POR:
ORLANDO DOS SANTOS MARTINS
Não
se via vivalma na rua.
O
dia amanhecera gélido, e um leve nevoeiro pardacento vindo da serra pairava
sobre o manto de neve que se abatera há já alguns dias.
A
pureza da paisagem era centralmente manchada pelo vulto mais brilhante do dorso
do muro que delimitava o prado das hortas repletas de montículos de neve que
escondiam algumas couves, nabos e grelos e mais longe, quebrando a branca
monotonia, os gravetos enregelados das árvores nuas e o recorte das montanhas.
Junto
ao muro lá vinham, arrastando os socos, dois pinguins encasacados e muito
ciosos no caminho a seguir, deixando as suas pegadas frescas na neve.
Eram
o Tio Manuel Frade o “Caranvas” e o Adriano “Torto” com os seus dois cãezinhos,
mais de estimação que animais de caça.
Iam
à caça da lebre e do coelho, lá para os lados da Ribeira, cada um com a
caçadeira de dois canos ao ombro, aberta para segurança, e um cinto repleto de
cartuchos preparados à lareira no dia anterior. Naquela idade, bastante
avançada para ambos, já pouco caçavam e não era raro a Olímpia “Maneta” temer
que um dia ficassem por lá os dois enregelados.
Já
a tarde lançara alguma penumbra na aldeia quando as duas figuras faziam o seu
caminho de regresso, tão leves quanto tinham partido, sem qualquer troféu,
tinha sido o habitual fiasco.
-
Carajo Manel, aquela lebre foi por um triz…
-
Eu penso que ainda acertei num coelhito, mas deve ter sido de raspão pois nem
os cães deram com ele.
-
A neve está dura sabes, e eles fogem…
O
tio Adriano “Torto” chegado a casa, ensopado e enregelado, sentou-se em frente
ao lume mortiço e, atiçando uns paus no trasfogueiro, começou a matutar, coçou
a careca e notou a ausência da patroa.
-
É agora, tenho que arranjar um coelho prá Olímpia, e amanhã convido o Manel pró
petisco. – juntos na caça, juntos nos troféus -.
Tal
como o pensou, assim o realizou: dirigiu-se ao galinheiro de arma em punho, onde
havia alguns coelhos e galinhas que coabitavam em cubículos separados e
escolheu um coelho branco com manchas negras no focinho e no lombo, a quem a
Olímpia chamava “chino”. Não esteve para demoras e, gastando apenas um
cartucho, “Pum!…” resolveu o insucesso do dia.
Levantou
o seu troféu de caça que colocou na mesa larga da cozinha, bem visível a
qualquer um, aguardando satisfeito o regresso da patroa.
-
Olha Olímpia, e dizes tu que não caço nada, quero que trates deste coelhito prá
manhã, fá-lo com arroz e convida o Manel.
-
Estafermo dum caralho, este é o meu chino, foste-me ao galinheiro, maldito!… Quem
merecia um tiro eras tu…
Entre
palavrões e injúrias lá foi a Olímpia passando o resto da tarde sem se calar,
resmungando e amaldiçoando a sorte e a ideia do marido.
-
Ora, Olímpia, já que está morto, temos de o comer carai.
Esta
é uma das poucas histórias que recordo do meu avô “Torto” e da minha avó
“Maneta”.
11 comentários:
Orlando
Tive este teu texto saboroso à espera dos dias frios. Como parece que nos desampararam a porta, decidi não esperar mais e publicá-lo.
Esta história é uma anedota, que ainda dá mais vontade de rir quando se conhecem os protagonistas - teus avós. Solto boas gargalhadas, só de imaginar a cara da tua avó!
A tua história ainda me trouxe um acrescento: nomeada do tio Frade, que não constava. Ou melhor: a segunda nomeada, porque "frade" já lá constava.
Beijos
O texto é muito interessante e fez-me pensar na avó Piedade que costumava dizer que os caçadores eram uns aldrabões que só encontravam par nos pescadores.
Um abraço e bom fim de semana
Orlando:
Encontrei um bocadinho para te dizer que ri à gargalhada. Esta tua estória faz-me lembrar o meu cunhado "Ruço" que uma vez decidiu roubar um coelho à minha sogra. Acontece que escolheu uma coelha prenha.
Saudades
De tanto rir, as lágrimas escorreram-me abundantes pelo rosto a ponto de minha mulher perguntar se eu estava ficando doido.
Trabalhei para eles guardando vacas em dois períodos de férias escolares e nunca escutei nada parecido com isso.
Fátima, já agora quero te dizer que me lembro que uns anos atrás te passei uma outra nomeada do Zé Maria.
Bjs.
Há mais densidade semântica nesta pequena narrativa do que numa chumbada de pesca à linha. Das palavras encadeadas com ritmo e poesia ressuma uma moral que, infelizmente, nos nossos dias já ninguém pratica.
Hoje em dia, o bem e o mal são conceitos relativos, pelo que ninguém se pode assumir, ou ser acusado, culpado antes da eventual sentença condenatória, obrigatoriamente proferida por um juiz, ou uma juíza, transitar em julgado. Assim, o doutor Sócrates é tão inocente como qualquer um de nós, com a diferença de que todo o dinheiro do Santos Silva é só dele. Ora Fava!...
Amigo Orlando:
Tu é que fizeste uma rica caçada nos meandros da memória. Bela história! Estou mesmo a ver o tio Adriano e a tia Olímpia naquela cozinha da casa do Outeiro (de tão gratas memórias) a desatarem os fios da meada. Fartei-me de rir. Tu escreves bem, rapaz. Manda mais destas.
Um abraço
Tonho
Orlando,
depois de lindos poemas, passaste a partilhar connosco lindíssimas narrativas. Também eu soltei estrondosas gargalhadas.
Bem-hajas
Beijos
Olímpia
Orlando,
Nem eu conhecia esta façanha do meu pai. Se fosse a tua avó Olímpia não me admirava nada... era "atraganada". Ela tinha a alcunha de "maneta" porque era canhota e o "torto" do avô era pelo "pão" como dizia a atraganada.
Obrigado por esta memória.
Filinto
Fátima
também eu já tenho saudades de uma boa neve, mas enfim, acho que irei ficar-me pelas memórias, tal como tantas outras..
D. Elvira
estes caçadores, outrora exímios, nesta altura já nem os fiscais da venatória se importavam com eles.
Augusta e Rebordas
é muito bom rirmos de vez em quando, sempre admirei o ar calmo e ponderado destes dois homens. Sabiam ouvir e antes de responderem ainda começavam com "Bô" ou "Carai" ganhando mais tempo para uma resposta..
Sr. António Pires
estes dois cúmplices funcionavam bem na abundância e na privação.
Tonho
um grande abraço. Sabes que o meu avô foi o meu mentor para uma vida de caçador!!! ... daqui a uns tempos conto mais um episódio..
Olímpia
sua malandra, não tens nenhuma coisa engraçada para partilhar, vamos lá liloto.
Tio,
a alcunha da avó já tinha percebido, mas ado avô ainda não.. explique melhor.
Um grande abraço a todos vós e muito obrigado pela força que me têm dado.
Orlando Martins
Orlando:
A alcunha do avô acho que era devida à cifose. Em Rebordainhos dizia-se ter o "pão" às costas. A avó quando queria brincar com ele dizia que o "pão está pronto para tirar do forno".
Filinto
Obrigado tio,
Assim faz sentido.
Orlando
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