domingo, 4 de outubro de 2015

VELHOS

POR: ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES

(Pintura de Salvador Dali)

Hoje é dia de eleições. E nesta perplexidade de botar o voto em qualquer das incógnitas políticas que nos propõem o regresso do bacalhau a pataco, organizo uma viagem sentimental ao passado.

Quando, aí por volta de 1950, os Fados me depositaram em Rebordainhos, os que eram os velhos de então tinham nascido ainda no século XIX, antes da implantação da república, quando havia reis, rainhas e princesas para habitarem palácios de sonho e abastecerem de fantasia os contos populares. Esses são os meus velhos de referência, porque assim os encontrei com os meus olhos de miúdo e assim mos reteve a memória porque eles ainda por lá andavam quando os Fados de novo pegaram em mim e “me levaram pêra longes terras”. Assim me ficaram como protótipos do que é ser velho. E, velho eu agora também, é assim que os vejo: com as suas frases sentenciosas e lentas, os seus silêncios, as suas histórias de exemplo e proveito e, sobretudo, os estranhos causos de vida, de outras vidas de fome e susto, contados quando as circunstâncias se proporcionavam. E os tiques de cada um transformavam-nos em tipos paradigmáticos.

Ele era a minha avó Tonha que me estrelava dos ovos das suas duas pitas em água com uma pitadinha de açúcar para me convencer a dormir em casa dela, um pardieirozito ao Covelo, onde, à noite, eu ouvia o silêncio mais espesso e o mais lúgubre uivar de cães do universo. Ele era o tio Ramos, meu vizinho, atroando a pacatez do bairro da Portela com malhar vigorosamente o ferro na sua bigorna de ferreiro. Ele era o tio Pereira com o seu catarral cavernoso de fumador inveterado e as suas infindáveis histórias de caça. O tio Camilo que curtira a pele nos calores dos trópicos lá pelos Brasis, que matava o bicho com uma maçã e um cálice de aguardente e sabia de roquelhos como mais ninguém (o único em quem o meu Pai confiava). O tio Zé Miguel, pai de seis filhas, o mais manso dos homens, mas a quem a falta do cigarrito (caralto!) tirava do sério, que sabia um ror de histórias assombrosas e assava castanhas com perícia de mago. O tio Santo velho engoiado no seu capote… e tantos outros que seria fastidioso nomear.

Mas quem, hoje, particularmente recordo é o senhor Amadeu. Nem sei bem porquê, ele não era o tio Amadeu, como os demais, mas o senhor Amadeu. E lembro a sua figura pequenina, muito aprumada, de poucas falas e nessas poucas falas nada das palavrotas fortes com que na aldeia é de lei apimentar o discurso quotidiano. Sempre de camisa abotoada até ao pescoço e até aos pulsos (recordo particularmente uma de xadrez largo que ainda hoje me serve de padrão estético) e, por cima, nos dias mais frescos, a jaqueta de cotim, as botas breves impecavelmente ensebadas. Quando caminhava à frente do carro de bois, de aguilhada no ar, era como se cumprisse um ritual, empunhando um ceptro. Não me lembra que arranchasse nas tascas para a partida de sueca ou chincalhão, nem para o copo bebido nos adjuntos em qualquer dos sotos que ladeavam (e ladeiam) o Prado. Aquele bigodito rectangular ─ à moda da primeira Grande Guerra ─ é que andava sempre chamuscado pelo kentuky permanente. E aqui bate o primeiro ponto alto das minhas memórias. Meu pai dera-lhe entrada franca para lá do balcão sempre que quisesse abastecer-se de tabaco. E quando nos pedia um macito murmurava um qualquer número ─ 53, por exemplo ─ que correspondia ao quantitativo de maços em débito e que ninguém, a não ser ele, controlava. Quando muito bem entendia (normalmente por volta dos cem) procedia a pagamento.

Outra raridade para os hábitos da aldeia: a sua contabilidade caseira tinha um caderninho de anotações onde todas as compras eram registadas. Assim, qualquer elemento do agregado familiar podia vir às compras a crédito desde que se fizesse acompanhar do dito caderno. Por altura das colheitas procedia ao pagamento das despesas havidas ao longo do ano. E meu pai brindava tão certo como honesto freguês com uma garrafa de vinho do Porto.

Nestes conturbados tempos de vigarices e fraudes multimilionárias, de governantes que se governam e nos desgovernam, reconforta-nos a alma recordar estas personalidades que nos iluminaram a infância nesses tempos tão pobres de dinheiro e tão ricos de ser. Quantos daqueles homens e mulheres de rija têmpera não teriam sido génios se dispusessem das oportunidades hoje ao alcance de qualquer criança. 

10 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Bem-hajas por continuares a escrever para nós e a lembrar-nos aquilo que, por vezes, parece que esquecemos.

Hoje é um dia muito importante para mim: se fosse viva, a velhinha que mais amei faria 96 anos. Era minha mãe. Como todos aqueles que referiste soube passar um testemunho de dignidade humana que me é nuito caro.

Um grande beijo

Lurdes disse...


