POR: ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES
Vocês lembram-se do Sérgio,
aquele tontinho que aparecia lá por Rebordainhos, quando as searas lourejavam e
já se afiavam as seitouras? Lembram lá agora!
Coitado! Manso como a terra; nos olhos um luaceiro de bondade e de
permanente pasmo perante as coisas, os bichos, as gentes… Sempre descalço, mas
de chapéu, de fato abotoado, ou melhor, de fatos, dos fatos que lhe iam dando,
normalmente de cotim, os dos pobres, já que são os pobres quem mais dá aos
pobres, e, quando as circunstâncias o pediam, de gravata, muitas vezes
directamente atada sobre as peles do pescoço, que nem sempre calhava trazer
camisa. Ora aperreando-o, de muito apertados, o que era raro por ser miudito e
enxuto de carnes, ora pingões, a sobrarem-lhe, dobrados nas mangas e enrolados
nas canelas. Às vezes a caridade andava mais distraída e a ida ao algibebe
atardava-se. Então as pernas das calças mingavam, ripadas das poeiras e lamas
dos caminhos, e ficavam-se pelo meio das tíbias escanzeladas. Com tal físico e
com o treino que se impusera, era um andarilheiro infatigável. Não parava
quieto. Aparecia e desaparecia como um trasgo. Dizia-se que, nas suas
deambulações, já tinha descido até ao Porto. Da sua mudez, nunca foi possível
tirar a limpo tal informação. Mas é de crer que sim.
Era pobre, mas não pedia. Aceitava o que lhe davam com aquele olhar
manso de cão perdido sem coleira. E o mais comum era vê-lo a refeiçoar sentado
na soleira das portas, migando um carolo de centeio para dentro duma malga de
caldo, o passadio mais corrente para os aldeanos nessa altura. Rapado o fundo
da malga, entregava-a à dona de casa, mudo, como se as palavras o cansassem,
erguendo para quem lhe matara a fome os olhos vagos inundados de gratidão. Nos
tempos livres, que eram todos, percorria as ruas da aldeia recolhendo trapos e
papéis velhos. Mas poucos, muito poucos. Poucos papéis, porque pouco se lia em
Rebordainhos e os escassos jornais ─ do Sr. Padre, do Sr. Professor ─ eram
reciclados para recortar e forrar os armários da louça. Poucos trapos, porque
os trapos era para serem usados até ao fio e, quando já não tinham préstimo
para cobrir o esqueleto, ainda se guardavam para tecer uma hipotética manta de
trapos no tear da Antonieta ou da Perpétua. Hoje acredito que o pobre nenhum
proveito tirava de tal recolha e o seu gesto assentava apenas em preocupações
de higiene e limpeza. Tinha muito de ecológico avant la lettre, o Sérgio. Sim, o Sérgio era um visionário
incompreendido. Se não, escutem.
Andasse lá por onde andasse, na festa de Santa Maria Madalena (em
Julho, para quem ande de candeias às avessas com o calendário hagiográfico) era
tido e achado em Rebordainhos. Mas era uma tragédia. Sendo a festa do orago,
com convite feito a familiares e amigos das redondezas, era ocasião azada para
imolar toda a casta de animaizinhos que pudessem ajudar à santa trincadeira. O
que constituía uma aflição indizível para a alma sensível do Sérgio. Perturbado
no seu amor por todo o ser vivente, descalço como sempre, arrimado ao seu
bordão de caminheiro, deslaçava-se-lhe a voz, clamando em altos brados pelas
ruas da aldeia, como os profetas bíblicos na Babilónia pecadora apelando à
conversão dos perversos:
─ Não mata pitinha! não mata cordeirinho! não mata cabritinho!... ─ E
estacava esbaforido, retomando o fôlego, com o ar alucinado dos profetas que
pregam para orelhas moucas. E retomava:
─ Come pão, come couve, come batata!... Mas não mata cordeirinho!...
Come nabo, come bacalhau, mas não mata cabritinho!...
Como se vê, além de ecologista avant
la lettre, o Sérgio era também vegan
avant la lettre, é claro, sem o saber. E se ele nomeava o bacalhau como
iguaria possível na celebração festiva, era por apenas conhecer o gadídeo (como
ensina o José Quitério) das mercearias, no seu aspecto de múmia triangular
salgada, ignorando que, antes disso, ele fora também ser vivo e livre nos
oceanos. A tanto não chegavam as suas informações no capítulo da zoologia.
Ora, a última vez que vi o Sérgio, era já eu estudantinho de terceiro
ou quarto ano. Eu estava de férias e o Sérgio comparecia, com a regularidade
habitual, para as celebrações da Santa Maria Madalena. Tinha havido a missa
solene com solene sermonata, mais a procissão circunvagando a aldeia,
aformosentada pela banda (de Pinela, suponho), tinha-se papado o lauto jantar
festivo, iniciava-se a possível passeata pós-prandial, e quem havia de
aparecer, espavorido, aos berros?... O Sérgio. O pobre já tinha corrido meio
povo gritando esgazeado. O que fora, o que não fora. O desgraçado trazia uma
espinha de bacalhau atravancada na garganta e não encontrava quem lhe acudisse.
