. Minha tia, casou, teve 18 filhos e faleceu em 2007. Meu primo vive sozinho desde que o pai morreu há dois meses e toma conta de si próprio, embora tenha um jeito esquisito, que levou a garotada a pôr-lhe a alcunha de Victor Choc Choc.
Um abraço
Rebordas
Não sei qual seria a vida mais triste, se a dele, se a dos pais.
Obrigada pelas tuas palavras
Augusta
Obrigada pelo que dizes e também pelo reparo. Agora que o disseste, lembrei-me o "a-pu-ti-ti. Vou confirmar e, depois, alterar.
Beijos
Elvira
Provavelmente os seus familiares tiveram menos azar do que o Zé Augusto: acesso a alguma forma de tratamento que, duvido, alguma vez ele tenha tido. Daí as diferenças nas consequências.
Obrigada pelas suas palavras
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