António,

Gostei muito de ficar a saber mais dos "velhinhos" da nossa aldeia, em especial do meu avô Amadeu. Tinha eu 9 anos quando ele faleceu e as minhas lembranças são escassas, gostava muito dele penso que esse amor era recíproco... lembro-me de ele estar doente no hospital em Bragança, e eu estava na altura a morar em Bragança com as minhas irmãs e quando saía da escola lá ia eu para junto do meu avô, leva um livro e lia para ele e ali permanecia até que alguma enfermeira me mandasse embora...
Fico muito contente quando me falam do meu avô e ainda mais por saber que era um homem bom e honesto.

Beijos

Lurdes Pereira

Kris disse...

Boa noite

Agradeço pessoalmente a memória, para mim motivo de orgulho, de um avô que se distinguia pelas qualidades reconhecidas de honestidade, preciosidade de carácter em vias de extinção, especificamente nos meandros políticos.

Políticas à parte eu gostei mesmo foi de "rever" o avô Amadeu, especialmente desta forma tão distinta e admirável.

Obrigada, muito obrigada

Cristina Pereira

Filinto disse...

Parabéns, António.
Belo texto com que nos brindas. Se tens engenho e arte para as letras, não tens menos aptidão de Escultor. Só te falta a madeira.
Na minha memória visual vejo o tio Amadeu à beira da casa, calmo, fumando o seu cigarrito. Eu disse "tio", porque a minha mãe a cada passo dizia: "o meu tio Amadeu ajudou-me muito quando comprámos a casa... foi ele o carpinteiro".
Desculpa Tonho,mas em nossa casa só ouvíamos "o meu tio", parecia mesmo que só era tio da minha mãe.
Acho que esta familiaridade se prolongou nos filhos, pois o António (da Régua)sempre que ia a Rebordainhos tinha que visitar a sua amiga Olímpia.
Se a minha mãe ouvisse ler este texto em vida, ficaria muito faliz.
Obrigado por ela.
Filinto

Anónimo disse...

Muito obrigado António pelo teu testo, mas para mim sobretudo pelo teu regresso.

Um grande Abraço
Orlando Martins

Anónimo disse...

O desfiar honesto e saudoso deste rosário de tantas virtudes humanas,
remeteu-me para a “superioridade moral” dos comunistas que, nos dias que correm, também podem ser designados por bloquistas.
Eu também tenho recordações de outras paragens, diferentes de Rebordainhos, com velhinhos muito bonzinhos. Parece-me que a massa de que eles eram feitos era igual à nossa, contudo os parâmetros civilizacionais que determinavam a maneira de ser das pessoas de há 60 anos têm estado sujeitos a um acelerado processo de erosão. Por exemplo, a influência da Igreja Católica no comportamento das pessoas continua a cair vertiginosamente! Apesar da recente vitória eleitoral do Coelho, os preceitos morais cristãos vão continuar a ser dissolvidos no caldo cultural dos bloquistas, atualmente dominante na sociedade urbana de Lisboa e Porto, cuja moral, em resumo, estabelece que vale tudo, desde consumir drogas leves e duras, como manifestação de liberdade individual, casar com pessoas do mesmo sexo, ser doutor sem nunca pôr os pés numa Universidade, até embebedar-se, chegando ao coma alcoólico, para mostrar ao Dux o que é um bom praxado e o que será, passados três anos de estudos superiores, um melhor doutor!
Atualmente os deuses são muitos! Consequentemente, os valores morais também se desmultiplicaram!

Américo Pereira disse...

É com muito agrado que recebemos(porque sei que todos gostam) mais um
texto de António Fernandes(para mim do Tonho). Completamente de acordo
com o Filinto. Pena é que o Tonho não o faça com intervalos menores. E
agora agradeço porque mais uma vez põe em relevo o meu pai(o Sr.Amadeu)
com a particularidade de realçar pormenores que só o Tonho sabe aplicar
e que para mim são novidades. Recordo outros textos em que ao realçar procedimentos de outras pessoas é fácil concluir a arte que tem em dar
como que movimento a tudo que o que descreve.

Elvira Carvalho disse...

Uma viagem pelas memórias que nos levam ao passado e nos fazem recordar pessoas que também conhecemos.
Um abraço e uma boa semana

Anónimo disse...


Simplesmente muito bem escrito.

A. Fernandes disse...

Amigos:

Vadiando por outras paragens (aquilinianas) só agora chego à palestra com os meus muito amáveis comentadores. Uma palavra muito especial para o Américo e para as netas Lurdes e Kris (que eu não tenho o prazer de identificar na nebulosa das minhas memórias): de facto o sr. Amadeu era dentre os anciãos da aldeia alguém a quem muito estimava pelo seu porte, a sua maneira de ser; e nada mais natural do que vocês sentirem-se orgulhosos de tal pai e avô.

Filinto, Orlando, cá fico esperando a vossa côngrua, dado que vocês tiveram uma relação mais íntima e prolongada com Rebordainhos e as suas gentes.

Fátima, minha editora, obrigado elos serviços que vens prestando à nossa terra

Abraços

Tonho da tia Lídia