E, espavorido, de boca escancarada, apontando com dedo aflito as goelas,
agarrava-se a mim como pessoa culta que até andava nos estudos, que lhe
encontrasse salvatério para a aflição. E eu, quase tão aflito como ele,
espequei, esparvoado! Até que alguém, ali ao lado, receitou: ─ Ó homem, bebe
uma colher de azeite e engole uma côdea mal mastigada! Remédio santo! O Sérgio
estava salvo.
Nunca mais o vi. Que Deus lhe fale à alma, que nela não havia o mais
leve resquício de maldade.
Dir-me-ão que não, que é maluquice. Mas a mim ninguém me tira da ideia
que aquilo foi maldição do bacalhau pela desconsideração em que o pobre do
Sérgio incorrera ao não o incluir no seio dos seres viventes com direito a
serem salvos da deglutição humana.
15 comentários:
Tonho
Claro que me lembro do Sérgio que, não sei lá pelo quê, abancava sempre em casa da tia Alzira e do tio Alípio. Também ignoro de que terra fosse.
As suas dificuldades em falar deveriam vir do desenho dos lábios, que eram uns lábios de coelho, sempre a tremer (tenho relutância em chamar-lhe lábio leporino, por me não lembrar de qualquer falta de união no seu lábio superior).
Como o Sérgio, havia outras figuras de "arribação", como aquela mulher que aparecia sempre com o caldeiro pendurado no braço...
A forma como estas pessoas eram aceites na sua singularidade mostra bem que, ao tempo, precisávamos menos de lições de humanidade do que precisamos agora. Obrigada por nos fazeres pensar nisso.
Beijos
Um texto muito belo. Que demonstra que nessa altura o povo sabia o que queria dizer, "todos diferentes, todos iguais".
Um abraço e uma boa semana
Belo texto. Dá gosto ler e reler.
Não seria um bom texto para um exame nacional?
Tenho uma vaga ideia do Sérgio, mas o que mais me ficou na memória foi o "MENDONÇA" de quem as mulheres fugiam a sete pés.
Bacalhau? Tonho, era a comida dos pobres. O meu irmão Orlando dizia para a minha mãe: "se me quiser matar à fome dê-me bacalhau". Hoje o fiel amigo está diferente.
Obrigado.
Abraço do Primacho
Olá Tonho,
Em força como sempre. Lembro-me muito vagamente do Sérgio e fiquei com o registo que seria de Serapicos? Não sei se seria...
De qualquer modo gostei imenso de te reler.
Obrigado
Orlando Martins
Olá Tonho, mais uma vez com os contos que nos encantam.
É possível uma pessoa esquecer muita coisa mas quem conheceu o Sérgio
vai recordá-lo toda a vida. Era costume em Rebordainhos as portas de
casa permanecerem abertas durante o dia e para o Sérgio, fosse verão
ou inverno, entrava sem qualquer cerimónia e juntava-se aos demais.
Parece que estou a vê-lo, tal como o Tonho o descreve, sempre descalço
e a querer tomar parte em tudo. Não me lembro que alguma vez se tenha
dirigido a alguém a pedir para entrar ou pedir licença para se sentar.
Fazia tudo como se fosse da casa. Comia se tinha fome e ia embora da
mesma maneira como entrou. No inverno, se entrava só para se aquecer,
a visita era de pouco tempo. Retirava-se mesmo que lhe dissessem para
ficar. Nunca o ouvi queixar-se de nada, motivo suficiente para não
questionar a vida dele...
Também me lembro deste peregrino la por Rebordainhos. O Senhor Américo tem razão. Descalço, entrava porta dentro às pessoas, puxava duma tripeça ou dum banco e toca sentava-se à lareira como se fosse de casa. Acho que, numa dessas suas visitas a Rebordainhos, entrou casa dentro à Tia Glória e obrigou-a a fazer-lhe uma malga de sopas de centeio para manjar. Ela bem lhe dizia: “ vai-te embora porque os meus homens hão-de estar a chegar e não vão gostar de te ver aqui”! Mas o Sérgio, sabia e muito bem que ali não havia homens, fez orelhas moucas e só saiu depois de ter saboreado as belas sopas de centeio.
Obrigada
Amélia
António,
que bom termos a oportunidade de nos dares a conhecer certas personagens!
Bem-hajas.
Não me lembro do Sérgio, apenas do Camilo (o que usava muitas gravatas).
Beijos
Olímpia
Fátima
Até parece mal publicares dois textitos meus seguidos. Já que não encontraste um Bei de Tunes a jeito para desancar, podias mostrar aquele texto do Tareco sobre o Salgueiro Maia. De qualquer modo, obrigado pela edição.
Tonho
Elvira
Não tendo o prazer de a conhecer, obrigado pela sua presença constante e pelas palavras sempre tão amáveis.
António
Filinto e Orlando
Já no texto anterior ralhava convosco pela vossa ausência, vós que sois senhores de tantas e tão ricas histórias. E então o tio Adriano que era um extraordinário contador de contos. Cá vos espero, que eu dei o berro, com os meus escassos 5 anos de Rebordainhos. Um abraço
Tonho
Américo, Amélia
Afinal havia quem se lembrasse do Sérgio! E vocês mostram que o conheciam bem melhor do que eu, de uma maneira mais íntima e humana. Se o soubesse nem me tinha atrevido a escrevinhar estas linhas, ou então tê-las-ia escrito de maneira bem diferente. Obrigado pelas vossas achegas, tão bonitas, tão bem observadas; na próxima edição vou tê-las em conta. Abraços
Tonho
Olímpia
Obrigado eu pela vossa paciência e benevolência de leitores compreensivos. Não conheceste o Sérgio, mas a Amélia vai decerto contar-te algumas das histórias que ela tão bem conhece. Um abraço
Tonho
Olá Senhor António,
Não conheceu a Joaninha, o Laribau, O Tonto de Pinela? (Uma malguinha de caldo, só se chega, só se chega).....
Abraço
Um Transmontano que está longe
Senhor Transmontano:
Não, senhor Transmontano que está longe, não conheci essas personagens. Estive pouco tempo em Rebordainhos e o que escrevo vem dessas memórias entre os seis e os onze anos, mais umas quantas passagens pelas férias. Mas desafio-o a que no-las apresente. Será um prazer para todos nós que temos saudades desses tempos e dessas gentes.
Um abraço
A. Fernandes
Já escarafunchei a minha memória, mas não consigo lembrar-me dessa personalidade, nem ao menos muito vagamente. Também eu morei tão pouco tempo em Rebordainhos que hoje lembro de bem poucas pessoas. De algumas lembro o nome, mas esqueci a fisionomia e de outras o inverso.
Parabéns e obrigado pelo belo texto e informação que são sempre bem-vindos para quem é realmente da terra e não consegue esquecer, mesmo após muitos anos distante.
César
Tonho
Tens muita razão em queixar-te. Acabei de me penitenciar por interposta pessoa de Almada Negreiros, antes de ser engajado pelo situacionismo.
Beijos
Dr. António,
Brinda-nos com dois lindos textos. No primeiro, trouxe-nos à memória os velhos da nossa juventude. Do Tio Pereira não me lembro. Do tio Ramos, lembro-me perfeitamente mas de exercer a profissão de ferreiro não. Era Pai da Tia Teresa e Avô da Dr.ª Augusta e da Amélia (e irmãos). Sendo da idade da Amélia e um pouco mais velha, desculpem, " mais idosa" que a Dr.ª Augusta, acompanhei-as algumas vezes a casa da Tia Helena e lembro-me, do Tio Ramos, estar sentado no escano ao lume.
Do tio Amadeu também me recordo. Viviam ao pé da escola, e quando passava, lembro-me de vê-lo ao soalheiro, nos dias de sol de inverno, com a sua esposa.
Será que alguém, mais tarde, irá recorda-lo a si e à D. Fátima com tanto carinho? Já cá não estaremos para ver.
Quando li “Vocês lembram-se do Sérgio, aquele tontinho que aparecia lá por Rebordainhos”. De repente fez-se luz na minha cabeça! Há!. O Sérgio de Serapicos! Tremia muito do queixo inferior, andava sempre descalço, entrava e saía como um raio na casa das pessoas.
Havia outras figuras que, de vez em quando, visitavam Rebordainhos. Lembro-me da Joaninha de Outeiro, o maluco de Pinela, o maluco de Vale de Salgueiros, o Mendonça e Lauribau de Rossas.
Bem-haja, Dr. António por me fazer regressar aos meus tempos de juventude. Já li e reli os textos e não me canso!
Cumprimentos, e escreva-nos mais destas maravilhas.
Mais uma vez bem-haja.
Rebordas
Serrana
Embora a destempo, não posso deixar de vos agradecer tão simpáticas, mesmo comoventes, palavras acerca da minhas pobres escrevinhações. Não sei quem vocês são, mas é fácil adivinhar que são de Rebordainhos e à nossa aldeia ligados pelo cordão umbilical da saudade: aqueles tempos, aquelas gentes e sobretudo o nossos olhar limpo da infância, aberto às coisas e às gentes, com todo o tempo do mundo à nossa frente.
Serrana: essa do Dr. vem mesmo a mais.- Sou apenas o Tonho da tia Lídia ou o António.
Obrigado
António
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